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quinta-feira, abril 30, 2020

Meu amigo Francisco Costa



Nunca imaginei que um dia estaria usando esse espaço poético e bem-humorado para fazer necrológio de amigos queridos. A pandemia do covid-19 tem sido uma desgraça sem fim. Na última segunda-feira perdi um amigo mais do que querido, uma amizade de 54 anos sem nunca termos travado uma mísera discussão sequer: o engenheiro civil Francisco Costa.

Das boas lembranças que guardo do sacana, uma manhã de domingo, sol quase a pino, ele passou lá em casa e avisou:

– Êi, seu Simão, eu vou levar o Simãozinho emprestado para me ajudar numa tarefa que só ele tem inteligência pra fazer...

Eu tinha 12 anos, o Chico Costa, uns 16. A tarefa? Afinar cerol de papagaio. Ainda não havia a casa do seu Chico Eletricista. Na época, aquilo era um terreno urbano da Dona Sila, mãe do Almir Português. Havia um poste de concreto no começo do terreno, no cruzamento das ruas Parintins e Borba, e outro poste praticamente em frente da nossa casa.

Chico havia esticado umas 800 jardas de linhas branca enlaçando os dois postes. Parecia um labirinto. Explicou a técnica:

– Eu vou passar o cerol grosso, na mão cheia, você vem atrás com os dedos polegar e indicador feito pinças, afinando o cerol. Não precisa botar muita pressão. Tu não é jumento, tu sabe do que estou falando! A parte mais difícil vai ser na linha que envolve o poste. Aí, você afina com a ponta das unhas, pro cerol passar por outro lado da linha. Se ficar só de um lado, é ali que vão nos cortar! Tu não é jumento, tu sabe do que estou falando!

De repente, estou envolvido sem querer em uma merda que nunca dei valor: empinar papagaios! Cumpri minha tarefa com estoicismo: indo e vindo em torno das linhas esticadas, acho que fizemos umas vinte viagens. Esperamos uma meia hora sentados embaixo de um pé de castanholeira que havia em frente de casa. Daí, ele foi lá e começou a enrolar a linha numa maçaroca.

Aí, voltou em casa e gritou lá pra dentro:

– Êi, seu Simão, estou devolvendo o Simãozinho! Não lhe disse que ele é foda?...

E foi embora com seu famão do Botafogo para infernizar a vida dos outros empinadores.


Muitos anos depois, em 1974, eu fazendo engenharia na Utam, ele se preparando para fazer engenharia civil na FUA, foi se queixar pra mim:

– Porra, Simãozinho, chamei um zé buceta para me ajudar a fazer um muro no quintal de casa e o vagabundo me sacaneou, falou que não era ajudante de pedreiro... Aí, no dia seguinte, me pediu pra pagar uma dose de cana pra ele no Bar do Aristides. Mandei tomar no cu! Não quer ganhar dinheiro trabalhando? Vá se foder... A porra desse nosso bairro só tem murrinhas, caralho!

Aí, ficando mais puto do que de costume:

– Murrinhas do Egito, carálio!... Esses vagabundos estão no planeta desde a construção das pirâmides...

Ri pra carálio. E falei:

– Isso é um bom nome para um time de futebol aqui da Caxuxa!

O resto é história.

Há cinco anos, num livro que estou escrevendo para complementar o “Cowboys Fora-da-Lei”, que nomeei de “Pai Simão & Outras Histórias”, fiz o texto abaixo:


DO lado oposto da Rua Borba, praticamente em frente da casa do Mário Adolfo, ficava a casa de Francisco (aka “Chico Cavalinho”, porque era gentil e atencioso como um quadrúpede com os poucos desafetos), Flávio (aka “Fábio”), Fernando (aka “Linguinha”, porque tinha o hábito de morder a língua quando ficava irritado), Graça e Glória Costa (aka “Gói”), localizada exatamente ao lado do Top Bar.

Dona Otília, mãe da galera, tinha uma loja de confecções no Mercadinho das Novidades, e o seu Zé Costa, pai dos moleques, foi um dos maiores intelectuais que conheci. Aliás, ele criou os cinco filhos vendendo livros espiritualistas e esotéricos de porta em porta e passou a vida inteira tentando catequizar eu e Mário Adolfo para entramos na Maçonaria. O fato de eu já ser filiado à Ordem Rosa Cruz não lhe dizia respeito. Ele queria me ver na Maçonaria, que julgava ser o começo de tudo. Alguns dos melhores livros que li na vida, me foram vendidos ou doados graciosamente por ele. Era um grande espírito de luz.

Chico, Fábio e Fernando eram viciados em papagaios de papel. Como nunca aprendi a “flechar”, jamais me interessei pela brincadeira. Eu gostava de ver as “tranças” no céu e apreciar a confecção dos papagaios – ofício que o Mário Adolfo, inutilmente, tentou me ensinar uma porção de vezes. Também gostava de passar cerol nas linhas, mas a afinação do cerol era sempre feita por algum especialista no assunto. Os três irmãos possuíam técnicas específicas para as tranças.

O Chico Costa era o mais abusado de todos. Ele passava cerol em 800 jardas de “linha um”, usava mais 400 jardas de linha branca, empinava o papagaio no céu até ele se perder de vista e, lá do alto, como se fosse um falcão peregrino procurando uma presa, embicava em direção ao solo, fazia uma rasante pra direita a menos de dois metros do chão e subia novamente em direção ao céu, cortando três, quatro, cinco papagaios de uma só vez, tal a velocidade da manobra. Suas vítimas preferidas eram os empinadores de papagaio da Praça 14.

O Fernando Linguinha gostava mais de “embolada”. Além de usar “linha dois zero”, as rabiolas de seus papagaios possuíam várias lâminas de gilete encastroadas em palitos de fósforos, distribuídas estrategicamente ao longo da mesma. Na época, os papagaios de “famão” gostavam de executar a proeza de “cortar e aparar”.

Exímio flechador, Fernando se aproximava dos papagaios adversários como quem não queria nada e deixava eles avançarem em direção a rabiola do seu papagaio para só então executar uma rápida manobra de evasão que, quase sempre, cortava a linha dos adversários com a rabiola.

Na maioria das vezes, entretanto, Fernando optava por embolar seu papagaio entre o peitoral e a rabiola do adversário. Era quando ele se transformava em uma verdadeira máquina humana de “colher linha”. Suas braçadas vigorosas alcançavam a velocidade de 78 rpm. O papagaio adversário vinha bater em sua mão. Aí, era só quebrar a linha do peitoral e ficar com o troféu.

O Fábio era um empinador de papagaios mais clássico, que gostava de trançar descaindo a sua linha por cima da linha adversária como se seu papagaio já houvesse “quedado”. Enquanto Chico e Fernando utilizavam papagaios de 1 m de altura, Fábio preferia os modelos menores (30 cm), mais velozes e fáceis de se manobrar. Ele também utilizava “linha oito”, mais fina que a “linha um”, que se transformava em uma verdadeira navalha Solingen depois que recebia o cerol.

A fabricação de cerol envolvia uma mão de obra federal. Primeiro, era preciso transformar cacos de vidro em pó, usando um pilão de ferro. Os vidros azuis de leite de magnésia de Philips eram os mais requisitados, só perdendo para as raríssimas lâmpadas fluorescentes e as indefectíveis bolas de árvore de Natal. Depois, o pó era coado em meias de mulher para retirar o xerém, os pedacinhos maiores. Finalmente, era preciso encontrar uma boa cola de madeira em tabletes e derretê-la em banho-maria para só então misturar com o pó de vidro. Os mais afoitos usavam pó de ferro (“linhaça”), mas este tipo de cerol tinha o dom de apodrecer a linha no dia seguinte.

Uma meia dúzia de vezes, eu auxiliei o Fábio nas “passadas de fios com a maçaroca”, porque era um dos melhores moleques da rua nesse quesito. Explico melhor. Antigamente, as linhas de transmissão de energia elétrica residencial ocupavam apenas um lado das ruas. As pessoas que moravam do outro lado da rua precisavam de uma fiação complementar para levar a energia dos postes existentes no lado oposto da rua até as suas residências. Assim, as ruas ficavam coalhadas de fiação aérea, o que dificultava enormemente a mobilidade dos empinadores de papagaio.

Para se deslocar, por exemplo, da Rua Parintins até a Rua Tefé, ou seja, apenas um quarteirão, era necessário passar por cima de mais de 30 fiações, já que cada casa demandava, no mínimo, dois fios (fase e neutro). Daí a importância do “passador de fios”. Enquanto o empinador ficava flechando o papagaio para empiná-lo o mais alto possível, o passador tinha de calcular mentalmente quantos metros de linha teria que descair para efetuar a manobra porque a maçaroca seria presa com um nó falso.

Aí, vinha a parte mais difícil da operação: lançar a maçaroca sobre os fios e pegá-la do outro lado no mesmo momento em que o empinador soltava a linha do papagaio. Às vezes, a maçaroca caía entre dois fios paralelos e a manobra precisava ser refeita ao contrário. Nosso recorde, meu e do Fábio, foi ir da Parintins até a Manicoré e depois voltar, sem que eu errasse uma única “passada”. Coisa de profissional.

quinta-feira, abril 23, 2020

So sorry, mas o mocó está de luto!



Paula e Ivancy Wilkens, no GRES Reino Unido da Liberdade

O falecimento inesperado de dois amigos queridos (o jornalista Robson Franco, dia 20, e o microempresário Ivancy Wilkens, marido da minha secretária Paula, dia 22) adiaram as postagens sobre o livro de folclore. Estou ainda meio sem chão.

Nos últimos nove anos, eu falava com o Ivancy toda quinta-feira, quando ele vinha deixar a Paula aqui em casa para arrumar o mocó. Hoje, ele não vem.

Soube do infausto acontecimento pela própria Paula, por telefone, no início desta quarta-feira. Ivancy começou a sentir falta de ar na tarde de terça-feira. Procurou um SPA, onde foi medicado e mandado de volta pra casa. No início da noite, a falta de ar piorou. Um de seus primos, médico, desconfiou da covid-19 e o levou para um Pronto Socorro. Foi entubado, teve uma parada cardíaca e atravessou o espelho. Os legistas do IML apontaram como causa mortis pneumonia.

Custa crer que um atleta, gozando de uma saúde de ferro, tenha sido vencido por uma simples pneumonia, mas eu não sou médico para contestar o laudo. Ivancy foi velado na Funerária São Francisco, ali na Cachoeirinha, e sepultado ontem à tarde.

Sobre ele, já contei uma de suas histórias aqui no blog. Se quiser reler, acesse aqui:


Botafoguense histórico como seu irmão, João Nogueira postou hoje o seguinte texto no Facebook:

Ontem meu irmão, meu amigo, meu parceiro me abandonou, ainda estou buscando forças pra me reergue POIS O GOLPE FOI MUITO GRANDE, mas o meu conforto é saber que Deus tinha um plano pra ele e agora está melhor que eu, vá em paz meu irmão, porque aki eu ainda estou lutando contra esse vazio que ficou dentro mim, mas tenho certeza que um dia iremos nos encontrar novamente. TE AMO MEU PARCEIRO.

O compositor e sambista Marinho Saúba também postou no FB um texto a respeito:

Tô triste demais pelo passamento do meu querido amigo e irmão do coração Ivanci, pessoa do bem que só transmitia alegria, tinha muito o espírito de liderança, torcedor do Botafogo, Caprichoso e Reino Unido da Liberdade, todos os anos promovia seus passeios de barco ao Festival de Parintins e também as praias turísticas de Manaus, foi atleta da seleção de vôlei estudantil do Amazonas e como amante do futebol, era o goleador da pelada tradicional de fim de tarde de todas as sextas-feiras no Campinho da VM, era hilário quando fazia um gol, pois sempre usava esse bordão em tom de gozação " SÓ UM É LONA", referindo-se que somente um não era suficiente pra marcá-lo kkkk , sempre era um dos que encabeçavam a organização dos times da comunidade. Dr. Ivanci, como era chamado carinhosamente pelos amigos mais chegados, grande referência da Vila Mamão. Descanse em paz meu querido amigo e irmão do coração, que DEUS receba-o de braços abertos em seu Reino.


Eu, Robson Franco e Simas Pessoa, o Careca Selvagem, no Bar da Júlia, em dezembro último. No fundo, o eterno zagueiro Lúcio Preto, que também resolveu atravessar o espelho no início do ano

Do falecimento do jornalista Robson Franco, tomei conhecimento no mesmo dia via whtsapp. Ele era uma das figuras mais queridas do FB, de onde me afastei há alguns meses, mas de vez em quando eu entrava ao vivo na Tucupi Radio Web para conversarmos sobre abobrinhas.

Ele tinha planos de, ainda esse ano, fazer uma série televisiva chamada “De Bar em Bar”, onde eu faria o papel de âncora, contando causos, chistes e piadas nas mesas dos principais botecos da cidade. Chegamos a rascunhar o projeto, que foi adiado agora para as calendas gregas.

O portal BNC Amazonas, em texto assinado pelo jornalista Aguinaldo Rodrigues, assim noticiou a tragédia:

Jornalista Robson Franco, o “Tucupi Radio-Web”, morre em Manaus

O jornalista Robson Franco não resistiu no início da noite desta segunda (20) a um problema de saúde. A causa da morte ainda não foi divulgada.

Há algumas semanas, portanto, ele vinha debilitado por uma infecção, que acreditava ser estomacal. Com receio de se contaminar pelo coronavírus (covid-19), evitava ir a hospitais públicos em busca de socorro.

Como sua saúde ficava a cada dia mais debilitada, chegando a perder 25 quilos de seu peso, conforme informou em post no Facebook, sua esposa decidiu levá-lo no final da madrugada de hoje ao hospital 28 de Agosto.

Contudo, o socorro não chegou a tempo.

Como se definia

“Racional emotivo, aquele que defende suas ideias e ideais com paixão! Solidário e companheiro sempre! Se tu estás bem, eu fico bem! Não sou do contra, sou do fresca!”


Carreira


Egresso do curso de comunicação social da Ufam (Universidade Federal do Amazonas), Robson atuou nos principais veículos de imprensa de Manaus.

Por essa razão, centenas de mensagens nas redes sociais, de amigos e familiares, lamentaram a morte do jornalista, aos 51 anos.

Antenado com a internet, foi dos primeiros jornalistas do Amazonas a usar amplamente as redes sociais, interagindo com centenas de pessoas de todo o mundo.

Com a derrocada dos veículos impressos, Robson criou a radioweb Tucupi, por onde conquistou boa audiência.

quinta-feira, abril 16, 2020

Dabacuri



Faz tempo que não posto nada aqui. Sacanagem minha com meus 25 leitores registrados em cartório. Mas é que perdi tantos amigos nesse começo de ano que resolvi dar um tempo.

Foi na semana passada que uma amiga querida deu o toque: “E se em vez deles, fosse você? A gente ia se privar dos textos que você pesquisou? Isso é sacanagem...”

Pois é. Eu queria fazer uma surpresa. Lançar um puta livro sobre a cultura popular de Manaus. Mas que surpresa é essa, por favor? Não é melhor mostrar logo a porra do livro aqui na web, que dá pra todo mundo acessar?

Foi por causa dela que resolvi mostrar o primeiro livro, “Dabacuri”, e o resto da tropa. São textos longos. Foda-se. Vou começar do começo. Com a apresentação. Vamo que vamo!

Vou começar com um quadro do meu querido e saudoso Roland Stevenson, pintor chileno, meu camarada. Ele era um gênio.


A imagem que ele fazia das Amazonas era exuberante. Visitei algumas vezes seu studio ali na Av. Constantino Nery. Conversávamos muito, ríamos muito, discutíamos muito. Uma das pessoas queridas que se foi, como se vão as coisas boas que a gente ama.


Num lugar que não se sabe bem ao certo onde, talvez nas planícies frias da margem esquerda do rio Danúbio, na Bulgária, numa época que fica entre a mitologia e a história, viveram as mulheres chamadas Amazonas. Eram frias, belas e bárbaras. Não toleravam os homens, a não ser quando os capturavam para se reproduzirem. Amazonas vem de “amazon”, em grego: “as que não têm seio”. Porque, de tão apaixonadas pela guerra, dizem, arrancavam um dos seios para melhor manejar o arco e a lança.

A Grécia mitológica é povoada de histórias dessas mulheres extremadas, descendentes do deus da guerra Ares (Marte, entre os latinos) e da ninfa Harmonia. O incrível herói Hércules esteve nesse reino encantado com a missão de se apoderar do cinto de Hipólita, a rainha. Quase teve êxito. Hipólita apaixonou-se por ele e lhe daria de boa vontade o cinto, não fosse suas guerreiras terem iniciado uma rebelião, fomentada, aliás, pela deusa Hera, uma ciumenta amiga de Hércules. O prodigioso Hércules mata Hipólita para conseguir o cinto e retira-se de Temiscira, capital do reino das guerreiras, combatendo furiosamente. Pelo menos assim é a lenda.

Em 1539, as Américas estavam ainda mal descobertas. E o mito das Amazonas não era muito mais fantástico que as terras para onde se dirigiam aventureiros como Dom Francisco de Orellana, que vinha à misteriosa América, como disse um de seus poetas, realizar “un sueño heroico y brutal”. Orellana era um dos comandantes de Francisco Pizarro, o sombrio e inclemente conquistador do Peru. Este ouvira falar do Eldorado, um país fantástico de cidades de ouro, além dos Andes. E para lá, numa tropa com 4 mil índios escravos, 300 soldados, 150 cavalos, cães e porcos, despachou, no Natal de 1539, alguns de seus homens – entre os quais Orellana – sob o comando de seu irmão Gonzalo.

A viagem deste segundo Pizarro foi um roteiro de misérias. A escalada dos Andes custou à expedição mais que o pior dos combates. Tiveram de comer frutos desconhecidos e raízes, solas de sapatos e arreios. Já na encosta leste dos Andes, Gonzalo Pizarro faz uma parada estratégica e manda cinquenta homens em busca de alimentos. No comando envia Orellana, do qual esperaria socorro, em vão: o cavalheiro foge para a imortalidade. Vai descobrir o rio das Amazonas.

Do rio Coca, onde estava Gonzalo Pizarro, Francisco Orellana chegou ao rio Napo. Após uma jornada de 600 quilômetros pelo rio Napo, sob a ameaça constante dos índios omáguas, ele atingiu um caudal barrento que chamou de rio Orellana. E o seguiu, abandonando Gonzalo à sua própria sorte. O rio barrento era o Solimões, cujo nome é uma referência aos nomes dos povos que originalmente habitavam suas margens, os índios Sorimões (ou ainda Joriman ou Sorimão), termo derivado da palavra latina solimum, referência ao veneno utilizado nas pontas de flechas e dardos destes povos.

Os navegantes seguiram pelo rio Solimões por mais 1.200 quilômetros até a sua confluência com o rio Negro, que alcançaram no dia 3 de junho de 1542. O rio nascido daquele “encontro das águas” foi designado pelos membros da expedição como Grande Río, Mar Dulce e Río de la Canela. Orellana alegou ter encontrado em suas margens grandes caneleiras, árvores das quais se obtem a canela, uma das especiarias mais importantes e desejadas na Europa da época. A árvore, no entanto, não é nativa da América do Sul e só podia ser encontrada, à época, no Oriente. Outras plantas semelhantes, no entanto, como o loureiro e o pau-rosa, são nativas da região, e Orellana poderia estar se referindo a elas. Depois de muito viajar, numa segunda-feira, conta frei Gaspar Carvajal, cronista da viagem, Orellana e seus homens chegaram a um povoado indígena, em cuja praça se erguia um palanque representando uma cidade murada. Perguntando aos índios, “por cual memoria tenían aquello”, responderam que os habitantes da aldeia eram servidores das “icamiabas” (na língua dos índios, “mulheres sem marido”).

Diz frei Carvajal que um índio prisioneiro informou serem elas todas solteiras. Moravam sete dias rio Nhamundá acima, em setenta povoados, com muralhas que se comunicavam por estradas bem guardadas. Diz Carvajal: “El Capitán (Orellana), le preguntó sí estas mujeres parían; el indio dijo que si. El capitán le dijo que, como, no siendo casadas, ni reside hombre entre ellas, se empreñaban. Él dijo que estas indias participan com indios em tiempos, y quando les viene aquela gana (...) por fuerza los traen a sus tierras y los tienem consigo aquele tiempo que se les antoja, y después que las hayan preñadas les tornam a enviar a sua tierra (...); y después, cuando vienne el tiempo que han de parir, que si paren hijo le matan y le envian a sus padres, y si hija la crían com muy gran solemnidade”.

Descendo mais, na foz do rio Nhamundá, Orellana teria travado feroz encontro com essas guerreiras. Não tinha jeito ruim a batalha naquele dia 24 de junho, dia de São João. Dos bergantins, os homens de Francisco Orellana estavam esvaziando de inimigos, com rajadas de arcabuz e de balestra, as brancas canoas vindas da costa. Mas aí, a bruxa deu as caras. Apareceram as mulheres guerreiras, tão belas e ferozes que eram um escândalo, e então as canoas cobriram o rio e os navios saíram correndo, rio abaixo, como porco-espinhos assustados, eriçados de flechas de proa a popa e até no mastro-mor.


As capitãs lutaram rindo. Se puseram à frente dos homens, fêmeas garbosas, e já não houve medo na aldeia de Conlapayara. Lutaram rindo e dançando e cantando, as tetas vibrantes no ar, até que os espanhóis se perderam para lá da boca do rio Tapajós, exaustos de tanto esforço e assombro. Tinham ouvido falar destas mulheres, e agora acreditam. Elas vivem ao sul, em senhorios sem homens, onde afogam os filhos que nascem varões. Quando o corpo pede, dão guerra às tribos da costa e conseguem prisioneiros. Os devolvem na manhã seguinte. Ao cabo de uma noite de amor, o que chegou rapaz regressa velho.

Orellana e seus soldados continuarão percorrendo o rio mais caudaloso do mundo e sairão ao mar sem piloto, nem bússola, nem carta de navegação. Viajam nos bergantins que eles construíram ou inventaram a golpes de machado, em plena selva, fazendo pregos e bisagras com as ferraduras dos cavalos mortos e soprando o carvão com botinas convertidas em foles. Deixam-se ir sem rumo pelo rio das Amazonas, costeando a selva, sem energias para o remo, e vão murmurando orações: rogam a Deus que sejam machos, por mais machos que possam ser, os próximos inimigos.

A história ou o mito maravilhoso das icamiabas dominou o resto da viagem. Orellana rebatizou o grande rio: de rio das Canelas passou a chama-lo de rio das Amazonas. O espanhol voltou à América, em 1550, como governador-geral do território por ele descoberto. Mas morreu de malária, com 44 anos, na costa da atual Guiana Francesa, depois de dois meses no labirinto de ilhas do arquipélago de Marajó, procurando, em vão, a entrada do rio das Amazonas.

Realidade ou ficção, a lenda das amazonas/icamiabas se enraizou de tal forma no imaginário da população nativa que passou a fazer parte do folclore da região. Foi por causa desse folclore que a Província de São José do Rio Negro se transformou em Amazonas, após se desmembrar da Província do Grão-Pará, em 1850, e posteriormente toda a região que abrange a maior floresta tropical do planeta passou a se chamar Amazônia.

Mas afinal de contas o que é folclore? Segundo a Carta do Folclore Brasileiro, aprovada pelo I Congresso Brasileiro de Folclore, em 1951, “constituem fato folclórico as maneiras de pensar, sentir e agir de um povo, preservadas pela tradição popular, ou pela imitação, e que não sejam diretamente influenciadas pelos círculos eruditos e instituições que se dedicam ou à renovação do patrimônio científico e artístico humano ou à fixação de uma orientação religiosa e filosófica”.

Na verdade, todos os povos possuem suas tradições, crendices e superstições, que são transmitidas através de lendas, contos, narrativas, provérbios e canções. Esses veículos de expressão popular são transmitidos de uma geração a outra e passam a pertencer a um determinado povo de tal modo que desconhecemos os seus autores.

As lendas são estórias contadas por pessoas e transmitidas oralmente através dos tempos. Misturam fatos reais e históricos com acontecimentos que são frutos da mais fantástica fantasia. As lendas geralmente fornecem explicações plausíveis e até certo ponto aceitáveis para coisas que não têm explicações científicas comprovadas, como acontecimentos misteriosos ou sobrenaturais. Muitas dessas lendas são derivações de narrativas mitológicas dos povos europeus – e aqui podemos citar o caso da Yara ou Mãe d’Água, uma sereia da Amazônia que parece ter sido inspirada nas sereias da mitologia grega narradas por Homero, na “Odisseia”. Como diz o dito popular que “quem conta um conto aumenta um ponto”, as lendas, pelo fato de serem repassadas oralmente de geração a geração, sofrem alterações à medida que vão sendo recontadas.

Os mitos são narrativas mais bem elaboradas que possuem um forte componente simbólico. Como os povos da antiguidade não conseguiam explicar os fenômenos da natureza através de explicações científicas, criavam mitos com este objetivo: dar sentido às coisas do mundo. Os mitos também serviam como uma forma de transmitir conhecimentos e alertar as pessoas sobre perigos e ameaças, desvios de conduta, ambição, orgulho, inveja e outros defeitos ou qualidades inerentes ao ser humano. Deuses, heróis e personagens sobrenaturais se misturam com fatos da realidade para dar sentido à vida e ao mundo. Ao contrário da explicação filosófica, que se utiliza da argumentação lógica para explicar a realidade, o mito explica a realidade através de suas histórias sagradas, que não possuem nenhum tipo de embasamento científico para serem aceitas como verdadeiras. Todas as culturas possuem seus mitos. Alguns assuntos, como a criação do mundo, deram origem a vários mitos diferentes.

A origem das superstições está na visão mágica, sobrenatural e irracional que se tem do mundo. Segundo Luís da Câmara Cascudo, as crendices populares “participam da própria essência intelectual humana e não há momento na história do mundo sem a sua inevitável presença”. Algumas dessas superstições são sobejamente conhecidas: passar embaixo de escada dá azar. Coceira na palma da mão é sinal de que há dinheiro chegando. A visita chata vai embora se uma vassoura for colocada atrás da porta. Quebrar um espelho dá sete anos de azar. Se a sua orelha estiver quente ou vermelha, alguém está falando mal de você. Não se deve deixar o chinelo virado de ponta-cabeça porque isso traz mau agouro. Pé de coelho, trevo de quatro folhas e ferradura dão sorte. Bater na madeira três vezes espanta o azar. Faça um pedido para uma estrela cadente e ele vai se realizar.

O folclore também se associa frequentemente às tradições religiosas, acrescentando elementos novos aos rituais tradicionais. Grandes festas populares como o carnaval no Brasil, o mardi gras nos EUA e o dia de São Patrício na Irlanda, são alguns exemplos disso. O sincretismo religioso, isto é, as misturas de rituais e crenças religiosas de várias tradições, quase sempre se faz presente na base constitutiva da cultura popular. A prática de se “benzer” um doente, de se “fechar o corpo” contra males por meio de feitiços, de se “rezar” com folhas de arruda ou de pião roxo para tirar o “quebranto” de uma criança e outras variações semelhantes, são resultado deste sincretismo.


Em linhas gerais, as tradições populares são conservadas através do folclore. Por meio de um folguedo, como o do “boi-bumbá”, toda uma herança imaterial – isto é, um estoque de valores e sabedoria tradicionais – é passado de geração em geração. Entre as lendas e mitos mais conhecidos do Brasil podemos citar os seguintes:

Boitatá – Representada por uma cobra de fogo que protege as matas e os animais e tem a capacidade de perseguir e matar aqueles que desrespeitam a natureza. Acredita-se que este mito é de origem indígena e que seja um dos primeiros do folclore brasileiro. Foram encontrados relatos do boitatá em cartas do padre jesuíta José de Anchieta, em 1560. Na região nordeste, o boitatá é conhecido como “fogo que corre”.

Boto – Acredita-se que a lenda do boto tenha surgido na região amazônica. Ele é representado por um homem jovem, bonito e charmoso que encanta mulheres em bailes e festas. Após a conquista, leva as jovens para a beira de um rio e as engravida. Antes de a madrugada chegar, ele mergulha nas águas do rio para transformar-se em um boto novamente. Por este motivo, a população ribeirinha costuma afirmar que o boto é o pai de todos os filhos de origem desconhecida.

Boiaçu – Cobra grande, também conhecida como “boiuçu”. No lendário amazônico há uma enorme variedade de estórias onde a cobra grande é a figura central, que vira canoas, interdita rios e ilumina as águas escuras com seus olhos de fogo. Uma das mais conhecidas é a dos irmãos gêmeos Honorato e Maria Caninana, nascidos na região do rio Trombetas, no Pará. O poema “Cobra Norato”, do poeta modernista Raul Bopp, ajudou a popularizar a lenda.

Curupira – Personagem travesso do folclore brasileiro, o Curupira é a representação de um menino com cabelos vermelhos, dentes verdes e pés virados para trás. A origem do nome é do tupi-guarani que significa “corpo de menino”. Considerado o protetor da fauna e da flora, o Curupira assobia e deixa pegadas com seus pés virados com o objetivo principal de enganar os exploradores e destruidores da natureza. Quando alguém desaparece nas matas, muitos habitantes do interior acreditam que é obra do Curupira.

Lobisomem – De origem europeia, a lenda do Lobisomem retrata um monstro violento com formas humanas e de lobo, que se alimenta de sangue. Acredita-se que quando uma mulher tem sete filhas e o oitavo filho é homem, esse último provavelmente será um Lobisomem. Outra versão sustenta que um homem foi atacado por um lobo numa noite de lua cheia e não morreu, porém desenvolveu a capacidade de transformar-se em lobo e atacar todo mundo que encontra pela frente. Noutras regiões, a lenda apresenta outras características, visto que o Lobisomem sempre se manifesta em crianças não batizadas. A transformação ocorre nas encruzilhadas em noites de lua cheia por volta da meia noite. Entretanto, ao amanhecer, ele torna-se novamente humano. Somente um tiro de bala de prata em seu coração seria capaz de matá-lo. Uma das variantes desta lenda na região Norte dá conta de que homens e mulheres se transformam em porcos nas noites de sexta-feira.

Mãe-D'água – Conhecida como “Yara” ou “Uiara”, a lenda da Mãe-D’água é de origem tupi e o nome significa “Senhora das Águas”. Esta personagem representa uma sereia belíssima que atrai os pescadores com suas doces canções a fim de matá-los. Antes de ser uma sereia, Yara era uma índia extremamente bela e inteligente que despertava muita inveja na tribo, inclusive de seus irmãos. Assim, com o intuito de acabarem com o problema, os irmãos resolveram matá-la, mas no final foi ela que acabau os matando. Como punição, os outros índios da tribo acorrentaram e lançaram Yara no encontro das águas dos rios Negro e Solimões. A partir daí ela se transformou em uma sereia com objetivo de encantar todos os homens que encontrar e leva-los para o seu reino no fundo do rio. Encontramos na mitologia universal um personagem muito parecido com a Mãe-D’água: a sereia. Este personagem tem o corpo metade de mulher e metade de peixe. Com seu canto atraente, ela também consegue encantar os homens e levá-los para o fundo das águas.

Corpo-seco – É uma espécie de assombração que fica assustando as pessoas nas estradas. Em vida, era um homem que foi muito malvado e só pensava em fazer coisas ruins, chegando a prejudicar e maltratar a própria mãe. Após sua morte, foi rejeitado pela terra e teve que viver como uma alma penada.

Pisadeira – É uma velha de chinelos que aparece nas madrugadas para pisar na barriga das pessoas, provocando a falta de ar. Dizem que costuma aparecer quando as pessoas vão dormir de estômago muito cheio.

Cuca – De origem portuguesa, a lenda da Cuca está associada muitas vezes com o “bicho papão”, ou seja, ela é uma personagem muito temida pelas crianças, pois reza a lenda que se trata de uma velha feia e malvada, com cara de jacaré que raramente dorme. Sua personagem está associada ao rapto de crianças desobedientes e que apresentam resistência para dormir. Por isso, a tradicional cantiga de ninar crianças expõe o seguinte trecho: “Nana neném que a Cuca vem pegar”.

Mula-sem-cabeça – Segundo a lenda, a mula sem cabeça é um monstro do folclore brasileiro que se manifesta quando uma mulher namora um padre e, por maldição, é transformada em mula. Bastante conhecida em todo o Brasil, esta personagem folclórica é representada, literalmente, por uma mula sem cabeça, que solta fogo pelo pescoço e tem como finalidade assustar pessoas e animais.

Mãe-de-ouro – Representada por uma bola de fogo que indica os locais onde se encontra jazidas de ouro. Também aparece em alguns mitos como sendo uma mulher luminosa que voa pelos ares. Em alguns locais do Brasil, toma a forma de uma mulher bonita que habita cavernas e, após atrair homens casados, os faz largar suas famílias.

Saci-Pererê – Nome de origem tupi-guarani, o Saci-pererê é uma das lendas brasileiras mais conhecidas. É representada por um menino negro que possui uma perna só, fuma cachimbo e usa um gorro vermelho, que lhe dá poderes mágicos. Muito brincalhão, o Saci se manifesta tal qual um redemoinho, vive aprontando travessuras e se diverte muito com isso. Adora espantar cavalos, queimar comida e acordar pessoas com gargalhadas. Embora o Saci-pererê seja o mais conhecido, existem três tipos de saci: o Pererê, o Trique e o Saçurá.

Comadre Florzinha – É uma fada pequena que vive nas florestas do Brasil. Vaidosa e maliciosa possui cabelos compridos e enfeitados com flores coloridas. Vive para proteger a fauna e a flora. Junto com suas irmãs costumam aplicar sustos e fazer travessuras com os caçadores e pessoas que tentam desmatar a floresta


Negrinho do Pastoreio – De origem afro-cristã e pertencente ao folclore do sul do País, o Negrinho do Pastoreio representa a história de um menino escravo que foi muito castigado pelo seu patrão. Um dia, quando foi pastorear os cavalos, acabou por perder um cavalo baio. Depois de ter sido martirizado violentamente pelo fazendeiro e jogado semimorto num formigueiro, o Negrinho do Pastoreio reapareceu sem marcas nenhuma pelo corpo, ao lado da Virgem Maria e montado no cavalo baio. Curioso notar que muitas vezes, as pessoas que perderam algum objeto, acendem uma vela e pedem para o Negrinho ajudá-los a recuperá-lo.

Além dos mitos e lendas, o folclore brasileiro apresenta uma grande diversidade cultural. Podemos também considerar como legítimas representações do nosso folclore os ritmos e danças folclóricas (quadrilhas, cirandas, carimbó, capoeira, frevo), comidas regionais típicas (canjica, tacacá, caruru, maniçoba, vatapá), músicas regionais (embolada, siriá, baião, xote, forró), encenações (marujada, bumba-meu-boi, congada, maracatu, cavalhada), representações artísticas (artesanato, confecção de rendas e cestas de palha, pinturas näif), brincadeiras e jogos infantis (trinta-e-um-alerta, boca-de-forno, macaca, barra-bandeira, garrafão), ditos populares (“isso é do tempo do Onça”, “aquilo é um caraxué!”), literatura de cordel, crendices e festas populares (carnaval, festa junina, Festa do Divino, Círio de Nazaré e Folia de Reis).

A palavra folclore foi utilizada pela primeira vez num artigo do arqueólogo William John Thoms, publicado no jornal londrino “O Ateneu”, em 22 de agosto de 1846 (por isso 22 de agosto é o dia do folclore). Ela é formada pelos termos de origem saxônica: “folk” que significa “povo” e “lore” que significa “saber”. Portanto o “folklore” é o saber do povo ou a sabedoria popular. No Brasil, a palavra adaptada tornou-se “folclore”.

Como todo mundo já sabe, o nosso folclore foi resultado da miscigenação de três povos (indígena, português e africano) e da influência dos imigrantes de várias partes do mundo. Por isso, nosso país tem uma tradição folclórica variada, rica e muito peculiar. Em cada região brasileira, o folclore apresenta semelhanças e diferenças.

Um grande estudioso do folclore nacional foi o já citado Luís da Câmara Cascudo, nascido em Natal, no Rio Grande do Norte em 1898 e autor de mais de 150 livros. Ainda hoje, a obra de Câmara Cascudo é uma referência imprescindível para se tratar do folclore, até porque diversas expressões folclóricas brasileiras por ele documentadas já desapareceram e não podem mais ser observadas. O folclore, em especial a partir do século 20, serviu de base para a produção da arte culta brasileira. Os exemplos estão presentes em todas as artes. O pintor ítalo-brasileiro Alfredo Volpi fez das bandeiras das festas juninas um elemento frequente de seus quadros e gravuras. O compositor fluminense Heitor Villa-Lobos aproveitou-se de temas do folclore em sua obra musical.

Na literatura, há no mínimo três autores de importância indiscutível que se utilizaram de elementos da cultura popular. O paulista Mário de Andrade, grande estudioso do folclore, escreveu sua obra-prima, “Macunaíma”, reunindo com olhar irônico e crítico inúmeras narrativas do folclore brasileiro. O mineiro João Guimarães Rosa, autor de “Grande Sertão: Veredas” – um clássico da literatura nacional – tematiza a vida do sertanejo e trabalha tanto elementos característicos de narrativas folclóricas, quanto a própria forma sertaneja de uso da língua portuguesa. Da mesma maneira, o paraibano Ariano Suassuna compôs uma ampla obra teatral baseada na tradição folclórica nordestina. Como exemplo, podem-se citar “O Auto da Compadecida” ou “A Pena e a Lei”, sem falar no monumental “Romance da Pedra do Reino”.


Convém lembrar que o folclore brasileiro – ligado ao universo rural, pois a industrialização do país é recente, em termos históricos – chegou a influenciar nossos meios de comunicação de massa. O ator e diretor Amácio Mazzaropi levou o caipira do interior paulista para as telas do cinema. O animador de programas de auditório Abelardo Chacrinha Barbosa fez enorme sucesso na TV utilizando-se elementos de festas populares do Nordeste, como as disputas entre cordões (o encarnado e o azul), que eram mediados por um velho, a quem Chacrinha personificava (O Velho Guerreiro). Nos meios de comunicação de massa, como o cinema, a estética dos circos mambembes que percorriam o interior do país também pode ser encontrada em produções cinematográficas inusitadas como os filmes de terror de José Mojica Marins, conhecido como Zé do Caixão.

A Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura) considera o folclore sinônimo de cultura popular na medida em que “representa a identidade social de uma comunidade por meio de suas criações culturais, coletivas ou individuais, sendo uma parte significativa da vida cultural de cada nação”. Sustenta também que o folclore não é um conhecimento “cristalizado”, embora tenha raízes nas tradições, que podem ser muito antigas, mas que se transforma a partir do contato entre as culturas distintas, oriundas das migrações, e através dos meios de comunicação, nos quais se inclui ultimamente a internet. Parte do trabalho da Unesco é orientar as comunidades para bem administrarem sua herança folclórica, observando que o progresso e as transformações provocam mudanças que tanto podem enriquecer uma cultura como destroçá-la definitivamente.

Foi para resgatar nosso folclore nativo que tive a iniciativa de organizar este livro, sob a orientação do saudoso artista plástico, antropólogo e escritor Moacir Andrade, presidente da Sociedade para a Defesa da História e das Tradições Populares do Amazonas, falecido em julho de 2016, e contando com a imprescindível colaboração dos livreiros Antônio Diniz e Simas Pessoa. Não é um trabalho acadêmico sobre o folclore. É um livro de recordações que tem como mote o folclore amazonense praticado em Manaus. Dito de outra forma, esta simplória antologia é apenas uma contribuição menor sobre o assunto e visa sobretudo resgatar tanto os nomes dos pioneiros na criação de grupos folclóricos em nossa cidade quanto os daqueles dirigentes abnegados que na atualidade continuam pegando o pião na unha para colocar seu grupo folclórico na rua. Espero sinceramente que esse pequeno objetivo tenha sido alcançado.

Mas por que este livro sobre o folclore manauara se chama dabacuri? Bem, o dabacuri é uma cerimônia ritualística milenar dos povos indígenas do Alto Rio Negro que envolve a troca de conhecimentos entre as tribos dessa localidade sobre culinária, danças, frutos, peixes, artefatos, casas ancestrais, alianças matrimoniais, ritos de passagens, criação da humanidade, dos passáros, dos animais, dos seres míticos, dos astros, das estrelas, dos rios e das matas, numa tentativa de preservar essas informações para as futuras gerações. Acredito que transformar a literatura oral de nossos folcloristas manauaras em uma pequena obra literária acessível a um número maior de pessoas está dentro desse espírito comunitário e preservacionista que sempre moveu os povos da floresta. Por essa ótica, dabacuri e literatura oral são os dois lados da mesma moeda.

Simão Pessoa

quinta-feira, abril 02, 2020

Amigos, amigos… Caramba!



Américo Rodrigues, conhecido como Zé Américo - Foto: Arquivo pessoal

Por Mouzar Benedito

Uma vez o cartunista Fortuna foi visitar o Barão de Itararé e o apartamento dele estava cheio de baratas. Fortuna ameaçou pisar numa delas e o Barão não deixou: “Elas são minhas amigas”. E contou por quê.

Segundo ele, que foi preso em consequência da “Intentona Comunista”, na cadeia os presos tentavam se comunicar com outros de outras celas. Tentaram treinar uns ratos para levar mensagens em papel amarrado neles. Na hora H, “eles se comportavam como ratos mesmo”, contou o Barão. Em vez de levar as mensagens para o lugar para o qual tinham sido treinados, iam em direção à polícia, aos carcereiros. Aí experimentaram com baratas. Deu certo. Amarravam nelas papeizinhos com letrinhas minúsculas e elas levavam essas mensagens fielmente. Não sei como treinaram as baratas, mas o Barão garantia que era verdade.

Gosto de animais (nunca prendi nenhum, nem domestiquei), mas não de baratas, e minhas grandes amizades – tenho muitas – são humanas. Mas elas vão diminuindo.

Nos últimos tempos muitos amigos estão indo desta para uma melhor. Antes acontecia também, mas agora é com mais frequência. Tenho me lembrado da música “Canção da América”, interpretada por Milton Nascimento, especialmente do trecho que diz:“Amigo é coisa pra se guardar debaixo de sete chaves”. Uma época ouvi tanto essa música em enterros que pensei em mudar a letra com uma ironia triste: “Amigo é coisa pra se guardar debaixo de sete palmos”.

Ela não é mais cantada em enterros, pelo menos não ouvi.

Aliás, no final de março, perdi mais um amigo e para ele não houve “Canção da América”, nem mesmo despedida de amigos, por causa do confinamento em que estávamos. A morte não foi provocada pelo maldito coronavírus, foi ataque cardíaco. Acho que o clima de obscurantismo que abunda no Brasil atual deve ter influenciado.

Américo Rodrigues, conhecido como Zé Américo, foi meu colega de faculdade na USP nos anos brabos. Inteligente, criativo, ecologista quando esta palavra era praticamente desconhecida, foi ser professor de Geografia em São Luiz do Paraitinga. No começo da recriação do carnaval na cidade, fundamos (ideia dele) o bloco “Peida N’Água”, crítico e divertido. De lá para cá, muitos luizenses me disseram, com orgulho, se sentirem bem informados e críticos: “Fui aluno do professor Américo”.

Foi enterrado em Tremembé, sem a presença de quase ninguém. Só a mulher, Rose, e, acho, alguns poucos parentes.

Bem… Em vez de continuar falando dos meus amigos, o que ficaria parecendo puxação de saco, resolvi selecionar frases sobre amigos e amizade. São tantas (a maioria um tanto melosa) que não daria pra publicar nem um décimo. E não sei se escolhi as “melhores”. Procurei incluir algumas que vão contra o que penso. Aí vão elas:

Marguerite Yourcenar: “A amizade é, acima de tudo, certeza – é isso que a distingue do amor”.

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Carmem Sylva: “O amor pede, a amizade dá”.

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Blaise Pascal: “O amor é cego, a amizade fecha os olhos”.

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Sophie Arnould: “A amizade é irmã do amor, mas não na mesma cama”.

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Ditado popular: “Quem teima em dizer verdades, perde amizades”.

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Albert Camus: “Não ande na minha frente, eu posso não te seguir. Não ande atrás de mim, eu não posso liderar. Apenas ande ao meu lado e seja meu amigo”.

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Ditado típico dos capitalistas: “Amigos, amigos. Negócios, à parte”.

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Atribuída a Getúlio Vargas, mas poderia ser do Bolsonaro e sua turma: “Aos amigos, tudo. Aos inimigos, a lei”.

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Epicuro: “Não é tanto a ajuda de nossos amigos que nos ajuda, como a confiança de sua ajuda”.

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Leoni Kaseff: “A amizade é como a saúde: só depois de a perder se aquilata o seu valor”.

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O cachorrinho (personagem criado pelo Ohi e por mim, no jornal “Brasil Agora”, falando sobre Boris Ieltsin, presidente russo que escancarou o país aos capitalistas e tinha fama de manguaceiro): “Os inimigos me chamam de bêbado, os amigos me chamam para tomar mais uma”.

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Malba Tahan: “A boa amizade é para o homem o que a água pura e límpida é para o beduíno sedento”.

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Eu: “Quando um não quer, dois não são amigos”.

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Ditado popular: “Quem de todos é amigo, ou muito pobre ou muito rico”.

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Marlene Dietrich: “São os amigos que você pode ligar às 4h da manhã que importam”.

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Ditado popular: “Quem é amigo de todos, não o é de ninguém”.

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Francisco de Almeida: “As amizades fundadas em interesses (se as dessa qualidade podem ter esse nome) não duram mais que enquanto dura a ocasião e a esperança do proveito”.

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Ditado popular: “A amizade finda onde a desconfiança começa”.

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Francisco de Bastos Cordeiro: “Para as moléstias do corpo há vários remédios; para as da alma só há um: o amigo”.

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D. Xiquote (pseudônimo do escritor Bastos Tigre): “O verdadeiro amigo não esquece o favor que lhe prestamos; recorda-o para solicitar outros”.

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D. Xiquote, de novo: “Amigos do peito… sim, eles existem e é fácil encontrá-los entre as criancinhas de mama”.

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Capistrano de Abreu: “Sei que um respingo de lama não quebra osso; mas que prazer pode causar-me ver, por perfídia alheia, emporcalhado o rosto de um amigo?”.

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Capistrano de Abreu, de novo: “Uma amizade que se perde é como um vício que se larga; ganha-se com a perda”.

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Capistrano de Abreu, mais uma vez: “Os jesuítas tinham razão: nada de amigos íntimos”.

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Ditado popular: “Quem deixa de ser amigo, não o foi nunca”.

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Kim Hubbard: “Amigo é aquele que sabe tudo a seu respeito e, mesmo assim, ainda gosta de você”.

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Provérbio alemão: “Todo amigo é o sol do outro; ele puxa, ele segue”.

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Ditado popular: “Amigo de genro, sol de inverno”.

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Leonardo da Vinci: “Repreende o amigo em segredo e elogia-o em público”.

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Ditado popular: “Defeitos de meu amigo, lamento, mas não maldigo”.

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Júlio Diniz: “Há corações como a hera, que, onde quer que se encosta, prende-se com raízes”.

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Ditado popular: “Busca a amizade do teu igual, se és honrado e leal”.

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Rui Barbosa: “Amigos e inimigos estão, amiúde, em posições trocadas. Uns nos querem mal, fazem-nos bem. Outros nos almejam o bem, e nos trazem o mal”.

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Cora Coralina: “O amigo não passa a mão / Quando fizemos algo errado. / Está firme do nosso lado / Puxa a orelha, chama a razão”.

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Camilo Castelo Branco: “Em coisas insignificantes é que um verdadeiro amigo se avalia”.

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Ditado popular: “Amigos reconciliados, inimigos disfarçados”.

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Ditado popular: “Amigo remendado, café requentado”.

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Immanuel Kant: “A amizade é semelhante a um bom café; uma vez frio, não se aquece sem perder bastante do primeiro sabor”.

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Ditado popular: “Amigo, vinho e café, o mais antigo melhor é”.

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Leoni Kaseff: “Os parentes são amigos pelo corpo; os amigos são parentes pela alma”.

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Ditado popular: “Amigo velho é parente”.

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George Ade: “Com o tempo, qualquer amigo muito próximo e querido acaba se tornando tão inútil quanto um parente”.

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Ditado popular: “Mais vale amigo próximo do que parente afastado”.

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Donna Roberts: “Um amigo conhece a música do meu coração e canta para mim quando minha memória falha”.

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Ditado popular: “Bom é ter amigos ainda que seja no inferno”.

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Boris Karloff: “Os monstros foram os melhores amigos que já tive”.

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Ditado popular: “Mais vale deixar na morte ao inimigo do que perder na vida ao amigo”.

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Machado de Assis: “Há amigos de oito dias e indiferentes de oito anos”.

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Ditado popular: “Conhecidos muitos, amigos poucos”.

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Walther Waeny: “Um amigo que cala vale tanto quanto um inimigo que fala”.

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Ditado popular: “Amigo que não serve e faca que não corta, que se perca pouco importa”.

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Alfred de Musset: “As coisas mais desagradáveis que os nossos piores inimigos nos dizem pela frente não se comparam com as que nossos amigos dizem de nós por trás”.

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Oscar Wilde: “A melhor maneira de começar uma amizade é com uma boa gargalhada. De terminar com ela, também”.

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Ditado popular: “Mais vale um cachorro amigo do que um amigo cachorro”.

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Elizabeth Bowen: “A intimidade entre as mulheres é sempre ao contrário: começa com a troca de grandes revelações e termina com a troca de abobrinhas”.

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Condessa Marie B. Diane: “Nosso verdadeiro amigo é aquele que não nos desculpa nada e nos perdoa tudo”.

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Sidonie Collete: “Convém tratar a amizade como os vinhos, desconfiando das misturas”.

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Ditado popular: “Mais vale um amigo na praça do que dinheiro no caixa”.

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Florbela Espanca: “A amizade é o maior sentimento que não morre”.

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Tati Bernardi: “Amigo de verdade não é aquele que sempre te atura triste, denso e monotemático. Mas o que fala: mano tu tá mala”.

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Simone Weil: “A amizade não se busca, não se sonha, não se deseja; ela exerce-se (é uma virtude)”.

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Confúcio: “Para conhecermos os amigos é preciso passar pelo sucesso e pela desgraça. No sucesso, verificamos a quantidade; na desgraça, a qualidade”.

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Ditado popular: “Conhece-se o amigo na ocasião incerta”.

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Balzac: “A infelicidade tem isto de bom: faz-nos conhecer os verdadeiros amigos”.

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Cecília Meireles: “Há pessoas que nos falam e nem as escutamos, há pessoas que nos ferem e nem cicatrizes deixam, mas há pessoas que simplesmente aparecem em nossas vidas e nos marcam para sempre”.

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Provérbio inglês: “Não há pior inimigo que um falso amigo”.

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Machado de Assis: “Felizes os cães, que pelo faro descobrem os amigos”,

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Ditado popular: “Com um amigo desses, quem precisa de inimigos?”.

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Mark Twain: “A vida ideal consiste em ter bons amigos, bons livros e uma consciência sonolenta”.

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Elmer C. Leiterman: “Só existe uma coisa melhor do que fazermos novos amigos: conservar os velhos”.

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Linda Grayson: “Não há nada melhor do que um amigo, a não ser um amigo com chocolate”.

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Ditado popular: “Amizade de sogra e nora, só da boca pra fora”.

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Aristóteles: “A amizade é uma alma com dois corpos”.

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Jean Rostand: “Um amigo é a pessoa a quem mais se dá crédito quando fala mal de nós”.

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Ditado popular: “Amigo de meu compadre, porém mais da verdade”.

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Carlos Drummond de Andrade: “Como as plantas, a amizade não deve ser muito nem pouco regada”.

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Drummond, de novo: “A amizade é um meio de nos isolarmos da humanidade cultivando algumas pessoas”.

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Saint Exupéry: “Num mundo que se faz deserto, temos sede de encontrar um amigo”.

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Francis Bacon: “Não há solidão mais triste do que a do homem sem amizades. A falta de amigos faz com que o mundo pareça um deserto”.

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Francis Bacon, de novo: “A amizade duplica as alegrias e divide as tristezas”.

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Provérbio chinês: “Difícil é ganhar um amigo em uma hora; fácil é ofendê-lo em um minuto”.

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Millôr Fernandes: “Pais e filhos não foram feitos para ser amigos. Foram feitos para ser pais e filhos”.

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Millôr, de novo: “A verdadeira amizade é aquela que nos permite falar, ao amigo, de todo os seus defeitos e de todas as nossas qualidades”.

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Mário Quintana: “Não te abras com teu amigo / que ele um outro amigo tem. / E o amigo do teu amigo / possui amigos também”.

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Garth Henrichs: “A gente não faz amigos, reconhece-os”.

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Sócrates: “O amigo deve ser como o dinheiro, cujo valor já conhecemos antes de termos necessidade dele”.

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Ethel Barrimore: “O melhor momento para fazer amigos é antes que você precise deles”.

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Orson Welles: “Nós nascemos sozinhos, vivemos sozinhos e morremos sozinhos. Somente através do amor e da amizade é que podemos criar a ilusão, durante uns momentos, de que não estamos sozinhos”.

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Jô Soares: “Não há amizade que, por mais profunda que seja, resista a uma série de canalhices”.

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Elisabeth Foley: “A descoberta mais bonita que os verdadeiros amigos fazem é que podem crescer separadamente sem se separarem”.

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Oprah Winfrey: “Muitas pessoas querem ir com você na limusine, mas o que você quer é alguém que vá com você quando a limusine quebrar”.

terça-feira, março 24, 2020

Morre Albert Uderzo, um dos criadores de Asterix e Obelix



Albert Uderzo, com bonecos de Asterix e Obelix, em 2007

Por Silvia Ayuso, de Paris

Asterix e Obelix ficaram órfãos. Sobretudo Obelix, o chouchou (favorito) de Albert Uderzo, criador, junto com René Goscinny, dos dois gauleses mais famosos da história e do planeta. O desenhista morreu nesta terça-feira em sua casa, em Paris, aos 92 anos, vítima de “uma crise cardíaca sem relação com o coronavírus”, como foi obrigada a família a esclarecer nestes tempos de pandemia.

Fazia quase uma década que Uderzo (Fismes, Marne, 1927) havia entregado a terceiros o destino da aldeia gaulesa, que assumira de forma solitária após a morte de seu parceiro de aventuras e quadrinhos, o roteirista Goscinny, em 1977. Os sucessores foram Didier Conrad e Jean-Yves Ferri, autores dos últimos quatro álbuns dos personagens. “Entregar Asterix me dilacerou um pouco”, confidenciou ele ao Le Parisien no final de 2018, numa das últimas entrevistas que concedeu.

Não é de se estranhar. O pequeno guerreiro de bigodes loiros e seu bojudo amigo ruivo, de profissão entregador de menires, marcaram sua vida por mais de seis décadas, desde que nasceram de seus lápis e da mente de seu amigo roteirista, numa calorosa tarde do verão de 1959, na sala de seu modesto apartamento de Bobigny, na periferia de Paris.

Ninguém imaginava na época que esses personagens publicados inicialmente na revista Pilote ultrapassariam as barreiras de línguas, culturas e gerações, como demonstram os mais de 380 milhões de exemplares vendidos em 111 idiomas e dialetos.

O segredo desse sucesso? Nem ele mesmo sabia ao certo. “É como se me perguntassem a receita da poção mágica”, brincou Uderzo no jornal parisiense. Asterix e Obelix são os protagonistas de uma HQ “transgeracional, com um espírito independente”. “Reconheço que jamais consegui me explicar esse sucesso. Nunca achei que duraria tanto. René Goscinny dizia: ‘Parecemos idiotas que não sabem o que fabricaram’. Mas não teríamos conseguido nada sem trabalho. O sucesso é, acima de tudo, horas e horas de trabalho”, declarou.

Era algo que Uderzo sempre soubera. Autodidata e amante dos personagens de Walt Disney, desde muito pequeno soube que queria ser desenhista, embora a Segunda Guerra Mundial tenha adiado seus planos. Entretanto, depois do conflito, Uderzo entrou de cabeça no mundo dos quadrinhos e criou seus primeiros personagens: Flamberge, Clopinard, Zartan e Belloy, o Invulnerável…

Pouco a pouco eles foram afinando seu estilo até torná-lo inconfundível, especialmente esses heróis que parecem “inflados com hélio”, como costumava dizer com carinho sobre suas criações, especialmente Obelix. Depois da guerra, Uderzo trabalhou como ilustrador para o France Dimanche e também para duas agências de imprensa, World Press e International Press, onde se encontraria com outros futuros grandes nomes das HQs francesas, como Jean-Michel Charlier e Victor Hubinon.

Em 1951, isso o levou também a encontrar alguém que marcaria seu destino, René Goscinny, com quem oito anos mais tarde criaria, com outros amigos e ilustradores, a revista Pilote. Na página 20 de seu primeiro número, em 29 de outubro de 1959, aparecem as primeiras tiras das aventuras de Asterix, o gaulês. O sucesso de vendas, 300.000 exemplares no primeiro dia, era uma promessa do que estava por vir.

Depois da morte de Goscinny em 1977, Uderzo manteve a série, numa decisão que gerou certa polêmica entre os fãs que queriam o fim da coleção, mas isso não diminuiu em nada o seu sucesso comercial. Só o volume 35, o primeiro sem nenhum dos criadores originais, vendeu cinco milhões de exemplares na França.

Lauro Chibé e João Antônio: dois gênios esquecidos!



Não dá para se falar em bumbás de Manaus sem relembrar o artista plástico Lauro Queiroz de Souza, que passou para a história do folclore manauara como “Lauro Chibé” e era reputado como um dos maiores entusiastas da autêntica cultura popular da nossa gente. “O Lauro Chibé era multimídia numa época em que essa palavra ainda nem tinha sido inventada”, dizia o poeta Anibal Beça, que conheceu o artista plástico nos anos 60.

Nascido presumivelmente em 1911 (nem seus parentes sabiam precisar a data), em Bezerros (PE), a meca pernambucana das encantadoras xilogravuras (imagens feitas em relevo sobre madeira, muito popular na região Nordeste e cuja técnica era utilizada para ilustração de textos de literatura de cordel), Lauro Chibé foi o maior fabricante de bois-bumbás já surgido na capital amazonense. Acredita-se que ele tenha construído mais de 100 bumbás, façanha jamais igualada por alguém em tempo algum.

Filho de pai ausente, Lauro Chibé e a mãe desembarcaram em Manaus por volta de 1916 e foram morar na Rua Carolina das Neves, no bairro dos Tocos (atual Aparecida). Sua mãe era doceira e tinha que diariamente colocar o tabuleiro de doces na cabeça e ir ganhar a vida pelas ruas da cidade. Ela deixava o moleque trancado em casa, apenas munido de papel e lápis. Ele começou a desenhar as paisagens que observava da janela e aprendeu a ler praticamente sozinho, manuseando os poucos gibis e revistas que existiam na residência.

Nos finais de semana, quando a mãe ficava em casa descansando da faina semanal, ele podia sair para brincar com os garotos da vizinhança. Foi em uma dessas incursões que ganhou o apelido definitivo (crianças são cruéis...). Franzino, barrigudo e pálido como um defunto, a molecada começou a achar que ele se alimentava exclusivamente de chibé (um pirão de farinha de mandioca com água, sal e pimenta, que as pessoas em extrema penúria financeira utilizam para enganar a fome). Lauro Queiroz de Souza nunca mais se livrou do apelido

Lauro Chibé tinha sete anos quando viu pela primeira vez a apresentação de um boi-bumbá durante um arraial na Praça Bandeira Branca, no bairro dos Tocos. Ficou fascinado pelo folguedo. Sua mãe, que além de doceira tinha pendores de artista plástica, criou um origami (nome da arte tradicional japonesa de dobrar o papel, criando representações de determinados seres ou objetos com as dobras geométricas de uma peça de papel, sem cortá-la ou colá-la) no formato de um boi-bumbá. Ele passou quase um ano brincando sozinho com aquele origami especial e criando versos para embalar a brincadeira. Depois de adulto, seria um compositor de toadas da maior competência.

Ainda morando no bairro dos Tocos, Lauro Chibé concluiu o ensino fundamental e se tornou um voraz leitor de livros biográficos. Passava horas e horas na Biblioteca Pública lendo tudo em que podia colocar as mãos sobre os grandes artistas plásticos da Idade Média (seu grande ídolo, claro, era o pintor, escultor e arquiteto italiano Michelangelo de Lodovico Buonarroti, considerado um dos maiores representantes do Renascimento Italiano).

Para colocar em prática aquele catatau de coisas que aprendia na teoria, foi conta de multiplicar. Com pouco mais de 20 anos, Lauro Chibé já era um dos melhores artesãos de Manaus. Ele esculpia em madeira qualquer coisa que lhe fosse encomendada, de barcos regionais em miniatura a máscaras mortuárias indígenas, de animais da nossa fauna a versões personalizadas de escudos de clube de futebol.

O futebol também era uma de suas grandes paixões. Apesar de magricela e baixinho – ou talvez por isso mesmo –, se transformou em um exímio jogador do Luso Sporting Clube, tendo também defendido as equipes da União Esportiva Portuguesa e General Osório. Era ligeiro como um azougue e chutava bem com as duas pernas. Dava um trabalho da gota serena para os adversários, fosse jogando no ataque, fosse jogando na defesa. Mas como não dava para assobiar e chupar cana ao mesmo tempo, Lauro Chibé abandonou o futebol para se dedicar à sua carreira de artesão, escultor e artista plástico. Começou a produzir dezenas de obras retratando os usos e costumes dos ribeirinhos amazônicos.

No final dos anos 30, Lauro Chibé ficou visivelmente impressionado com o “Presépio Maravilha”, do artista plástico amazonense Leovigildo Ferreira da Silva, mais conhecido como Branco Silva, exposto na Praça da Matriz. Os movimentos realistas dos bonecos ali representados mexeram com a criatividade de Lauro Chibé.

 Ele passou quase dois anos para desenvolver um complexo sistema de roldanas, ligas de borracha e carretéis, que simulavam o movimento de ribeirinhos fabricando farinha. A peça em miniatura, com cerca de dez personagens, virou uma atração fixa do quiosque para vendas de artesanato que Lauro Chibé conseguiu montar no Aviaquário da Praça da Matriz, nos anos 60. Ele nunca quis vender essa peça pioneira – e ela só começou a ser exibida para o público quase trinta anos depois de ter sido concebida.

Lauro Chibé e uma amiga em um dos bares de Educandos

Nunca se soube quando, como e de que doença faleceu a mãe de Lauro Chibé. O que se sabe é que a partir dos anos 40, possivelmente já órfão, ele entrou na gandaia pela porta da frente, chutando a porta do cabaré. Virou dirigente do grupo carnavalesco Caboclos Surara, fundou uma escola de samba tão efêmera que não legou o nome para a posteridade e começou a frequentar os “dancings” de Educandos, mostrando-se um fabuloso pé-de-valsa, boêmio de carteirinha e emérito abatedor de lebres. Gabava-se de ter mais de 40 filhos.

Nunca casou e conta-se nos dedos os seus filhos que foram registrados. Em compensação, ele começou a anotar suas realizações nas artes plásticas em uma série de diários manuscritos, muitos dos quais se perderam nas brumas do tempo. Em um deles registrou que construiu seu primeiro boi-bumbá, chamado Veludinho, em 1946, ao custo de 1 mil réis.

No ano seguinte, construiu mais três bumbás: Estrela D’Alva, Caprichoso e Curinga. O Curinga, feito para a comunidade de Aparecida, era uma revolução: tinha dois miolos – ou “quatro pernas” – e, entre outras bossas, balançava a cabeça e o rabo, comia capim, urinava guaraná e defecava biscoitos champanhe. Seria chover no molhado dizer que um boi com essas qualidades conquistou o coração e mentes da molecada do bairro, mas foi o que aconteceu. O bumbá Curinga foi o primeiro boi articulado do folclore amazonense.

A partir daí, Lauro Chibé não parou mais de fabricar bumbás. De 1948 a 1950, ele construiu o Galante, Veludinho (versão turbinada), Corre Campo, Dois de Ouro, Guanabara, Flor do Campo, Mineirinho, Brinquedinho e Prenda Fina. Todos eles personalizados ao gosto do freguês.

É mera especulação, claro, mas acredito que foi para continuar sua vida de boêmio registrado em cartório que Lauro Chibé se mudou para o Morro da Liberdade, no início dos anos 60. Seu novo bairro ficava bem mais perto de Educandos e da sua noite feérica do que o bairro da Aparecida, já que naquela época ainda não existia a ponte que hoje liga o centro de Manaus à Cidade Alta. Dava para ir a pé, de um local ao outro. Tempo é dinheiro.

Nesse meio tempo, ele já havia construído mais uma dezena de bois: Brilhante, Flor do Campo, Prenda do Areal, Tira Prosa, Treme Terra, Mina de Prata, Canarinho, Rica Prenda, Dominante, Malhado, Pai do Campo e Teimosinho.

No Morro da Liberdade, Lauro Chibé fundou quadrilhas caipiras, ajudou Dona Marcelina Brito a colocar na rua as Pastorinhas do Oriente, colaborou com Waldemar Rabelo na criação das Tribos dos Iurupixunas e se transformou em um dos principais dirigentes do bumbá Tira Prosa, que ele considerava sua verdadeira paixão. Lauro Chibé chegou a presidir a brincadeira durante dois anos, antes de passar o cargo para Antônio Barroso.

E continuou fabricando bois-bumbás em escala industrial: Ponta de Ouro, Leão, Galante, Pingo de Ouro, Sete Estrelas, Raio de Sol, Diamante Negro, Pena de Ouro, Gitano, Campineiro, etc. Nas suas anotações, ele registrava até mesmo o nome dos brincantes e dirigentes de cada bumbá, o custo do material utilizado e o valor do pagamento final de cada encomenda. Além de esteta, era um perfeccionista.

Em 1981, a partir de uma encomenda do empresário Paulo Eugênio da Costa Teles, Lauro Chibé confeccionou para a escola de samba GRES Uirapuru, do Zé de Cima, uma alegoria para o abre-alas representando um uirapuru com aproximadamente três metros de comprimento, que passou para a história do carnaval amazonense como a primeira alegoria com movimentos reais.

O majestoso uirapuru abria o bico, batia as asas, mexia os olhos e levantava as penas do rabo. Foi um sucesso avassalador. Há uma versão, nunca confirmada, de que Lauro Chibé foi a Parintins, em 1978, ficou enlouquecido com as inovações que Jair Mendes havia introduzido nas alegorias do bumbá Garantido e não largou o pé do artista parintinense enquanto ele não contasse o “pulo do gato” para fazer aquelas alegorias ganharem movimentos tão reais.

Quando não estava nos dancings de Educandos azarando alguma morena de quatrocentos talheres ou ajudando no ensaio de algum grupo folclórico, Lauro Chibé podia ser visto passeando pelas ruas do Morro da Liberdade com seu corpo franzino, sua camisa de crochê, seu chapéu de palhinha e seus dentes de ouro, que ele exibia com uma alegria de criança. Sempre morou sozinho, em um pequeno casebre localizado na região de palafitas do Igarapé do Vovô.

Foi lá que, no dia 29 de dezembro de 1987, chamado pelos vizinhos por conta do mau cheiro, os bombeiros o encontraram morto há pelo menos cinco dias. Lauro Chibé estava com 76 anos. Dizem que parte de seu rosto já havia sido comido pelas ratazanas. Dizem. Assim nascem as lendas. Como escreveu o jornalista Castelo Branco, em matéria publicada no jornal A Crítica, no dia 2 de janeiro de 1988, “com a morte de Lauro Chibé morre um pouco da cultura amazonense e brasileira, sobrevivente em algumas linhas de seus próprios escritos. Mas a história e a cultura popular ganham mais um símbolo”.

O escritor João Antônio

O jeito “gauche” de levar a vida de Lauro Chibé e seu desenlace trágico só encontram paralelo na história do jornalista e escritor João Antônio. Paulista de nascimento, João Antônio optou por viver no Rio de Janeiro. No dia 31 de outubro de 1996, numa cena tão crua que parecia saída de um de seus contos, João Antônio foi encontrado morto por um zelador, que arrombou a porta do seu apartamento depois que vizinhos notaram uma estranha nuvem de urubus pairando sobre a cobertura 702 do edifício 15A da rua Serzedelo Correia, em Copacabana. O corpo estava em adiantado estado de putrefação.

O cadáver foi encontrado sobre a cama de um dos quartos. O apartamento estava arrumado. Não havia sinais de briga ou roubo no local.  João já tinha sofrido um infarto havia cerca de três semanas, e cada detalhe do cenário funesto indicava que ele estava preparando uma viagem rápida antes da definitiva: sapatos casados no chão do quarto, camisas dobradas sobre a cama, uma maleta aberta. Aos 59 anos, o premiado autor de “Abraçado ao meu rancor”, “Malagueta, perus e bacanaço” e “Leão de chácara” morreu apoucado, quase esquecido.

Elogiado nos anos 1960 e 70 por críticos como Antonio Candido, Paulo Rónai e Alfredo Bosi, que o tinham como um herdeiro direto de Lima Barreto, ao assumir personagens marginais como protagonistas – e tome malandros, prostitutas, traficantes, bêbados –, João Antônio passava por um momento apagado nos anos 1990. Seus escritos se notabilizaram pela ousadia linguística.

O escritor trazia para os seus livros o ambiente onde habitavam os marginais e malandros das ruas. A obra do jornalista e escritor só recuperou o prestígio quase dez anos depois de sua morte, quando a família doou uma parte do acervo à Universidade Estadual de São Paulo (Unesp), aumentando o interesse acadêmico sobre seus escritos, e outra parte à editora Cosac Naify, que relançou seus títulos em edições de luxo.

Com o fim da Cosac, em dezembro de 2015, o legado de João perigou mais uma vez. Até o editor Milton Ohata abraçar o arquivo e levá-lo à Editora 34. Literalmente: o material está em duas caixas de polietileno azul, que, encimadas, cabem num abraço.

Ao vasculhar os papéis, Ohata encontrou muito material ainda inédito em livro, como longas reportagens literárias, deliciosas crônicas musicais e textos sobre o cotidiano carioca. A boa notícia para os fãs de João Antônio – certamente há um séquito deles ainda jogando sinuca em bares do Rio, São Paulo, Osasco ou Berlim, cidades onde o autor viveu – é que todos esses textos estão sendo lançados pela Editora 34.

João Antônio no ambiente de malandros e merdunchos

– Publicaremos também um título nunca mais relançado, “Calvário e porres do pingente Afonso Henriques de Lima Barreto” – antecipou Ohata. – É um livro singular dentro da obra dele, que se move no terreno de certo realismo cru: o próprio autor internou-se entre maio e junho de 1970 no Sanatório da Muda, após uma crise emocional. Lá conheceu o interno Carlos Alberto Nóbrega da Cunha, então com 72 anos. Ele tinha sido jornalista no “Diário de Notícias” e em “O Jornal”, e conheceu Lima Barreto. Relata a João Antônio esses encontros. A figura de Lima Barreto surge no livro por pessoa interposta, com um filtro que relativiza o critério da objetividade. Há muito material de arquivo a ser pesquisado, o que certamente vai enriquecer o conhecimento atual sobre ele. Vamos incorporar esse material.

Guardado agora na sede da Editora 34, essa parte do acervo revela muito do minucioso processo criativo do escritor. Há muitos rascunhos para um mesmo texto, indicando que João reescrevia à exaustão. Há uma coleção de fotos de tipos urbanos feitas pelo repórter fotográfico Ubirajara Dettmar, usadas como referência para personagens.

Há retornos de editores grampeados aos manuscritos de alguns contos, com detalhes das mudanças acatadas ou não (num deles, de 1993, o editor do Suplemento Literário de Minas Gerais, Manoel Lobato, sugere: “A personagem da velha merece um retoque. Meta umas especulações filosóficas na cuca da velha, uma frase qualquer, solta, como se fosse da consciência dela, a fim de que o leitor fique intrigado: ela é culta? é religiosa? Coisas assim. O final é grandioso: grandioso e belo, dando o pão, e não a mão”).

E ainda todo tipo de anotação com expressões ouvidas nas ruas, bilhetes de avião, maços de cigarro. O método, que parecia caótico no início, resultava bastante funcional: o autor depois separava os papeizinhos nos envelopes dos respectivos contos ou reportagens que poderia enriquecer (num deles, que findaria no conto “Iemanjá”, há uma lista com mais de 30 nomes curiosos de bares de Salvador, como “Lanches Oxum”, “Bar Barriga de Aluguel”, “Bar Unidos Venceremos” etc).

Preciosismo que faz os textos serem ainda muito atuais, avalia Ohata:

– João Antônio teve uma estreia fulgurante, em 1963, ganhando dois prêmios Jabuti com “Malagueta, perus e bacanaço”, quando alguns dos gigantes da literatura brasileira estavam em plena forma, como Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mendes, etc. Valor literário à parte, sua obra vai continuar viva porque atenta para o lado torto, não resolvido, da sociedade brasileira. Seus personagens continuam circulando por aí e nada indica que desapareçam tão cedo. A fidelidade com que ele tratou seus personagens escapa também dos vieses ideológicos de esquerda, o que é um elemento crítico no momento em que a parte socialmente mais organizada dela deveria fazer um balanço substantivo das opções que tomou nos últimos anos.

Hamilton Almeida Filho, João Antônio e Paulo Patarra

Tal como Lauro Chibé, João Antônio saiu pelas portas dos fundos da vida, num dia de encabulação, como gostava de dizer sobre a data de nascimento de sua principal referência literária, Afonso Henriques de Lima Barreto, uma sexta-feira 13. Sua morte foi o ato final de uma vida atribulada, visceralmente dedicada à literatura e à sua grande paixão: o povo brasileiro.

Parece que intuíra e compusera tudo nos mínimos detalhes, até a sua saída de cena. Desaparecido havia vinte dias, não preocupou muita gente até fins do mês de outubro, já que costumava viajar sem dar notícias. Só no dia 31 é que o Jornal do Brasil publicou uma pequena nota sobre seu desaparecimento ‒ “Escritor some sem deixar pistas” ‒, e conclamava, na coluna “Informe JB”, assinada por Maurício Dias: “Está na hora de uma mobilização geral para saber o que aconteceu com o escritor João Antônio. Ele saiu de casa em Copacabana, dia 7, de bermuda e chinelos, e desapareceu”.

Foi quase um drible. Mas, na verdade, foi a tragédia de um escritor que, cercado de admiradores durante quase toda a sua vida, morrera só e brigado com a mediocridade do país neoliberal da década de 1990, assim como com o meio cultural do período, que o esquecera.

Assim como Lauro Chibé, João Antônio morreu só e a culpa é nossa. Sua literatura é o retrato descarnado de um país que insiste em não dar certo, a despeito de seu enorme potencial. Nesses mais de vinte anos de sua morte, cabe lembrar de um escritor cuja intransigência em relação ao valor da arte literária e da necessidade de olharmos nossa realidade se fazem mais que nunca necessários.

Seu esquecimento nada mais é que a mania bem brasileira, bem nossa, de não valorizarmos uma produção que olhe para os nossos problemas, invariavelmente tachada como populista, neonaturalista ou coisa que o valha. Diante das mil e uma novidades que a classe média bate bumbo, esquecendo que vive num país em que a leitura ‒ como a moradia, a alimentação, a saúde e a educação ‒, ainda é privilégio de poucos, lembrar a produção de João Antônio é dever, mais que apenas gosto literário. Seu único respeito era pelo povo ‒ e pelo texto. E isso é algo que nós temos de valorizar.

sábado, março 21, 2020

O cada vez mais raro sauim-de-maués



NO dia 7 de março de 2003, faleceu em Nova York, nos Estados Unidos, o biólogo, pesquisador e conservacionista José Márcio Ayres, vítima de um câncer. A doença havia sido diagnosticada 17 meses antes e Ayres estava licenciado do Museu Emílio Goeldi para o tratamento. Seu sepultamento ocorreu em Belém, no Pará, onde nasceu. Márcio Ayres tinha 49 anos, era casado e deixou dois filhos.

Ele ficou internacionalmente conhecido como o idealizador do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá (IDSM), a primeira reserva amazônica a produzir resultados econômicos significativos, unindo pesquisa e preservação ambiental. 

Localizada no município de Tefé, a reserva foi criada em 1990 e tem 1,124 milhão de hectares, boa parte dos quais permanece inundada durante mais de seis meses por ano.

Em Mamirauá, vivem 6 mil habitantes e 180 cientistas e têm sido especialmente bem-sucedidas as iniciativas de manejo participativo, com o desenvolvimento e comercialização de produtos extrativistas e agrícolas. Destaca-se, por exemplo, o projeto de restabelecimento da população de pirarucus, comercializado de forma racional na reserva. 

Também são modelos o manejo racional de madeira, extraída da várzea pelos ribeirinhos, e a infraestrutura ali implantada para o ecoturismo, testada em duas ocasiões, por Fernando Henrique Cardoso, como presidente da República.

Além de ser responsável pela implantação da Reserva de Mamirauá, Márcio Ayres lutou pela criação, em área contígua, da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Amanã, efetivamente constituída em 1998, com 2,35 milhões de hectares. 

Junto com o Parque Nacional do Jaú, as duas reservas formam um vasto corredor ecológico, de mais de 5,7 milhões de hectares, recentemente transformados em Patrimônio Natural da Humanidade pela Unesco.

No Museu Emílio Goeldi, de Belém, Márcio Ayres se destacou por seu trabalho com os macacos uacaris, em especial o uacari-de-cabeça-branca, nativo da região de Mamirauá. 

Também foi responsável pela descoberta ou identificação de algumas espécies novas, juntamente com outros pesquisadores, entre as quais está, por exemplo, o sauim-de-maués.



O pesquisador recebeu diversos prêmios, nacionais e internacionais, como a Medalha Duque de Edimburgo de Conservação, entregue pessoalmente pelo príncipe Philip, do Reino Unido, em 1992. Dez anos depois, foi homenageado com o prêmio da Sociedade de Biologia da Conservação (SCB) e o Rolex Award for Enterprise.

Quando a notícia da descoberta do sauim-de-maués chegou a Londres, dois dos mais renomados pesquisadores da Real Sociedade Geográfica Britânica estavam prestes a descobrir as ruínas de uma “cidade perdida” dos Incas, escondida em uma montanha de uma remota selva e intocada havia mais de 500 anos. 

Chamadas de Cota Coca, as ruínas ficam no sudeste do Peru, a cerca de 50 quilômetros de Machu Picchu, na Cordilheira dos Andes, escondidas no sopé de um cânion praticamente inacessível, em meio à densa selva. O escritor e explorador britânico Hugh Thomsom, um dos líderes da expedição, disse que “você só encontra uma nova cidade inca uma vez na vida”.

O arqueólogo americano Gary Ziegler, que também liderou a expedição, começou a procurar a “cidade perdida” depois de receber uma dica de um dos carregadores da região. Os dois, entretanto, tiveram de interromper os trabalhos e viajar para Maués, às pressas.

– Esta é uma descoberta importante porque se trata de um grande centro do último período inca – disse John Hemming, especialista em civilização inca e ex-diretor da Real Sociedade Geográfica Britânica. – Mas o sauim-de-maués nos pareceu um achado muito mais fascinante!

– Nossas informações sobre os primatas daquela região ainda são escassas e quanto mais dados de campo tivermos, melhor. Além disso, o sauim-de-maués vive numa área em que a exploração ilegal de madeira é grande e por isso precisamos de projetos que ajudem a conservar esta espécie e seus habitats – explicou Ziegler.



Em Maués, Hugh Thomsom e Gary Ziegler foram recebidos pelo prefeito Sidney Leite. O alcaide ficou tão encantando com a presença dos pesquisadores no município, que convocou uma reunião extraordinária do seu estado-maior. 

Além dos dois gringos e do intérprete, estavam presentes Chico Gruber (primeiro-ministro e manda-chuva da prefeitura), Eugênio Borges (secretário de Produção), Nuno Coutinho (secretário de Cultura, Turismo e Meio Ambiente), vereador Ivanildo (da nação Sateré-Maué), tuxaua Alencar (líder dos Sateré-Maué do Marau), Sílvio Turbinado e Barrô Mafra.

O prefeito foi direto ao assunto.

– Esses dois pesquisadores são de Londres e estão dispostos a investir dois milhões de dólares numa unidade de conservação ambiental no rio Urupadi, para proteger o sauim-de-maués – explicou. – Só que eles precisam ver antes um exemplar do macaquinho, para saber se é mesmo uma nova espécie ou apenas um sauim já descrito antes. Alguém aqui sabe onde encontrar pelo menos uma foto do bichinho?...

De olho no cargo de administrador da futura unidade de conservação ambiental, Barrô Mafra não contou conversa:

– Eu sei onde tem um desses macacos, meu chefe, e vou buscar um deles agora mesmo! – avisou.

Dito isso, saiu da sala feito uma flecha. Sidney ficou conversando com os gringos sobre as propriedades terapêuticas do guaraná.

Meia hora depois, Mafra reaparece na sala, todo arranhado. Dava a impressão de que tentara fazer amor com uma jaguatirica. Tentando esconder dos gringos o rosto lanhado, ele abriu o jogo, quase se desculpando:

– Olha, chefe, o macaco não quis vir não. O disgramado se soltou do viveiro e não teve cão que segurasse o bicho... Sumiu no trecho!

Sidney respirou fundo, sem esconder a decepção. Aí, virando-se para o secretário de Produção, chutou de trivela:

– Porra, Eugênio, quando vocês estavam tirando madeira para a Getal, lá pras bandas do Urupadi, vocês não viram esse macaquinho não?...

– Vimos, não, chefe. O que tinha muito lá era mutuca...

– E tu aí, Chico Gruber! – insistiu o prefeito. – Lá naquela derrubada de árvores no rio Paracuni não tinha nenhum sauim dando sopa?...

– Tinha não, chefe! – devolveu o primeiro-ministro. – O que tinha muito lá era leishmaniose... – explicou, mostrando as cicatrizes da ferida braba no cotovelo.

Os gringos já estavam dando mostras de impaciência, quando o prefeito, meio puto, tentou a última cartada:

– Rapaz, a minha esperança são vocês dois! – disse ele, encarando Ivanildo e o tuxaua Alencar. – Não vão me dizer que vocês também nunca viram a porra desses macaquinhos...



Ivanildo e Alencar entreolharam-se, cabreiríssimos. O vereador tomou a palavra:

– Ulha, chefe, além di cunhecê o macaco, nóis gusta dele às pampa...

Quando o intérprete traduziu o dialeto para o inglês, os rostos dos gringos se iluminaram.

– Do you like the monkey? Do you like the monkey? – questionava Thomson.

– Really? Do you like it? – insistia Ziegler.

Percebendo do que se tratava, Ivanildo foi em frente:

– Yes, mister! Yes! Yes! Nós laiki muito o sauim, principalmente cozido no leite de castanha...

A reunião acabou na mesma hora. Os gringos fretaram um bimotor e se mandaram de Maués como o tinhoso foge da cruz.

No final de 2002, pesquisadores do INPA avistaram o sauim-de-maués no município de Nova Olinda. Eles devem estar fugindo em massa da terra do guaraná, para não serem cozidos no leite de castanha. O biólogo José Márcio Ayres faz muita falta.