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sexta-feira, fevereiro 28, 2020

Os 60 anos de Asterix e sua turma


Por Érico Assis

Tanto quanto são irredutíveis, eles são divertidos. E divertem irredutivelmente há 60 anos. No dia 29 de outubro do ano passado comemorou-se seis décadas desde que Asterix e sua aldeia de gauleses irredutíveis apareceram nas bancas de jornal da França, na primeira edição da revista Pilote.

Hoje, a criação de René Goscinny e Albert Uderzo é um império: 380 milhões de exemplares vendidos em 111 idiomas, 14 filmes, um parque temático e lançamentos com números milionários a cada álbum. Para comparação, o Império Romano que eles tanto combateram chegou no máximo a 100 milhões de habitantes. Os gauleses venceram com sobra.

 

Goscinny contava que ele e Uderzo criaram Asterix e toda sua aldeia em duas horas. A dupla tinha que criar uma atração para o novo semanário Pilote, que ia ser lançado em sessenta dias. Goscinny, o roteirista e editor, queria alguma coisa do folclore ou da história francesa. Uderzo, o desenhista, começou a dar ideias desde o paleolítico. Eles pararam no período da Gália, região que hoje seria França, Bélgica e Itália, habitada por um povo celta que ficou ali quase um milênio até ser subjugado pelo império romano. Quem teriam sido os últimos gauleses? A dupla de criadores tinha chegado na sua história.

   

Uderzo queria um personagem grande e forte, como a imagem que se tinha dos gauleses. Goscinny queria um nanico, para causar graça à primeira vista. Chegaram num acordo: Asterix seria nanico, mas teria um parceiro grandão chamado Obelix. Os dois seriam a linha de frente da última aldeia gaulesa que resiste ao império romano. A arma secreta gaulesa é a poção mágica do druida Panoramix, que dá força sobre-humana a quem bebe. Obelix é o único que não precisa beber, porque caiu dentro de um caldeirão de poção quando era criança; nele, os efeitos ficaram permanentes. Os romanos, sob comando de Júlio César, sempre voltam estropiados ao se deparar com os gauleses 
superfortes. 
  

Abracourcix é o chefe da aldeia. Chatotorix é o bardo que quer cantar as glórias dos heróis gauleses, mas ninguém aguenta sua harpa nem sua voz. Ordenalfabetix é o peixeiro que sempre compra briga com o ferreiro Cetautotomatix. Os nomes são tanto brincadeiras com figuras históricas da Gália – como Vercingetórix (80-46 a.C.), o chefe gaulês que resistiu aos romanos – quanto jogos de palavras. Os leitores entraram na brincadeira quando a Pilote fez um concurso para batizar o cachorro de Asterix, o hoje famoso Ideiafix. 

  

A aldeia gaulesa é a França e os romanos são o resto do mundo tentando se meter na vidinha francesa. O país europeu é famoso por torcer o nariz ao imperialismo estrangeiro – não só aos romanos de dois mil anos atrás, mas ainda hoje. Goscinny e Uderzo enchiam as histórias de referências à França contemporânea, personalidades da política e da cultura. Quando Asterix e Obelix viajavam, sacaneavam a visão que os franceses têm dos britânicos (bretões), dos alemães (godos), dos suíços (helvéticos) e assim por diante. Um dos trunfos da série foi criar um herói nacional que orgulha e sabe rir da própria nacionalidade.


  

A primeira adaptação de Asterix foi para o rádio, um programa da Radio Luxembourg em 1960. Em 1967, Asterix, o Gaulês virou o primeiro longa-metragem animado – ao qual se seguiram mais nove, incluindo Asterix e o Segredo da Poção Mágica no ano retrasado. Os quatro filmes live-action começaram com Asterix e Obelix contra César, de 1999, e estrelaram atores de peso no cinema europeu: Roberto Benigni, Alain Delon, Laetitia Casta, Monica Bellucci, Catherine Deneuve e Gérard Depardieu como Obelix. Os filmes, tal como os álbuns, fazem sucesso principalmente na Europa. 


Milionarix 
Asterix fez sucesso entre os leitores desde o primeiro número do jornalzinho Pilote, onde saíam uma ou duas páginas de cada aventura por semana. A primeira história completa virou o álbum Asterix, o Gaulês, com tiragem de 6.000 exemplares. Cinco anos depois, Asterix e os Normandos saiu com tiragem de 1,2 milhões, que se esgotaram em dois dias. O álbum lançado em 2019, A Filha de Vercingétorix, saiu com tiragem de 5 milhões, simultaneamente em vinte idiomas. Foi o maior lançamento do mercado editorial europeu no ano. 

Goscinnix 
René Goscinny, infelizmente, viu menos de um terço destas seis décadas. Num sábado de manhã, 5 de novembro de 1977, ele foi ao cardiologista fazer um teste de esforço físico. Subiu numa bicicleta ergométrica, começou a pedalar, reclamou de dores no peito e desabou. Morreu aos 51 anos. Judeu que perdeu três tios em campos de concentração, criado na Argentina, formado profissionalmente pelos quadrinistas da Nova York dos anos 1940, Goscinny criou não só Asterix, mas também Umpa-Pá, Iznogud, O Pequeno Nicolau, colaborou por anos nos roteiros de Lucky Luke e teve atuação importantíssima como editor e produtor.
 






Uderzix 
Filho de imigrantes italianos na França, Albert(o) Uderzo teve o primeiro trabalho publicado em jornal aos 14 anos. Passou pela animação e diversos jornais antes de conhecer Goscinny, com quem criou o pele-vermelha Umpa-Pá e, depois, os gauleses irredutíveis. Quando Goscinny faleceu, ele diz que passou um ou dois dias em choque, travado. Levou três anos para produzir sozinho um novo álbum de Asterix, O Grande Fosso, mas a partir deste fez mais oito trabalhando sozinho no roteiro e no desenho. Aposentou-se aos 86 anos e supervisiona os álbuns de Asterix criados por outros. Diz que a série vai se encerrar após sua morte.

  

Ferrix e Conradix
Depois de longa procura por alguém que topasse assumir essa milionária responsabilidade, os franceses Jean-Yves Ferri (roteiro) e Didier Conrad (desenho) tornaram-se os novos autores de Asterix em 2013. Começando por Asterix entre os Pictos, eles já produziram quatro álbuns e respeitam fidelissmamente a fórmula dos gauleses contra o império romano, as piadas recorrentes, as tiradas com a sociedade francesa e praticamente o mesmo traço de Uderzo.







Sexagenarix 
O primeiro satélite que a França colocou em órbita chamou-se Asterix. Está perdido no espaço e pode ser que algum acaso mágico faça ele trombar com os asteroides 29401 Asterix ou 29402 Obelix, assim batizados por astrônomos tchecos. Duas milhões de pessoas visitam anualmente o Parque Asterix, em Plailly, norte da França. O perfil de Asterix estampa uma moeda comemorativa de 2 euros lançada este ano na União Europeia. Générations Asterix, álbum que saiu há pouco na França, reuniu mais de 60 autores do mundo prestando homenagem à série. E o 38º álbum oficial, A Filha de Vercingétorix, saiu exatamente no dia dos 60 anos, 29 de outubro. 


Brazuquix 
Asterix já vendeu mais de três milhões de álbuns no Brasil. Os gauleses aportaram aqui em 1967 através da editora espanhola Bruguera (depois Cedibra). A editora Record relançou e lançou todos os álbuns oficiais e vários derivados (como as quadrinizações dos filmes), inclusive em versões remasterizadas, até O Papiro de César. A editora Panini anunciou recentemente que vai retomar os gauleses por aqui, provavelmente com o inédito Asterix e a Transitálica, de 2017, e a aventura mais recente. Asterix com certeza merece uma coleção completa e sempre à disposição de quem quiser conhecer a turma irredutível.

A memória mente muito mas não faz por mal



Por Joaquim Ferreira dos Santos

Eu me lembro, e não entendo por que de uns tempos para cá as pessoas ficaram com vergonha de molhar os olhos quando se lembram de ai como era bom, eu me lembro que saudade era, ao lado do batuque na cozinha, o toque de trivela e as ancas da sardinha 88, a saudade era uma das glórias nacionais.

Não tinha tradução no idioma inglês e nem em qualquer outro. Coisa nossa. A saudade era pedacinho colorido de confete e, dependendo de quão velho cada um de nós fosse, havia sempre alguém que se lembrava de ter dormido protegido apenas pela segurança antimosquito dos espirais de Durmabem, outro que se abanava com o sexo seguro de um catecismo do Zéfiro – e isso tudo era tão delicadamente gostoso que a saudade matava a gente, morena. De prazer. Tenho saudade e gosto de conjugar seus verbos em todos os tempos regulares e irregulares.

Às favas a modernidade dos que não vêem sentido em pegar jacaré nessa onda, não vêem nenhuma praticidade em se ter um carro com os faróis projetados para trás. Eu vejo.

I see dead people, mas sem o mesmo medo do garoto no cinema. Na boa. Sinatra disse para Sammy Davis Jr. que vencia quem morria com mais brinquedos. Estou de acordo. Gosto de brincar de saudade. Tenho dúzias desse bambolê e Playmobil.

Eu me lembro da frota encabeçada pela Santa Maria, Pinta e Nina. Eu me lembro de todos os afluentes da margem direita do Amazonas, começando com o Javari e o Juruá, lá no cantinho com o Acre, e vindo até aqui perto na boca do Atlântico com o Madeira, Tapajós, Xingu e Tocantins. Eu me lembro, e se Deus quiser não pretendo jamais me esquecer, dessas inutilidades escolares porque, por menos utilidade que elas ofereçam hoje aos homens de negócios que somos, não me ocorre madalena mais gostosa para lambuzar de jajá de coco os lábios da memória e alavancar junto o cheiro da minha pasta de couro na escola.

Qual o problema?

Qual é o mosquito de se ouvir de novo o bento que bento é o frade na hora do recreio (que hora tão feliz, queremos o biscoito São Luiz) e ainda o Zé Trindade chanchadeiro avaliando, e me sendo primeiro professor na matéria, a dona boazuda que passava emulando a pororoca marajoara, as águas quentes de Goiás e o arrebol do Arpoador. “O que é a natureza”, dizia o Zé. Até hoje concordo, me maravilho e faço profissão de fé.

Sei que quanto mais fraca for a memória – e eu não tomei todo o óleo de fígado de bacalhau que o doutor mandava – quanto mais fraca a memória mais o cidadão se recordará com nitidez de como foram bons aqueles tempos. Melhor assim. E, boémia, aqui estou de regresso, aqui estou vibrante de suspiros de como era malandramente elegante saltar de ônibus andando, como era matissiana a seda azul do papel que envolvia a maçã e como toda a atual programação do canal a cabo Sexy Hot soa sem mistério erótico diante do pêra, uva, maçã ou salada de frutas com as meninas no recreio.

Eu vi essas “cachorras” nascendo. Eram chamadas de avião, pedaço de mau caminho, certinhas, broto. Posso até achar que as saradas sucederam-nas com mérito, e, cá entre nós, eu adoraria chancelá-las com o meu carimbo de aprovadas. Mas jamais vou esquecer as que me foram cacho, affair e perdição.

A memória mente muito, mas não faz isso por mal. A subjetividade lhe é da índole. Eu me lembro, qualquer um pode ir ao arquivo confirmar, que o ataque do Flamengo era formado por Joel, Moacir, Henrique, Dida e Babá. Já a memória afetiva não tem autenticação passada em cartório, não registra assinatura. Ela apenas pede baixinho, feito a princesinha Norma Blum no Teatrinho Trol da Tupi, que você acredite. A memória afetiva, essa minha crença de que o fonograma perdido de Dóris Monteiro cantando o jingle do Café Capital é a melhor gravação da bossa nova, tem a inteligência do dono. É o outro lado do videoteipe, esse burro da pior espécie. Limitado a suas câmeras óbvias, o teipe registra tudo exatamente como é de fato. Tolo. Moço, pobre moço. A memória não.

Paulinho da Viola ensinou que a vida não é só isso que se vê. É um pouco mais. Quem haverá de saber, sequer eu, sequer o analista, o bem que me fez o amor inicial? Presumo que minha primeira namorada tenha sido a moça da tampa da caneta esferográfica, aquela para sempre sorridente que ia tendo o maiô subtraído pelo movimento da tinta até que finalmente, para meu espanto, revelava sua gloriosa e glabra nudez. Saudades sinceras, meu bem. Foi bom enquanto durou a tinta, querida.

Eu me lembro do mocotó das vedetes, do pente Flamengo para fora do bolso, de ajudar a empregada a tirar as pedrinhas do feijão, das pílulas de vida do dr. Ross fazendo bem ao fígado de todos nós – e não sou doido de estar com isso querendo matar a saudade de ninguém. Que a todos a saudade seja imortal. Vivo da minha, e graças a Deus essa saudade me vem com duas polegadas a mais e na cor mais linda do mundo, o azul da pedra do anil Rickett. Sou grato quando a saudade me aparece com aquela saia tergal plissada, cheia de machos e que ao estrear, no governo João Goulart, foi apelidada de Maria Teresa, por ser nossa primeira dama, como insinuava a maledicência da época, cheia deles também.

Quero mais é tratá-la, a saudade, a minha, com Biotônico Fontoura. Perpertuá-la com a gordura de coco Carioca. Nutri-la com a banha de porco e com muitos biquinhos daquele pão, os seios que eu imediatamente beliscava quando era trazido pelo padeiro de bicicleta. Quero que a saudade cresça e apareça, brinque com a língua retrô, faça barba-cabelo-e-bigode da contemporaneidade otária e mostre a todos que não adianta estrilar e nem bater o pé. O que resolve é ter logo à mão lâmpadas GE. O que resolve é fazer a luz da criatividade e apagar o preconceito.

A culpa, se você pretende classificar meu comportamento de antinatural, é do desafinado. João Gilberto, logo ele, um sujeito que vivia cantando sambinha antigo, lançou em 1959 o Brasil na terra da modernidade com o LP “Chega de saudade”.

O país do futuro, tão anunciado, chegara e queria se livrar o mais rápido possível do Jeca Tatu, do tiro no peito do Getúlio, da bofetada no Bigode, das macacas de auditório, das múmias do Museu da Quinta da Boa Vista, dos amores infelizes do Antonio Maria. Queria se reapresentar em novo padrão. Camisa Volta ao Mundo que não precisava passar, garotas de biquíni no Arpoador, o fusca produzido nas fábricas de São Paulo. Depois de décadas com o berreiro do Vicente Celestino tonitroando nos ouvidos pátrios, a modernidade urgia em sintonizar o dial num sujeito cantando baixinho. Como o Chet Baker e a Julie London faziam lá fora. Foi aí que João sussurrou o chega de saudade, e o Brasil começou a achar cafona, hoje de manhã, tudo que tivesse sido feito ontem à noite.

Sinceramente, sem querer cantar marra, sem tirar chinfra, eu estava lá, e não pisquei. Deve ser porque eu usava Optraex, um copinho azul em que se colocava uma solução líquida para lavar o olho. Com a menina-dos-olhos viva e esperta, não levei João no radical. Entendi que aquilo era o velhíssimo Dorival Caymmi, o eternamente Orlando Silva, só que numa outra batida de violão, essa coisinha também das antigas. Segui na paz, curtindo tanto o blim-blom do novo baião de João como o que vinha das ondas da PRE-8, Rádio Nacional do Rio de Janeiro, transmitindo diretamente do palco-auditório do 21° andar da Praça Mauá, 7.

Eu sempre pautei a vida pelo bordão do Café Moinho de Ouro, que já nos tempos dos barões era servido nos salões – e nunca entendi por que jogar fora os bons grãos da memória. Não só digo que dura lex, sed lex, no cabelo só uso gumex, como faço questão de aproveitar sempre uma sobra do fixador para colar bem coladinho tudo o que já ameaça ser vaga lembrança. I see dead people, e não só: produtos, jingles, comportamentos, piadas e palavras. Pode ser tudo muito divertido e brinquedo. Ou você não brinca com meu brinco?

Continuo achando, do mesmo jeito que os Sex Pistols cantando o “My Way” do Sinatra, feito o João cantando Noel, que não há programação melhor para o grande rádio da vida do que misturar as estações. Não dar um chega-pra-lá no passado. Mas manter vivo, para sempre turbinado, o que nos é felicidade e borogodó.

segunda-feira, fevereiro 24, 2020

Recordando Zé do Caixão



Por Mouzar Benedito

Li a notícia da morte do cineasta José Mojica Marins, conhecido aqui como Zé do Caixão, e no exterior como Coffin Joe, e isso me provocou algumas lembranças.

Lá pelo final dos anos 1960, eu tinha o hábito de frequentar um restaurante que servia uma ótima paella (por favor, leitores, a pronúncia espanhola é paelha – paeja é pronúncia argentina). Era rico? Nadinha. Era funcionário público e ganhava pouco. Mas na época dava para traçar com alguma regularidade essa comida que hoje custa muito caro.

O restaurante a que me refiro, de cozinha espanhola, chamava-se “Bosque de Viena”. Nada a ver, né? E se o nome austríaco destoava, a música ao vivo também: nada de flamenco ou algo parecido, era música latino-americana, executada por paraguaios exilados em São Paulo, fugindo da ditadura de Stroessner.

Localizado na rua Vitória, na região conhecida como “Boca do Lixo”, no centro de São Paulo, o “Bosque de Viena” era bem barateiro, e frequentado por gente meio dura como eu e também por jornalistas e artistas, entre eles o Zé do Caixão. Vi muitas vezes lá o Zé do Caixão. Nunca conversei com ele, mas olhava curioso suas unhas enormes, imaginando a dificuldade dele para certas tarefas, como tomar banho e limpar-se no banheiro.

Bom, antes de ir para outro assunto sobre ele, esclareço para jovens de hoje que talvez nem tenham ouvido falar da “Boca do Lixo”. Tinha esse apelido por ser área de “baixa prostituição”. Havia também uma área de “alta prostituição”, com prostitutas de “alto nível”, funcionando em boates frequentadas por empresários. Localizada no entorno da rua General Jardim, era chamada de “Boca do Luxo”.

Agora um assunto que parece não ter nada a ver com estas lembranças: a Volkswagen lançou um carro muito bom, mas todo “quadrado”. Não era como uma Kombi, era como um carro comum, com partes mais baixas na frente (do motor) e atrás (porta-malas). Só que era todo com linhas retas, com vidros da frente e de trás descendo em 90 graus, e não inclinados. Logo foi apelidado de Zé do Caixão e acabou tendo a produção interrompida porque poucos o compravam, por causa do apelido.

Aí chego em mais uma história.

Quando a profissão de jornalista foi legalizada e passou-se a exigir diploma para seu exercício, havia muitos jornalistas sem curso nenhum. Para esses, deram dois anos para se legalizarem, pedirem o registro profissional no Ministério do Trabalho. Mas muitos deles não levaram a sério essa exigência achando que a lei não pegaria. Mas pegou. Aí os jornais deram ultimato: ou arrumam um diploma ou serão demitidos. Como não dava para “arrumar” um diploma assim de repente, tiveram a opção de fazer o curso de jornalismo e não serem demitidos porque estavam se legalizando.

A Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero foi a mais procurada por esses profissionais já experientes. Motivo? Tinha fama de ser boa, mas o principal é que nela o curso durava apenas três anos, enquanto em outras faculdades durava quatro anos.

Em 1974, eu não era jornalista ainda, mas queria ser, especialmente por causa da imprensa alternativa. Era, para mim, a oportunidade de ter uma profissão que ao mesmo tempo era possibilidade de militância contra a ditadura.

Foi muito interessante. Convivi lá com jornalistas já experientes e competentes, mas também tinha umas figurinhas difíceis. Por exemplo: Roberto Nunes Morgado, que já era juiz de futebol e, amalucado nas arbitragens, homossexual assumido, ficou conhecido como “Pantera Cor de Rosa”.

Algumas coisas que ele fez ficaram famosas, como a expulsão da PM que fazia a segurança em um jogo. Mostrou cartão vermelho para os policiais. E houve um jogo em que apitou sem entrar em campo, correndo pela lateral. Depois disso, se me lembro bem, ele foi afastado das arbitragens. Sei com certeza que uma vez pediram exame de sanidade mental dele, por causa de coisas como essas.

Jogadores de futebol, tinha alguns, inclusive de times da primeira divisão, como o Lance, atacante do Corinthians, e um defensor do Palmeira cujo nome não me lembro.

E mais: tinha também um assessor do Zé do Caixão. Mas não era só assessor, participava das filmagens. Já tentei muito me lembrar o nome desse jornalista, mas não consegui.

Numa segunda-feira, em 1976 ou 77, ele chegou à faculdade todo cheio de curativos. Curiosos, perguntamos a ele o que tinha acontecido.

Contou que o Zé do Caixão gostava de dar o maior realismo possível aos seus filmes. As atrizes tinham que ser treinadas para deixar aranhas andando de verdade nos seus corpos, por exemplo. Cenas com cobra, eram com cobras de verdade. E cenas nos cemitérios tinham que ser filmadas de acordo com o que apareceria nos filmes. Então, para uma sequência que se passava à meia-noite de uma sexta-feira, teria que filmar à meia-noite, na sexta-feira. Dessa vez, levou sua equipe para filmar algumas cenas com mulheres nuas em cima de túmulos, dentro do cemitério da cidade de Americana. Na sexta-feira, claro. E as filmagens começariam à meia-noite, com um relógio dando as devidas badaladas.

Acontece que um padre da cidade reuniu um bando de beatas e beatos armados de porretes e, quando ia chegando a meia-noite, essa turma invadiu o cemitério e desceu o porrete em todo mundo. Mulheres, assessores, ninguém escapou das porretadas. Toda a equipe foi parar no hospital.

Nosso colega não teve ossos quebrados, mas seu rosto ficou cheio de esparadrapos. O resto do corpo, segundo ele (que não mostrou) também.

Tudo pronto para a 9ª edição da Banda da Caxuxa



Mantendo sua tradição de homenagear os moradores da Cachoeirinha que contribuíram de alguma forma para o engrandecimento sociocultural do bairro, a Banda da Caxuxa vai homenagear no Carnaval 2020 as seguintes personalidades:


Aldemir Martins, o “Mimico”, que há mais de 30 anos é presidente da quadrilha caipira Juventude na Roça, um dos orgulhos da Cachoeirinha, com mais de 25 títulos conquistados para o bairro (só o Ananias Filho ganhou 15 vezes seguidas como o melhor marcador!) no Festival Folclórico do Amazonas. Sem contar que, nos anos 60, Mimico era brincante da lendária quadrilha Flor Selvagem.

Áureo Alcântara, o “Áureo Petita”, primeiro Craque do Ano do Peladão, façanha conquistada em 1974 pelo time Murrinhas do Egito, autor de 1.653 gols ao longo de 20 anos de carreira, façanha nunca igualada no planeta Terra. Ele também foi homenageado pelo jornal A Crítica, em dezembro de 2019, por esta mesma façanha.


Last, but not least, meu mano Rômulo Bessa, o “Romito”, um dos fundadores e primeiro presidente do bloco de sujos “Aluga-se Moças”, considerado o maior bloco de sujos da história do carnaval amazonense, com quase 5 mil ciganos fantasiados de mulher.

O desfile do bloco começava às 14h, no clube Ypiranga, seguia pela Carvalho Leal, entrava na Codajás, pegava a Borba e seguia até a Ipixuna. Aí dobrava à direita, passava pelo Bar do Carvalho, entrava na Castelo Branco, depois na Belém, seguindo até o Reservatório do Mocó, contornava o cemitério São João Batista, descia o Boulevard Amazonas, entrava na João Alfredo (atual Djalma Batista) e terminava na Rua Pará. Como se fosse uma legião de zumbis, a gente voltava pra Cachoeirinha na mesma pisada, mas dessa vez cortando atalho pelo Vieiralves. Uma maratona de seis a sete horas de caminhada sem parar. Coisa de macho!

Hoje fico cansado só de lembrar. Acontece.

PROGRAMAÇÃO OFICIAL DA BANDA DA CAXUXA 2020


Data: 25.02.2020

Local: Rua Parintins, entre ruas Borba e Carvalho Leal – Cachoeirinha

17 às 19h – Baile Infantil com a Orquestra Bagunça de Salão.

19h – Entrega dos troféus aos homenageados. O radialista Ormando Barbosa será o Mestre de Cerimônias. Vladimir Brother, Arlindo Jorge e Hiran Queiroz farão as entregas dos troféus.

19h15 às 21h – Baile Adulto com a Banda de Metais do Sargento Sena.

21 às 23h – Baile Adulto com Rosivaldo e os Metais de Olinda.

Banheiros químicos e mesas liberadas.

sexta-feira, fevereiro 21, 2020

Dupla amazonense ganha Festival Nacional de Marchinhas



Os compositores Junior Rodrigues e Mário Adolfo foram os grandes campeões da sétima edição do Festival Nacional de Marchinhas, promovido pela Rádio CBN.

 – Diretamente de Manaus, “É só no Zap Zap” foi a marchinha mais votada, com 42,14% dos votos. Seis músicas disputavam a final da sétima edição do prêmio – anunciou o apresentador Milton Jung.

A letra da marchinha é uma crítica bem-humorada à essa grande praga chamada redes sociais que parecem dispostas a destruir as antigas rodas de conversa do planeta.

Mário Adolfo conta que a ideia para compor a letra da marchinha surgiu por conta do momento em que a sociedade está vivendo atualmente.

Segundo o compositor, as pessoas estão cada vez mais conectadas e esquecendo de conviver socialmente.

“Eu acho que essa ideia está acontecendo há muito tempo. A sociedade hoje está vivendo uma vida de uma forma muito voltada para o telefone. Casais não conversam como antes. Se tem três pessoas em uma mesa, duas delas estão mexendo no celular. É uma coisa que está na rua e todos observam. Resolvi compor a letra e passei para o Júnior Rodrigues para fazer a música”.

Mário Adolfo, que é um dos fundadores do GRES Andanças de Ciganos e da Banda Independente da Confraria do Armando (BICA), e o sambista Júnior Rodrigues são velhos parceiros de sambas de enredo e de marchinhas.

Ambos ganharam o Festival de Marchinhas do Plaza Shopping em 2012, com “ Casamento Gay”, e em 2013 com “Faxina Geral no Planalto Central”.

Mário Adolfo também já havia ganhado o mesmo festival em 2011 com “Ponto G”.

O compositor ainda conta da surpresa que foi ter conquistado o prêmio entre 40 marchinhas compostas por artistas de todas as regiões brasileiras.

“Nós tivemos muitos votos. Teve voto até de Paris. É algo que me deixa muito feliz. Estávamos concorrendo com marchinhas com temas fortes como a crise das águas do Rio de Janeiro. O reconhecimento para Manaus é algo muito difícil. Geralmente, quando entramos em concursos nacionais Manaus nunca é lembrada. Apenas quando acontece uma grande tragédia, queima de florestas, matanças de povos indígenas, invasão de terras. Mas quando Manaus está demonstrando o seu trabalho e quando esse talento é reconhecido, com certeza é algo de se orgulhar”, contou Mário Adolfo.

Em “ Só no zap zap”, a dupla mantém o estilo da crítica de costumes por meio do humor, usando como tema os casais que estão se relacionando cada vez menos, conversando menos e abandonando outros hábitos da relação por causa da tecnologia dos smartphones.

Confira a letra na íntegra:

É SÓ NO ZAP ZAP

(Mário Adolfo e Junior Rodrigues)

Eu vou fazer aqui

Um desabafo pessoal

Perdi o meu amor

Pra um amante virtual

Ela já não me ama

Na hora de deitar

De noite na cama 

Seu prazer é o celular

Lamento, mas por mim

Seu coração não bate

Não tem beijo na boca

É só no zap zap


Mesmo fazendo frio, não tem chocolate

É só no zap, zap, é só no zap zap

Não tem mais bate coxa, sempre me rebate

É só no zap, é só no zap zap

Se eu peço um cafuné, ela manda que eu me cate

É só no zap zap, é só no zap zap

Até no cineminha, no motel ou na boate

É só no zap zap é só no zap zap


Não tem mais tempo

Pro pimpolho

Não tem sentimento

Nem conversa olho no olho

É carnaval

Vê se larga o celular

Segure uma latinha

Vem pra rua vem brincar

Aperte a minha mão

E da folia não escape

Deixe a mania

De viver no zap zap

quinta-feira, fevereiro 13, 2020

Notas sobre a má poesia



Por Zemaria Pinto (*)

O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera. (Carlos Drummond de Andrade, em “A flor e a náusea”)

1. Serei acusado de desagregador e intolerante pelos corporativos, que se escondem atrás de coletivos para mascarar a mediocridade individual. Serei denunciado e processado por escrever ofensas morais a pessoas de caráter ilibado e comportamento inatacável, conforme manda o figurino das folhas sociais. Algum subacadêmico parnasiano, que se masturba lambendo adjetivos e advérbios, me acusará de virulência verbivocovisual, sem ter a mínima ideia do que seja isso. Vão me chamar de arrogante, soberbo e presunçoso. Serei tratado como um leproso, cuja visão repulsiva nauseia os sentidos acostumados a panoramas paradisíacos, perfumes exóticos e sons celestiais – ainda que o paraíso não passe de uma sórdida favela, as flores podres estejam misturadas às fezes dos porcos e o som seja um mix de forró e funk.

2. Mas não poderão me acusar de desonestidade ou mistificação: cumpro minha missão de professor e de crítico.

3. A poesia que se produz nesta cidade por menininhas tolinhas patinando no ensino médio, universitárias temporãs que não sabem a diferença entre poesia e poema, senhoras quarentonas solitárias que se descobriram tardiamente poetisas ou senhores de todas as idades com o miolo amolecido pelo calor equatorial e pelo excesso de guaraná em pó, é motivo de riso. “Poetas” e “poetisas” acreditam-se ungidos pelos deuses porque têm seus trabalhos escolhidos para participar de alguma “antologia nacional”, em “regime cooperativo”. Desconhecem a maldição que recai sobre os verdadeiros poetas.

4. A poesia de verdade não fala de amor, só de ódio. Não toca em sexo, mas em tortura. Não trata de abandonos, fixa-se em assassinatos. Não fede a rosa, mas cheira a pus. A verdadeira poesia não dá desconto nos hotéis vagabundos do Centro.

5. A poesia é um estado do ser, contemplação mí(s)tica, o i/logismo a serviço do ir/racional: a poesia é.

6. Poesia é arte, não é masturbação.

7. Eu já disse que há uma enorme carga de poesia em Grande Sertão: Veredas, em A Paixão Segundo GH. Há poesia num quadro de Van Gogh, num filme de Herzog, num pôr-do-sol no rio Negro, num fim de tarde em São Paulo, num passo de contradança, e, com o perdão da má palavra, também se encontra poesia num sorriso de criança. Especialmente, quando ela está morrendo de fome.

8. Conclusão: a poesia não precisa do poeta, porque a poesia pode estar em qualquer lugar. É ter sentidos para sentir – olhos para ouvir, nariz para escutar, ouvidos para cheirar, mãos para ver e língua para tatear.

9. Por que, então, esses poetaços infestam o planeta com papel borrado pelas suas banalíssimas dores de corno, suas rimas infinitivas, seus malditos adjetivos, sua falta de ritmo, sua métrica atravessada, sua ignorância da tradição?

10. O prefixo des denota oposição, negação ou falta, caracterizando-se ainda por reforçar a intensidade negativa do que se quer exprimir. Despoesia, portanto, é ausência de poesia. É a negação do estado poético. É não-poesia.

11. É despoesia, pois, o que os poetastros fazem.

(*) Zemaria Pinto é poeta, dramaturgo, professor e crítico literário. Vive em Manaus.

sexta-feira, fevereiro 07, 2020

Sábado magro é dia de entrar na BICA



Por Divaldo Martins (*)

O Bar do Armando é patrimônio cultural de Manaus. Não precisa de Decreto para esse reconhecimento. Lá, sob inspiração do deus Baco reúnem-se poetas, menestréis, compositores, sambistas, trovadores, doutores, professores, damas de todas as classes e desocupados geniais; gente de todos os matizes, e dos mais variados espectros políticos, credos e raças, nivelando-se em respeito, fraternidade, descontração e alegria.

O Bar do Armando é um ambiente acadêmico informal, enriquecedor, plural. Uma ode à diversidade. Frequenta-lo pelo menos uma vez por semana, por dois ou três anos, equivale a um doutorado em ciência política, arte, música, canto, humanidades.

Tem, ele, um grupo carnavalesco denominado "Banda Independente Confraria do Armando", resumidamente referido apenas como "Banda da BICA".

Um acontecimento político mundial, nacional ou local controverso, uma grande trapalhada de algum gestor público, não raro, é escolhido para o tema ou o enredo do samba da Banda para o carnaval do ano seguinte. Tudo com muita irreverência, poesia, riso, duplo sentido e finas ironias. Neste ano, o tema é a defesa da mata virgem amazônica, epicamente defendida pela “pirralha” sueca Greta Thunberg.

O desfile da Banda da BICA todo "sábado magro" de carnaval, pelas ruas do entorno do Teatro Amazonas, com a sua apoteose no Largo de São Sebastião (onde fica o Bar), é o maior evento do carnaval de rua de Manaus, reunindo, nos últimos anos, mais de 50 mil foliões por evento, a exigir um gigantesco e complexo esquema de segurança pública, de forma a não permitir ocorrência de atos vandalismo e violência, muito embora haja muitas ações de descuidistas, batedores de carteiras e de telefones móveis, cujas vítimas são, sempre, foliões desatentos, ou embriagados.

Convido a todas as amigas e a todos amigos deste seleto mundo virtual para, neste carnaval, irem (ou virem) se abeberar nessa fonte brasileira de sonhos...

(*) Divaldo Martins é juiz aposentado

sábado, fevereiro 01, 2020

Helvécio Nogueira e o fim do mundo na casa da Dinoca



Novembro de 1956. A 1ª Igreja Batista Regular do Amazonas funcionava na Rua Carvalho Leal, entre as ruas Itacoatiara e Tefé, no mesmo local onde, em 1969, foi inaugurado o Ginásio Batista do Amazonas, sendo renomeado para Instituto Batista do Amazonas em 1971.

Para quem não sabe, a doutrina batista regular é bem mais conservadora e tradicional do que a de outros batistas. Eles se consideram fundamentalistas e separatistas, são pré-milenistas, dispensacionalistas, rejeitam o pentecostalismo, o ecumenismo e qualquer de suas expressões, não aceitam o casamento entre crentes e não crentes (eles se consideram o único povo de Deus), e têm verdadeiro desprezo por católicos, testemunhas de Jeová, adventistas, mórmons, presbiterianos, luteranos et caterva.

Os batistas regulares afirmam que a segunda vinda de Jesus Cristo será um acontecimento no mundo físico, envolvendo o arrebatamento pré-tribulacionista e um período de sete anos de tribulação, após o qual ocorrerá a batalha do Armagedon e o estabelecimento do Reino Milenar de Jesus Cristo na Terra.

Naquela época, nos anos 50, a 1ª Igreja Batista Regular do Amazonas possuía um paredão de som digno de sound-system jamaicano, que dava para ser ouvido da Igreja de Santa Rita de Cássia, ali onde hoje está o Terminal de Integração, até a Igreja Adventista da Cachoeirinha, ali nas imediações do Colégio Márcio Nery.

Diariamente os pastores da igreja ocupavam os microfones do portentoso paredão de som para executarem suas prédicas, tendo uma especial predileção em anunciar o fim do mundo.

Morador do entorno do Campo da Barra, na Rua Tefé, Helvécio Nogueira, então com 14 anos, era um dos moleques que ficavam assustados com as mensagens apocalípticas reverberadas diariamente pelos pastores. Mas como soe acontecer em um bairro majoritariamente católico, as pregações apocalípticas dos pastores acabaram se convertendo em uma simples “modinha” religiosa. Ninguém mais dava a mínima.

Os pastores resolveram apelar. Em novembro daquele ano, eles não só anunciaram o início do fim do mundo, como também cravaram a data: quarta-feira, dia 21, a partir das 15 horas. A profecia virou o assunto favorito do bairro.

Na quarta-feira, dia 21, na casa do Helvécio, a rotina não foi alterada. O marceneiro Hilário saiu para trabalhar, Selmo Caxuxa saiu para trabalhar, a molecada (Helvécio, Olga, Stanislaw, Ismelinda, Maria Gertrudes, Sérgia e Afonso Libório) saiu para estudar e dona Ozina Nogueira (aka “Dinoca”, irmã do seu Hilário) foi cuidar dos afazeres domésticos.

Por volta das 10 horas da manhã, um vendedor de frutas apareceu na rua e dona Dinoca comprou uma dúzia de tucumãs-arara, com a carne de cor quase alaranjada de tão maduros, e comandou a partilha: um para cada um dos curumins menores, três para ela e três para seu Hilário. Como já era um adolescente punheteiro, Helvécio não teve direito ao “mimo”.

Por volta do meio-dia, com todos os curumins reunidos na mesa para o almoço, dona Dinoca distribuiu a sobremesa (os tucumãs, claro!) e cantou a pedra:

  Eu estou indo lá embaixo comprar uma máquina de costura Singer porque vou começar a costurar pra fora. Vou deixar na petisqueira esses seis tucumãs, para eu e o Hilário comer quando a gente voltar. Se comportem!

(A expressão “lá embaixo” para dizer “ir ao centro da cidade” merece uma explicação. Quando os ingleses invadiram Manaus, nos anos 40, durante o esforço de guerra em prol da borracha, eles se referiam ao centro histórico como “downtown”, que é o termo correto em inglês. Algum professor de inglês manauara – provavelmente formado por correspondência pelo Instituto Universal Brasileiro – traduziu o termo literalmente (“cidade baixa”) e a bobagem acabou pegando – talvez para se contrapor ao bairro de Educandos, chamado de “cidade alta”. Aí, os suburbanos quando queriam se deslocar até o centro diziam que “iam lá embaixo” e todo mundo entendia. Choses.)

Deitado numa rede depois do almoço, Helvécio relia pela enésima vez o romance “Moby Dick”, do Herman Melville, enquanto vigiava o resto da curuminzada fazendo suas tarefas escolares como se fosse o próprio capitão Ahab procurando pelo cachalote branco a bordo do barco Pequod. O sol estava abrasador.

De repente, numa dessas inversões climáticas típicas de Manaus, os trovões começaram a ribombar, os relâmpagos passaram a riscar o céu e, em questões de minutos, o bairro ficou praticamente às escuras. Caiu um verdadeiro dilúvio pra Noé nenhum botar defeito.

Os curumins da casa começaram a chorar e rezar, completamente desesperados. Sim, aquilo devia ser o início do fim do mundo.

Pragmático a vida inteira, Helvécio ligou o “foda-se!”: já que todo mundo ia mesmo bater as botas, por que não dar cabo primeiro dos suculentos tucumãs-arara?...

Ele não pensou duas vezes: abriu a petisqueira, apanhou os seis tucumãs e se mocozou no porão da casa para degustar as iguarias solitariamente, como convém a um condenado à morte.

O bairro continuou às escuras por quase 45 minutos, com a chuva caindo torrencialmente e as ruas se transformando em igarapés caudalosos. Mas aí, de repente, tudo voltou ao normal. A chuva parou, o céu se abriu, o sol voltou a brilhar. Foi quando Helvécio caiu na real: o fim do mundo só ia sobrar pro lombo dele. Dito e feito.

Quando dona Dinoca chegou em casa e não viu os tucumãs na petisqueira, simplesmente recebeu uma pomba-gira pela esquerda: começou a praguejar, bufar, ameaçar, uivar e cuspir fogo. Ela só sossegou o facho depois que o irmão chegou do trabalho e aplicou um corretivo de responsa no pequeno punguista.

Helvécio levou uma surra de galho de cuieira de criar bicho. E nunca mais acreditou nas profecias dos pastores batistas regulares. Acontece. Cada uma.