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terça-feira, março 24, 2020

Morre Albert Uderzo, um dos criadores de Asterix e Obelix



Albert Uderzo, com bonecos de Asterix e Obelix, em 2007

Por Silvia Ayuso, de Paris

Asterix e Obelix ficaram órfãos. Sobretudo Obelix, o chouchou (favorito) de Albert Uderzo, criador, junto com René Goscinny, dos dois gauleses mais famosos da história e do planeta. O desenhista morreu nesta terça-feira em sua casa, em Paris, aos 92 anos, vítima de “uma crise cardíaca sem relação com o coronavírus”, como foi obrigada a família a esclarecer nestes tempos de pandemia.

Fazia quase uma década que Uderzo (Fismes, Marne, 1927) havia entregado a terceiros o destino da aldeia gaulesa, que assumira de forma solitária após a morte de seu parceiro de aventuras e quadrinhos, o roteirista Goscinny, em 1977. Os sucessores foram Didier Conrad e Jean-Yves Ferri, autores dos últimos quatro álbuns dos personagens. “Entregar Asterix me dilacerou um pouco”, confidenciou ele ao Le Parisien no final de 2018, numa das últimas entrevistas que concedeu.

Não é de se estranhar. O pequeno guerreiro de bigodes loiros e seu bojudo amigo ruivo, de profissão entregador de menires, marcaram sua vida por mais de seis décadas, desde que nasceram de seus lápis e da mente de seu amigo roteirista, numa calorosa tarde do verão de 1959, na sala de seu modesto apartamento de Bobigny, na periferia de Paris.

Ninguém imaginava na época que esses personagens publicados inicialmente na revista Pilote ultrapassariam as barreiras de línguas, culturas e gerações, como demonstram os mais de 380 milhões de exemplares vendidos em 111 idiomas e dialetos.

O segredo desse sucesso? Nem ele mesmo sabia ao certo. “É como se me perguntassem a receita da poção mágica”, brincou Uderzo no jornal parisiense. Asterix e Obelix são os protagonistas de uma HQ “transgeracional, com um espírito independente”. “Reconheço que jamais consegui me explicar esse sucesso. Nunca achei que duraria tanto. René Goscinny dizia: ‘Parecemos idiotas que não sabem o que fabricaram’. Mas não teríamos conseguido nada sem trabalho. O sucesso é, acima de tudo, horas e horas de trabalho”, declarou.

Era algo que Uderzo sempre soubera. Autodidata e amante dos personagens de Walt Disney, desde muito pequeno soube que queria ser desenhista, embora a Segunda Guerra Mundial tenha adiado seus planos. Entretanto, depois do conflito, Uderzo entrou de cabeça no mundo dos quadrinhos e criou seus primeiros personagens: Flamberge, Clopinard, Zartan e Belloy, o Invulnerável…

Pouco a pouco eles foram afinando seu estilo até torná-lo inconfundível, especialmente esses heróis que parecem “inflados com hélio”, como costumava dizer com carinho sobre suas criações, especialmente Obelix. Depois da guerra, Uderzo trabalhou como ilustrador para o France Dimanche e também para duas agências de imprensa, World Press e International Press, onde se encontraria com outros futuros grandes nomes das HQs francesas, como Jean-Michel Charlier e Victor Hubinon.

Em 1951, isso o levou também a encontrar alguém que marcaria seu destino, René Goscinny, com quem oito anos mais tarde criaria, com outros amigos e ilustradores, a revista Pilote. Na página 20 de seu primeiro número, em 29 de outubro de 1959, aparecem as primeiras tiras das aventuras de Asterix, o gaulês. O sucesso de vendas, 300.000 exemplares no primeiro dia, era uma promessa do que estava por vir.

Depois da morte de Goscinny em 1977, Uderzo manteve a série, numa decisão que gerou certa polêmica entre os fãs que queriam o fim da coleção, mas isso não diminuiu em nada o seu sucesso comercial. Só o volume 35, o primeiro sem nenhum dos criadores originais, vendeu cinco milhões de exemplares na França.

Lauro Chibé e João Antônio: dois gênios esquecidos!



Não dá para se falar em bumbás de Manaus sem relembrar o artista plástico Lauro Queiroz de Souza, que passou para a história do folclore manauara como “Lauro Chibé” e era reputado como um dos maiores entusiastas da autêntica cultura popular da nossa gente. “O Lauro Chibé era multimídia numa época em que essa palavra ainda nem tinha sido inventada”, dizia o poeta Anibal Beça, que conheceu o artista plástico nos anos 60.

Nascido presumivelmente em 1911 (nem seus parentes sabiam precisar a data), em Bezerros (PE), a meca pernambucana das encantadoras xilogravuras (imagens feitas em relevo sobre madeira, muito popular na região Nordeste e cuja técnica era utilizada para ilustração de textos de literatura de cordel), Lauro Chibé foi o maior fabricante de bois-bumbás já surgido na capital amazonense. Acredita-se que ele tenha construído mais de 100 bumbás, façanha jamais igualada por alguém em tempo algum.

Filho de pai ausente, Lauro Chibé e a mãe desembarcaram em Manaus por volta de 1916 e foram morar na Rua Carolina das Neves, no bairro dos Tocos (atual Aparecida). Sua mãe era doceira e tinha que diariamente colocar o tabuleiro de doces na cabeça e ir ganhar a vida pelas ruas da cidade. Ela deixava o moleque trancado em casa, apenas munido de papel e lápis. Ele começou a desenhar as paisagens que observava da janela e aprendeu a ler praticamente sozinho, manuseando os poucos gibis e revistas que existiam na residência.

Nos finais de semana, quando a mãe ficava em casa descansando da faina semanal, ele podia sair para brincar com os garotos da vizinhança. Foi em uma dessas incursões que ganhou o apelido definitivo (crianças são cruéis...). Franzino, barrigudo e pálido como um defunto, a molecada começou a achar que ele se alimentava exclusivamente de chibé (um pirão de farinha de mandioca com água, sal e pimenta, que as pessoas em extrema penúria financeira utilizam para enganar a fome). Lauro Queiroz de Souza nunca mais se livrou do apelido

Lauro Chibé tinha sete anos quando viu pela primeira vez a apresentação de um boi-bumbá durante um arraial na Praça Bandeira Branca, no bairro dos Tocos. Ficou fascinado pelo folguedo. Sua mãe, que além de doceira tinha pendores de artista plástica, criou um origami (nome da arte tradicional japonesa de dobrar o papel, criando representações de determinados seres ou objetos com as dobras geométricas de uma peça de papel, sem cortá-la ou colá-la) no formato de um boi-bumbá. Ele passou quase um ano brincando sozinho com aquele origami especial e criando versos para embalar a brincadeira. Depois de adulto, seria um compositor de toadas da maior competência.

Ainda morando no bairro dos Tocos, Lauro Chibé concluiu o ensino fundamental e se tornou um voraz leitor de livros biográficos. Passava horas e horas na Biblioteca Pública lendo tudo em que podia colocar as mãos sobre os grandes artistas plásticos da Idade Média (seu grande ídolo, claro, era o pintor, escultor e arquiteto italiano Michelangelo de Lodovico Buonarroti, considerado um dos maiores representantes do Renascimento Italiano).

Para colocar em prática aquele catatau de coisas que aprendia na teoria, foi conta de multiplicar. Com pouco mais de 20 anos, Lauro Chibé já era um dos melhores artesãos de Manaus. Ele esculpia em madeira qualquer coisa que lhe fosse encomendada, de barcos regionais em miniatura a máscaras mortuárias indígenas, de animais da nossa fauna a versões personalizadas de escudos de clube de futebol.

O futebol também era uma de suas grandes paixões. Apesar de magricela e baixinho – ou talvez por isso mesmo –, se transformou em um exímio jogador do Luso Sporting Clube, tendo também defendido as equipes da União Esportiva Portuguesa e General Osório. Era ligeiro como um azougue e chutava bem com as duas pernas. Dava um trabalho da gota serena para os adversários, fosse jogando no ataque, fosse jogando na defesa. Mas como não dava para assobiar e chupar cana ao mesmo tempo, Lauro Chibé abandonou o futebol para se dedicar à sua carreira de artesão, escultor e artista plástico. Começou a produzir dezenas de obras retratando os usos e costumes dos ribeirinhos amazônicos.

No final dos anos 30, Lauro Chibé ficou visivelmente impressionado com o “Presépio Maravilha”, do artista plástico amazonense Leovigildo Ferreira da Silva, mais conhecido como Branco Silva, exposto na Praça da Matriz. Os movimentos realistas dos bonecos ali representados mexeram com a criatividade de Lauro Chibé.

 Ele passou quase dois anos para desenvolver um complexo sistema de roldanas, ligas de borracha e carretéis, que simulavam o movimento de ribeirinhos fabricando farinha. A peça em miniatura, com cerca de dez personagens, virou uma atração fixa do quiosque para vendas de artesanato que Lauro Chibé conseguiu montar no Aviaquário da Praça da Matriz, nos anos 60. Ele nunca quis vender essa peça pioneira – e ela só começou a ser exibida para o público quase trinta anos depois de ter sido concebida.

Lauro Chibé e uma amiga em um dos bares de Educandos

Nunca se soube quando, como e de que doença faleceu a mãe de Lauro Chibé. O que se sabe é que a partir dos anos 40, possivelmente já órfão, ele entrou na gandaia pela porta da frente, chutando a porta do cabaré. Virou dirigente do grupo carnavalesco Caboclos Surara, fundou uma escola de samba tão efêmera que não legou o nome para a posteridade e começou a frequentar os “dancings” de Educandos, mostrando-se um fabuloso pé-de-valsa, boêmio de carteirinha e emérito abatedor de lebres. Gabava-se de ter mais de 40 filhos.

Nunca casou e conta-se nos dedos os seus filhos que foram registrados. Em compensação, ele começou a anotar suas realizações nas artes plásticas em uma série de diários manuscritos, muitos dos quais se perderam nas brumas do tempo. Em um deles registrou que construiu seu primeiro boi-bumbá, chamado Veludinho, em 1946, ao custo de 1 mil réis.

No ano seguinte, construiu mais três bumbás: Estrela D’Alva, Caprichoso e Curinga. O Curinga, feito para a comunidade de Aparecida, era uma revolução: tinha dois miolos – ou “quatro pernas” – e, entre outras bossas, balançava a cabeça e o rabo, comia capim, urinava guaraná e defecava biscoitos champanhe. Seria chover no molhado dizer que um boi com essas qualidades conquistou o coração e mentes da molecada do bairro, mas foi o que aconteceu. O bumbá Curinga foi o primeiro boi articulado do folclore amazonense.

A partir daí, Lauro Chibé não parou mais de fabricar bumbás. De 1948 a 1950, ele construiu o Galante, Veludinho (versão turbinada), Corre Campo, Dois de Ouro, Guanabara, Flor do Campo, Mineirinho, Brinquedinho e Prenda Fina. Todos eles personalizados ao gosto do freguês.

É mera especulação, claro, mas acredito que foi para continuar sua vida de boêmio registrado em cartório que Lauro Chibé se mudou para o Morro da Liberdade, no início dos anos 60. Seu novo bairro ficava bem mais perto de Educandos e da sua noite feérica do que o bairro da Aparecida, já que naquela época ainda não existia a ponte que hoje liga o centro de Manaus à Cidade Alta. Dava para ir a pé, de um local ao outro. Tempo é dinheiro.

Nesse meio tempo, ele já havia construído mais uma dezena de bois: Brilhante, Flor do Campo, Prenda do Areal, Tira Prosa, Treme Terra, Mina de Prata, Canarinho, Rica Prenda, Dominante, Malhado, Pai do Campo e Teimosinho.

No Morro da Liberdade, Lauro Chibé fundou quadrilhas caipiras, ajudou Dona Marcelina Brito a colocar na rua as Pastorinhas do Oriente, colaborou com Waldemar Rabelo na criação das Tribos dos Iurupixunas e se transformou em um dos principais dirigentes do bumbá Tira Prosa, que ele considerava sua verdadeira paixão. Lauro Chibé chegou a presidir a brincadeira durante dois anos, antes de passar o cargo para Antônio Barroso.

E continuou fabricando bois-bumbás em escala industrial: Ponta de Ouro, Leão, Galante, Pingo de Ouro, Sete Estrelas, Raio de Sol, Diamante Negro, Pena de Ouro, Gitano, Campineiro, etc. Nas suas anotações, ele registrava até mesmo o nome dos brincantes e dirigentes de cada bumbá, o custo do material utilizado e o valor do pagamento final de cada encomenda. Além de esteta, era um perfeccionista.

Em 1981, a partir de uma encomenda do empresário Paulo Eugênio da Costa Teles, Lauro Chibé confeccionou para a escola de samba GRES Uirapuru, do Zé de Cima, uma alegoria para o abre-alas representando um uirapuru com aproximadamente três metros de comprimento, que passou para a história do carnaval amazonense como a primeira alegoria com movimentos reais.

O majestoso uirapuru abria o bico, batia as asas, mexia os olhos e levantava as penas do rabo. Foi um sucesso avassalador. Há uma versão, nunca confirmada, de que Lauro Chibé foi a Parintins, em 1978, ficou enlouquecido com as inovações que Jair Mendes havia introduzido nas alegorias do bumbá Garantido e não largou o pé do artista parintinense enquanto ele não contasse o “pulo do gato” para fazer aquelas alegorias ganharem movimentos tão reais.

Quando não estava nos dancings de Educandos azarando alguma morena de quatrocentos talheres ou ajudando no ensaio de algum grupo folclórico, Lauro Chibé podia ser visto passeando pelas ruas do Morro da Liberdade com seu corpo franzino, sua camisa de crochê, seu chapéu de palhinha e seus dentes de ouro, que ele exibia com uma alegria de criança. Sempre morou sozinho, em um pequeno casebre localizado na região de palafitas do Igarapé do Vovô.

Foi lá que, no dia 29 de dezembro de 1987, chamado pelos vizinhos por conta do mau cheiro, os bombeiros o encontraram morto há pelo menos cinco dias. Lauro Chibé estava com 76 anos. Dizem que parte de seu rosto já havia sido comido pelas ratazanas. Dizem. Assim nascem as lendas. Como escreveu o jornalista Castelo Branco, em matéria publicada no jornal A Crítica, no dia 2 de janeiro de 1988, “com a morte de Lauro Chibé morre um pouco da cultura amazonense e brasileira, sobrevivente em algumas linhas de seus próprios escritos. Mas a história e a cultura popular ganham mais um símbolo”.

O escritor João Antônio

O jeito “gauche” de levar a vida de Lauro Chibé e seu desenlace trágico só encontram paralelo na história do jornalista e escritor João Antônio. Paulista de nascimento, João Antônio optou por viver no Rio de Janeiro. No dia 31 de outubro de 1996, numa cena tão crua que parecia saída de um de seus contos, João Antônio foi encontrado morto por um zelador, que arrombou a porta do seu apartamento depois que vizinhos notaram uma estranha nuvem de urubus pairando sobre a cobertura 702 do edifício 15A da rua Serzedelo Correia, em Copacabana. O corpo estava em adiantado estado de putrefação.

O cadáver foi encontrado sobre a cama de um dos quartos. O apartamento estava arrumado. Não havia sinais de briga ou roubo no local.  João já tinha sofrido um infarto havia cerca de três semanas, e cada detalhe do cenário funesto indicava que ele estava preparando uma viagem rápida antes da definitiva: sapatos casados no chão do quarto, camisas dobradas sobre a cama, uma maleta aberta. Aos 59 anos, o premiado autor de “Abraçado ao meu rancor”, “Malagueta, perus e bacanaço” e “Leão de chácara” morreu apoucado, quase esquecido.

Elogiado nos anos 1960 e 70 por críticos como Antonio Candido, Paulo Rónai e Alfredo Bosi, que o tinham como um herdeiro direto de Lima Barreto, ao assumir personagens marginais como protagonistas – e tome malandros, prostitutas, traficantes, bêbados –, João Antônio passava por um momento apagado nos anos 1990. Seus escritos se notabilizaram pela ousadia linguística.

O escritor trazia para os seus livros o ambiente onde habitavam os marginais e malandros das ruas. A obra do jornalista e escritor só recuperou o prestígio quase dez anos depois de sua morte, quando a família doou uma parte do acervo à Universidade Estadual de São Paulo (Unesp), aumentando o interesse acadêmico sobre seus escritos, e outra parte à editora Cosac Naify, que relançou seus títulos em edições de luxo.

Com o fim da Cosac, em dezembro de 2015, o legado de João perigou mais uma vez. Até o editor Milton Ohata abraçar o arquivo e levá-lo à Editora 34. Literalmente: o material está em duas caixas de polietileno azul, que, encimadas, cabem num abraço.

Ao vasculhar os papéis, Ohata encontrou muito material ainda inédito em livro, como longas reportagens literárias, deliciosas crônicas musicais e textos sobre o cotidiano carioca. A boa notícia para os fãs de João Antônio – certamente há um séquito deles ainda jogando sinuca em bares do Rio, São Paulo, Osasco ou Berlim, cidades onde o autor viveu – é que todos esses textos estão sendo lançados pela Editora 34.

João Antônio no ambiente de malandros e merdunchos

– Publicaremos também um título nunca mais relançado, “Calvário e porres do pingente Afonso Henriques de Lima Barreto” – antecipou Ohata. – É um livro singular dentro da obra dele, que se move no terreno de certo realismo cru: o próprio autor internou-se entre maio e junho de 1970 no Sanatório da Muda, após uma crise emocional. Lá conheceu o interno Carlos Alberto Nóbrega da Cunha, então com 72 anos. Ele tinha sido jornalista no “Diário de Notícias” e em “O Jornal”, e conheceu Lima Barreto. Relata a João Antônio esses encontros. A figura de Lima Barreto surge no livro por pessoa interposta, com um filtro que relativiza o critério da objetividade. Há muito material de arquivo a ser pesquisado, o que certamente vai enriquecer o conhecimento atual sobre ele. Vamos incorporar esse material.

Guardado agora na sede da Editora 34, essa parte do acervo revela muito do minucioso processo criativo do escritor. Há muitos rascunhos para um mesmo texto, indicando que João reescrevia à exaustão. Há uma coleção de fotos de tipos urbanos feitas pelo repórter fotográfico Ubirajara Dettmar, usadas como referência para personagens.

Há retornos de editores grampeados aos manuscritos de alguns contos, com detalhes das mudanças acatadas ou não (num deles, de 1993, o editor do Suplemento Literário de Minas Gerais, Manoel Lobato, sugere: “A personagem da velha merece um retoque. Meta umas especulações filosóficas na cuca da velha, uma frase qualquer, solta, como se fosse da consciência dela, a fim de que o leitor fique intrigado: ela é culta? é religiosa? Coisas assim. O final é grandioso: grandioso e belo, dando o pão, e não a mão”).

E ainda todo tipo de anotação com expressões ouvidas nas ruas, bilhetes de avião, maços de cigarro. O método, que parecia caótico no início, resultava bastante funcional: o autor depois separava os papeizinhos nos envelopes dos respectivos contos ou reportagens que poderia enriquecer (num deles, que findaria no conto “Iemanjá”, há uma lista com mais de 30 nomes curiosos de bares de Salvador, como “Lanches Oxum”, “Bar Barriga de Aluguel”, “Bar Unidos Venceremos” etc).

Preciosismo que faz os textos serem ainda muito atuais, avalia Ohata:

– João Antônio teve uma estreia fulgurante, em 1963, ganhando dois prêmios Jabuti com “Malagueta, perus e bacanaço”, quando alguns dos gigantes da literatura brasileira estavam em plena forma, como Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mendes, etc. Valor literário à parte, sua obra vai continuar viva porque atenta para o lado torto, não resolvido, da sociedade brasileira. Seus personagens continuam circulando por aí e nada indica que desapareçam tão cedo. A fidelidade com que ele tratou seus personagens escapa também dos vieses ideológicos de esquerda, o que é um elemento crítico no momento em que a parte socialmente mais organizada dela deveria fazer um balanço substantivo das opções que tomou nos últimos anos.

Hamilton Almeida Filho, João Antônio e Paulo Patarra

Tal como Lauro Chibé, João Antônio saiu pelas portas dos fundos da vida, num dia de encabulação, como gostava de dizer sobre a data de nascimento de sua principal referência literária, Afonso Henriques de Lima Barreto, uma sexta-feira 13. Sua morte foi o ato final de uma vida atribulada, visceralmente dedicada à literatura e à sua grande paixão: o povo brasileiro.

Parece que intuíra e compusera tudo nos mínimos detalhes, até a sua saída de cena. Desaparecido havia vinte dias, não preocupou muita gente até fins do mês de outubro, já que costumava viajar sem dar notícias. Só no dia 31 é que o Jornal do Brasil publicou uma pequena nota sobre seu desaparecimento ‒ “Escritor some sem deixar pistas” ‒, e conclamava, na coluna “Informe JB”, assinada por Maurício Dias: “Está na hora de uma mobilização geral para saber o que aconteceu com o escritor João Antônio. Ele saiu de casa em Copacabana, dia 7, de bermuda e chinelos, e desapareceu”.

Foi quase um drible. Mas, na verdade, foi a tragédia de um escritor que, cercado de admiradores durante quase toda a sua vida, morrera só e brigado com a mediocridade do país neoliberal da década de 1990, assim como com o meio cultural do período, que o esquecera.

Assim como Lauro Chibé, João Antônio morreu só e a culpa é nossa. Sua literatura é o retrato descarnado de um país que insiste em não dar certo, a despeito de seu enorme potencial. Nesses mais de vinte anos de sua morte, cabe lembrar de um escritor cuja intransigência em relação ao valor da arte literária e da necessidade de olharmos nossa realidade se fazem mais que nunca necessários.

Seu esquecimento nada mais é que a mania bem brasileira, bem nossa, de não valorizarmos uma produção que olhe para os nossos problemas, invariavelmente tachada como populista, neonaturalista ou coisa que o valha. Diante das mil e uma novidades que a classe média bate bumbo, esquecendo que vive num país em que a leitura ‒ como a moradia, a alimentação, a saúde e a educação ‒, ainda é privilégio de poucos, lembrar a produção de João Antônio é dever, mais que apenas gosto literário. Seu único respeito era pelo povo ‒ e pelo texto. E isso é algo que nós temos de valorizar.

sábado, março 21, 2020

O cada vez mais raro sauim-de-maués



NO dia 7 de março de 2003, faleceu em Nova York, nos Estados Unidos, o biólogo, pesquisador e conservacionista José Márcio Ayres, vítima de um câncer. A doença havia sido diagnosticada 17 meses antes e Ayres estava licenciado do Museu Emílio Goeldi para o tratamento. Seu sepultamento ocorreu em Belém, no Pará, onde nasceu. Márcio Ayres tinha 49 anos, era casado e deixou dois filhos.

Ele ficou internacionalmente conhecido como o idealizador do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá (IDSM), a primeira reserva amazônica a produzir resultados econômicos significativos, unindo pesquisa e preservação ambiental. 

Localizada no município de Tefé, a reserva foi criada em 1990 e tem 1,124 milhão de hectares, boa parte dos quais permanece inundada durante mais de seis meses por ano.

Em Mamirauá, vivem 6 mil habitantes e 180 cientistas e têm sido especialmente bem-sucedidas as iniciativas de manejo participativo, com o desenvolvimento e comercialização de produtos extrativistas e agrícolas. Destaca-se, por exemplo, o projeto de restabelecimento da população de pirarucus, comercializado de forma racional na reserva. 

Também são modelos o manejo racional de madeira, extraída da várzea pelos ribeirinhos, e a infraestrutura ali implantada para o ecoturismo, testada em duas ocasiões, por Fernando Henrique Cardoso, como presidente da República.

Além de ser responsável pela implantação da Reserva de Mamirauá, Márcio Ayres lutou pela criação, em área contígua, da Reserva de Desenvolvimento Sustentável Amanã, efetivamente constituída em 1998, com 2,35 milhões de hectares. 

Junto com o Parque Nacional do Jaú, as duas reservas formam um vasto corredor ecológico, de mais de 5,7 milhões de hectares, recentemente transformados em Patrimônio Natural da Humanidade pela Unesco.

No Museu Emílio Goeldi, de Belém, Márcio Ayres se destacou por seu trabalho com os macacos uacaris, em especial o uacari-de-cabeça-branca, nativo da região de Mamirauá. 

Também foi responsável pela descoberta ou identificação de algumas espécies novas, juntamente com outros pesquisadores, entre as quais está, por exemplo, o sauim-de-maués.



O pesquisador recebeu diversos prêmios, nacionais e internacionais, como a Medalha Duque de Edimburgo de Conservação, entregue pessoalmente pelo príncipe Philip, do Reino Unido, em 1992. Dez anos depois, foi homenageado com o prêmio da Sociedade de Biologia da Conservação (SCB) e o Rolex Award for Enterprise.

Quando a notícia da descoberta do sauim-de-maués chegou a Londres, dois dos mais renomados pesquisadores da Real Sociedade Geográfica Britânica estavam prestes a descobrir as ruínas de uma “cidade perdida” dos Incas, escondida em uma montanha de uma remota selva e intocada havia mais de 500 anos. 

Chamadas de Cota Coca, as ruínas ficam no sudeste do Peru, a cerca de 50 quilômetros de Machu Picchu, na Cordilheira dos Andes, escondidas no sopé de um cânion praticamente inacessível, em meio à densa selva. O escritor e explorador britânico Hugh Thomsom, um dos líderes da expedição, disse que “você só encontra uma nova cidade inca uma vez na vida”.

O arqueólogo americano Gary Ziegler, que também liderou a expedição, começou a procurar a “cidade perdida” depois de receber uma dica de um dos carregadores da região. Os dois, entretanto, tiveram de interromper os trabalhos e viajar para Maués, às pressas.

– Esta é uma descoberta importante porque se trata de um grande centro do último período inca – disse John Hemming, especialista em civilização inca e ex-diretor da Real Sociedade Geográfica Britânica. – Mas o sauim-de-maués nos pareceu um achado muito mais fascinante!

– Nossas informações sobre os primatas daquela região ainda são escassas e quanto mais dados de campo tivermos, melhor. Além disso, o sauim-de-maués vive numa área em que a exploração ilegal de madeira é grande e por isso precisamos de projetos que ajudem a conservar esta espécie e seus habitats – explicou Ziegler.



Em Maués, Hugh Thomsom e Gary Ziegler foram recebidos pelo prefeito Sidney Leite. O alcaide ficou tão encantando com a presença dos pesquisadores no município, que convocou uma reunião extraordinária do seu estado-maior. 

Além dos dois gringos e do intérprete, estavam presentes Chico Gruber (primeiro-ministro e manda-chuva da prefeitura), Eugênio Borges (secretário de Produção), Nuno Coutinho (secretário de Cultura, Turismo e Meio Ambiente), vereador Ivanildo (da nação Sateré-Maué), tuxaua Alencar (líder dos Sateré-Maué do Marau), Sílvio Turbinado e Barrô Mafra.

O prefeito foi direto ao assunto.

– Esses dois pesquisadores são de Londres e estão dispostos a investir dois milhões de dólares numa unidade de conservação ambiental no rio Urupadi, para proteger o sauim-de-maués – explicou. – Só que eles precisam ver antes um exemplar do macaquinho, para saber se é mesmo uma nova espécie ou apenas um sauim já descrito antes. Alguém aqui sabe onde encontrar pelo menos uma foto do bichinho?...

De olho no cargo de administrador da futura unidade de conservação ambiental, Barrô Mafra não contou conversa:

– Eu sei onde tem um desses macacos, meu chefe, e vou buscar um deles agora mesmo! – avisou.

Dito isso, saiu da sala feito uma flecha. Sidney ficou conversando com os gringos sobre as propriedades terapêuticas do guaraná.

Meia hora depois, Mafra reaparece na sala, todo arranhado. Dava a impressão de que tentara fazer amor com uma jaguatirica. Tentando esconder dos gringos o rosto lanhado, ele abriu o jogo, quase se desculpando:

– Olha, chefe, o macaco não quis vir não. O disgramado se soltou do viveiro e não teve cão que segurasse o bicho... Sumiu no trecho!

Sidney respirou fundo, sem esconder a decepção. Aí, virando-se para o secretário de Produção, chutou de trivela:

– Porra, Eugênio, quando vocês estavam tirando madeira para a Getal, lá pras bandas do Urupadi, vocês não viram esse macaquinho não?...

– Vimos, não, chefe. O que tinha muito lá era mutuca...

– E tu aí, Chico Gruber! – insistiu o prefeito. – Lá naquela derrubada de árvores no rio Paracuni não tinha nenhum sauim dando sopa?...

– Tinha não, chefe! – devolveu o primeiro-ministro. – O que tinha muito lá era leishmaniose... – explicou, mostrando as cicatrizes da ferida braba no cotovelo.

Os gringos já estavam dando mostras de impaciência, quando o prefeito, meio puto, tentou a última cartada:

– Rapaz, a minha esperança são vocês dois! – disse ele, encarando Ivanildo e o tuxaua Alencar. – Não vão me dizer que vocês também nunca viram a porra desses macaquinhos...



Ivanildo e Alencar entreolharam-se, cabreiríssimos. O vereador tomou a palavra:

– Ulha, chefe, além di cunhecê o macaco, nóis gusta dele às pampa...

Quando o intérprete traduziu o dialeto para o inglês, os rostos dos gringos se iluminaram.

– Do you like the monkey? Do you like the monkey? – questionava Thomson.

– Really? Do you like it? – insistia Ziegler.

Percebendo do que se tratava, Ivanildo foi em frente:

– Yes, mister! Yes! Yes! Nós laiki muito o sauim, principalmente cozido no leite de castanha...

A reunião acabou na mesma hora. Os gringos fretaram um bimotor e se mandaram de Maués como o tinhoso foge da cruz.

No final de 2002, pesquisadores do INPA avistaram o sauim-de-maués no município de Nova Olinda. Eles devem estar fugindo em massa da terra do guaraná, para não serem cozidos no leite de castanha. O biólogo José Márcio Ayres faz muita falta.

Desacerto nos beiradões



JUNHO de 1974. Prenúncio de desacerto na Comunidade do Varre Vento, próximo da fazenda Setestrelo, de Toninho Lemos, nos confins de Urucará. Os dois sujeitos iam se cruzar, direções opostas, mesmo sentido, ambos montados a cavalo, um subindo e o outro descendo uma pequena ladeira. Mais brabo do que siri em lata, o sujeito que vinha de cima, tirou a peixeira da cintura e avisou:

– Escuta aqui, cabra safado, eu soube que tu andou falando coisa ruim de mim na venda do João Caxinguelê! Agora, vamos acertar os ponteiros pra ver quem é mais macho! Um de nós dois vai virar defunto! Te aprepara pra morrer, fio da égua!

O outro, pensativo e calmíssimo:

– Vamos fazer uma coisa, parente: agora estou avexado e não vai dar boa imbuança. Deixa pra daqui a sete dias. Pode ser aqui mesmo.

Pensou mais, e melhor:

– Olha, sete também não dá não, fica pra quinze. Preciso resolver uns negoços antes.

O que estava mais brabo do que siri em lata acabou rindo e não houve briga.

sexta-feira, março 13, 2020

A propaganda quase enganosa do publicitário Jefferson Coronel



Meu ex-chefe na Secom, o radialista Jefferson Coronel, ao lado da filha Nathália

Setembro de 1994. O publicitário Sérgio Bastos estava tomando banho de mangueira e enchendo a cara de manguaça em uma manhã de sábado quando escutou na rádio Novidade uma propaganda inusitada: qualquer pessoa que entrasse naquele dia na revendedora Bambino’s Veículos sairia de lá dirigindo um carro. Não era preciso apresentar documentação, assinar contrato ou dar um centavo de entrada. Bastava ir até a revendedora, escolher o carro e ir embora. Serjão não pensou duas vezes.

Em quinze minutos, só de sunga, sandálias havaiana e óculos escuros, ele estava descendo de um táxi e entrando na revendedora. Os atendentes levaram um susto. Morto de doido, Serjão explicou que só estava ali por causa da propaganda que acabara de escutar na rádio Novidade. Não levara documentos nem nada. Exaltado, avisou que se não pudesse sair dali dirigindo um carro iria direto ao Procon abrir um processo contra a empresa por conta da “propaganda enganosa”.

Nervosíssimo, o gerente da revendedora disparou uma série de telefonemas para o patrão, para o responsável pela propaganda (o radialista Jefferson Coronel, na época responsável pelo setor de marketing da Bambino’s Veículos), para os advogados da empresa e finalmente concordou em atender aquele consumidor turrão e cheio de direitos. Serjão escolheu um Corcel Scort Hobby amarelo-canário todo incrementado (tala larga, aros de magnésio, descarga Kadron, toca-fitas Roadstar e antena elétrica).

Para entregar o veículo ao publicitário, os manobristas precisaram primeiro retirar 150 carros do pátio da empresa, congestionando completamente a Rua Salvador, em Adrianópolis, onde ficava localizada a revendedora. O trânsito naquela artéria virou um inferno. O bate-boca entre os apressados motoristas particulares e os manobristas era digno de discussão de quengas embriagadas em inferninhos de quinta categoria.

Depois de meia hora de confusão, Serjão entrou no carro e foi embora. Como garantia, havia dado apenas o número do telefone da agência G&F Comunicações, onde era meu parceiro de dupla de criação. Passou o final de semana se exibindo pelos botecos da cidade com seu novo brinquedo.

Na segunda-feira, quando entrei na agência para trabalhar, percebi que ele estava meio macambúzio. Meia hora depois, Sérgio me chamou na sua sala e relatou o ocorrido. De quebra, ele já havia amassado um dos para-lamas do carro sabe Deus onde. Pra completar, o pessoal da Bambino já havia ligado trocentas vezes para a agência solicitando que ele fosse assinar o contrato de compra do veículo, mas Serjão estava se fingindo de morto. Ele queria devolver o carro, já que não teria condições de pagar as prestações.

Penalizado de sua depressão pós-ressaca, resolvi ajudá-lo e fiz a única coisa que me pareceu sensata naquele momento: liguei para a revendedora, me identifiquei como chefe do Sérgio e expliquei a situação. O gerente da revendedora ficou possesso. Começamos a discutir.

– Vocês fazem uma propaganda idiota dessas e ainda querem ter razão? – disparei. “O Serjão não assinou nenhum documento. Vocês deram a chave do carro por livre e espontânea vontade. Além disso, pelo Código Nacional de Trânsito, vocês cometeram um crime ao deixar um sujeito embriagado dirigir um carro...”

Do outro lado da linha, o sujeito enlouqueceu de vez. Falou que eu não sabia com quem estava se metendo, insinuou que teria conexões nas altas esferas, que o Serjão iria ser preso, essas bobagens.

Resolvi encerrar o papo:

– Negócio seguinte: o carro de vocês está estacionado aqui na Rua Rio Ituxi, na frente da agência G&F Comunicações, e a chave está com o vigia da agência. Se daqui a meia hora o carro ainda estiver aí na frente, vou ligar para a polícia dizendo que desovaram um carro roubado aqui no Vieiralves...

Meia hora depois um sujeito desceu de uma picape em frente da agência, pegou a chave com o vigia Baiano, entrou no Hobby amarelo-canário todo incrementado e foi embora. Salvo engano, o Serjão ainda pagou duas diárias pela utilização do veículo no fim de semana.

Eu, se fosse o Bambino, teria descontado o resto do prejuízo no salário do radialista Jefferson Coronel, pra ele aprender a fazer propaganda decente.

Agruras de um contador de histórias


Abril de 1973. Dono de uma pequena tapera na Lagoa do Arari, em São Sebastião do Uatumã, o velho agricultor Jorge Emerenciano, o “Joca Farol”, casado com dona Sebastiana Tavares, era um emérito contador de histórias. Sabia tudo sobre curupira, saci pererê, caapora, mapinguari, iara, cobra grande, juma, rasga-mortalha, boto encantado, caboquinho da mata, visagens, encantados e o diabo a quatro. A molecada da comunidade fazia roda para ouvir seus relatos. Só havia uma coisa capaz de tirar o velho do sério: alguém interromper as suas histórias com alguma pergunta impertinente. Esse descuido era fatal. O velho se fechava em copas e não abria mais a boca.

Em uma determinada noite, uns dez moleques foram visitar Joca Farol. Ele estava numa cadeira de balanço, pitando seu fumo e observando as estrelas. Pediram para que ele contasse uma de suas fantásticas histórias.

– Conto não! – devolveu. – Esse moleque aí (e apontou para Dirceuzinho) vive interrompendo minhas histórias. Conto não! Só conto se ele for embora...

Os moleques confabularam entre eles e voltaram com o veredicto: o Dirceuzinho tinha jurado que ia ficar de matraca fechada. Ele podia contar sua história.

Joca Farol ficou calado alguns minutos, enquanto preparava um novo cigarrinho de fumo de rolo com sua faca fina, matutou, matutou, aí começou a falar:

– Esse acontecido já faz muito tempo. Na época, eu devia ter uns 20, 21 anos, nem lembro direito. Só sei que eu era um rapagão forte, bem nutrido. Mas o que assucedeu foi o seguinte. Eu havia colocado umas malhadeiras no Lago da Sucuri, para pegar uns tucunaré-borboleta, aí, enquanto esperava pela hora de pegar o pescado, fiquei pelado na praia e comecei a tomar banho de cuia, porque fazia um sol da muléstia. Mas não entrei no lago não, fiquei ali na parte rasa daquele mundão de água, bem na beira da praia. De repente, senti uma coisa se enroscando no meu tornozelo. Rapaz, fiquei gelado de medo! Era uma sucuriju de quase dez metros. Eu fiz força para tirar o pé da rodilha, mas não teve jeito. A bicha me levou pra dentro d’água. Aí, tamos nós dois lá no fundo, eu tentando livrar o pé, a cobra querendo me afogar, quando peguei na cabeça da bicha de jeito. Também, não contei conversa: segurei nos dois lados da boca da maldita, fiz força, muita força, para abrir aquela bocarra, até que consegui quebrar o maxilar da infeliz. Ela me soltou. Só que enquanto eu abria a boca da monstra, um dos dentes dela cortou de leve a minha mão e começou a sangrar. Quando tomei tenência, tinha um cardume de piranha vermelha me atacando, atraídas pelo sangue. Eu já tava quase sem fôlego, mas não me dei por vencido. Sai dando porrada e chutes nas piranha, nadando pra longe do cardume, até que consegui chegar na praia, coberto de sangue, porque piranha vermelha é um bicho filho da puta, onde toca leva um lasco. Quando estou limpando o sangue do corpo, ouço atrás de mim um esturro. Só deu tempo de eu me virar. Uma onça preta, que era um bitelo, já vinha em disparada na minha direção. Ela deu o bote, tentando pegar o meu pescoço, mas eu aparei a monstra com meu braço esquerdo. Os dentes dela cravaram no meu pulso, quase atingiram o osso. Com o braço direito, eu puxei a faca da cintura e...

– Peraí, seu Joca! Se o sinhô estava nu, como foi que tirou a faca da cintura? – interrompeu o Dirceuzinho.

Joca Farol apoplético, à beira de um ataque de nervos:

– Tá vendo?... Tá vendo?... Esse moleque não quer ouvir histórias, o que ele quer é discutir...

E não abriu mais a boca.

A molecada, frustrada com a interrupção do relato cinematográfico, quase encheu o Dirceuzinho de porrada.

O tal de mingau de mungunzá


Junho de 1984. Morador da comunidade da Serra do Bacaba, em Urucará, o velho Argemiro Gomes, de 78 anos, estava visitando a afilhada Cristina Reis, na sede do município, na véspera de São João. A cidade estava fervilhando de fogueiras, quadrilhas, comidas típicas, arraiais, músicas de forró no volume máximo e quermesses. Conversa vai, conversa vem, a afilhada foi lá na cozinha da residência e retornou com uma caneca de mungunzá, que ofereceu ao padrinho. O velho Argemiro começou a comer a iguaria com devoção e gosto.

– Minha filha, está uma delícia! Cumé que cê faz pro mungunzá ficá tão cremoso desse jeito? – perguntou Argemiro.

– Ah, padrinho, não tem segredo não! – explicou Cristina. – Depois de cozinhar o milho branco com água e sal, a gente coa e reserva. Aí, acrescenta um litro de leite de gado, um vidro de leite de coco, uma lata de leite condensado, uma lata de creme de leite, uma xícara de açúcar, um pedaço grande de pau de canela e uns dez cravinhos. Pronto. É só misturar bem e levar a panela ao fogo de novo. Assim que começar a ferver, pode desligar o fogo que o mungunzá está pronto.

Os olhos do velho Argemiro se encheram d’água. Reminiscências de sua infância passada na Boca do Paraná do Cumprido vieram à tona, aos borbotões. Emocionado, ele desatou o nó do peito:

– Sabe, minha filha, toda vez que chegava as festa junina lá na comunidade, a minha saudosa mãe também fazia mungunzá pra nóis. Mas num era desse jeito não...

– Como assim, padrinho? – espantou-se Cristina.

– Nós era muito pobre, minha filha, não dava pra comprar leite de gado, leite de coco, leite condensado, creme de leite, essas coisas – explicou o velho. – A mamãe cozinhava o milho branco com água e sal, coava, aí acrescentava dois litros d’água, um quilo de açúcar, pau de canela, cravinho e colocava no fogão à lenha por meia hora.

– Mungunzá sem leite?! Olha, padrinho, é a primeira vez que estou ouvindo isso – avisou Cristina. – Mas o mungunzá da sua mãe ficava bom?...

O velho Argemiro, limpando as lágrimas dos olhos:

– Olha, minha filha, ficava que nem o cu dela!

quarta-feira, março 11, 2020

Os tirambaços mortais do Mário Gordinho



Os craques Fernandinho e Mário Gordinho

O engenheiro Paulo Caramuru convidou a Seleção Amazonense de Masters para fazer um amistoso de futebol contra a Seleção da Eletronorte, onde ele jogava de volante e era o treinador.

Fechando gol do time dos eletricitários, o imprevisível Juarezinho Tavares.

No dia combinado, com as duas seleções já fazendo o aquecimento dentro de campo, Juarezinho chamou Paulo Caramuru e cantou a pedra:

– Aquele número dez, eu conheço! Aquele é o Mário Gordinho! Não deixa ele chutar, porra, não deixa ele chutar, que ele é foda!

Mal o jogo começou, o ponta direita da Seleção de Masters, o endiabrado Camarão, driblou o lateral esquerdo Nelsinho, foi até a linha de fundo e cruzou dentro da área.

O volante Paulo Caramuru subiu mais alto do que todo mundo e cabeceou a bola com violência lá para a intermediária.

Mário Gordinho, que estava plantado na intermediária, nem deixou a bola cair no chão.

Do jeito que ela vinha, ele deu uma “chinelada” com tanta força, que a bola entrou no ângulo, bateu na rede e voltou pra fora da grande área.

O goleiro Juarezinho, que havia ficado parado embaixo da trave sem esboçar nenhuma reação, saiu de seu estado de rigidez cadavérica em direção a Paulo Caramuru, aos gritos, completamente transtornado:

– Eu não te falei, porra! Eu não te falei, porra!

Antes que Paulo Caramuru esboçasse qualquer reação, Juarezinho já estava tirando a camisa de goleiro, entregando pro técnico e saindo de campo.

Ele é que não ia ser desmoralizado daquele jeito.

O Mário Gordinho é muito foda!

Bafafá no Campo da Polícia Militar



Sildomar Abtibol, uma das estrelas do Íris Internacional

Outubro de 1976. O poderoso Setembro Negro (ex-Murrinhas do Egito) vai enfrentar uma das sensações do Peladão, o Íris Internacional, também da Cachoeirinha, no campo do Comando da Polícia Militar, em Petrópolis, pela fase do “mata-mata” do campeonato.

O time do Íris Internacional contava com três moleques fora de série, que faziam a diferença: Ricardo Guerreiro (aka “Tostão”), Junior Perturbado (um dos melhores craques do Amazonas em todos os tempos) e Sildomar Abtibol (futuro jogador profissional do Nacional e depois vereador de Manaus).

O trio era responsável por 80% dos gols do time e jogava quase por música, como se fosse uma sinfonia de Beethoven onde tudo se encaixava no lugar apropriado. Dava gosto ver aqueles sacanas jogando.

O time ainda contava com os talentos de Vladimir Brother e Paulo Ribas.

Com quinze minutos de jogo, o Íris Internacional já fez 1 a 0 (gol de falta de Sildomar), já carimbou o travessão do Setembro Negro duas vezes (chutes de Junior Perturbado) e já obrigou o goleiro Gato a fazer uma defesa milagrosa, num chute enviesado de Tostão.

Aliás, o moleque de apenas quinze anos está tirando o sono da defesa. Tostão dribla, se desloca, corre, divide, faz o diabo a quatro.

A ruidosa torcida do Setembro Negro começa a exigir uma marcação mais forte em cima do endiabrado centroavante.

O quarto-zagueiro Lúcio Preto se encarrega da tarefa.

No primeiro “rabo de vaca” que leva, Lúcio Preto consegue correr atrás do moleque e, numa entrada violenta, o joga em cima do alambrado.

A torcida do Íris Internacional só falta entrar em campo para chacinar o carniceiro.

O juiz adverte verbalmente o zagueiro.

Tostão passa cinco minutos recebendo atendimento médico e retorna ao campo.

Na primeira bola que recebe, ele dá um balãozinho em Lúcio Preto e dispara em direção à área. 

O quarto-zagueiro consegue correr atrás do moleque e, em nova entrada violenta, quase quebra as duas pernas do centroavante.

Tostão cai no chão, urrando de dor.

O juiz se aproxima com a intenção de puxar um cartão amarelo.

Capitão do time, Lúcio Preto argumenta que se tratou apenas de um choque normal entre pessoas de compleição físicas diferentes: Tostão tem apenas 15 anos, ele tem mais de 30.

O juiz guarda o cartão amarelo.

O jogo recomeça. Tostão recebe uma bola de costas pra área, faz que vai passar pra Junior Perturbado, que está entrando pela direita, mas recolhe a bola em um meio giro, fica de frente pro crime e dá um simples tapa no canto esquerdo do goleiro Gato.

É o suficiente. Íris Internacional 2 a 0.

Falta pouco mais de dois minutos para acabar o primeiro tempo.

Sildomar ganha uma bola no meio do campo, toca para Junior Perturbado, que lança Tostão na ponta esquerda.

Lúcio Preto vai em direção ao centroavante e mete uma “voadora” quase mortal.

Tostão cai no chão, se contorcendo de dores.

O juiz puxa o cartão amarelo e corre em direção ao zagueiro que, fingindo uma contusão, também se contorce no chão.

Na mesma hora, entra em campo o major Paulo Ferreira, oficial do dia, com uma arma já engatilhada, que também corre em direção ao Lúcio Preto e avisa, peremptório:

– Escuta aqui, ô bonitão! Se você se aproximar desse guri mais uma vez, eu vou te dar dois tiros no joelho e te prender por trinta dias!

O juiz encerra o primeiro tempo.

 Lúcio Preto não voltou para o segundo tempo, com medo de ser preso.

Foi substituído pelo colored Pompeu.

O Íris Internacional ganhou de 3 a 1 do Setembro Negro, com outro gol de Tostão no segundo tempo. O moleque era foda.

Um feminista-raiz avant la lettre



Agosto de 1984. O boêmio Nei Parada Dura estava indo pra casa depois de uma farra no Bar Xorimã, quando viu um sujeito espancando violentamente uma mulher em plena Avenida João Alfredo (atual Djalma Batista), quase no cruzamento da Rua Pará.

Como era de madrugada e a avenida estava completamente deserta, o sujeito ia acabar matando a mulher se ninguém acudisse.

Apesar de estar bêbado, Nei estacionou o carro, desceu e já foi pagando geral:

– Deixa de ser covarde, filho de uma égua! Vem bater num macho igual a ti!

Antes que o sujeito percebesse o que estava acontecendo, Nei já havia lhe dado um tapão no pé do ouvido e uma rasteira.

O cabra se desmanchou no chão.

Ágil como um gato, Nei Parada Dura caiu em cima do sujeito e quando ia começar a lhe quebrar a venta, recebeu um duro golpe de mangará de banana no meio das costas.

Ele se virou pra trás pra saber o que estava acontecendo.

Desferindo novos golpes de mangará contra ele, a mulher não parava de gritar:

– Para de bater no meu marido, nego safado! Para de bater no meu marido, nego safado!

Nei Parada Dura ficou injuriado.

– Ah, aquele escândalo todo que vocês estavam fazendo na rua era briguinha de casal, é? Pois agora os dois vão entrar na porrada pra aprenderem a não fazer palhaçada em via pública!

E encheu de porrada o marido e a mulher.

Depois, entrou no carro e foi embora, com a certeza do dever cumprido.

sábado, março 07, 2020

Será o Benedito, Santa Etelvina?



O investigador Paulo César Dó, o “Pixoreca”

Junho de 1989. Disposto a se transformar em um pequeno produtor rural, Simas Pessoa comprou um imenso terreno (10x50m) em uma área de invasão, lá pras bandas do bairro de Santa Etelvina, praticamente a dois quilômetros do fim do mundo.

Todo final de semana, ele e sua parceira Dinha se mandavam pra lá, para roçar o mato e preparar o terreno para o início do plantio de feijão carioquinha. Passou seis meses nessa odisseia.

Em um determinado final de semana, ao chegar ao local, quando o feijão carioquinha estava começando a brotar, ele teve uma surpresa: seu terreno estava totalmente cercado com mourões e arame farpado.

Num dos mourões de sustentação do arame farpado, uma imensa tabuleta continha um aviso definitivo: “Propriedade particular. Os invasores serão recebidos à bala”.

Simas ficou tão puto que nem desceu do carro. Aquela sacanagem merecia uma resposta à altura. Ele voltou imediatamente para a Cachoeirinha e foi procurar o investigador Paulo César Dó, o “Pixoreca”, que vivia se jactando de possuir uma arma de fogo em casa para se defender de eventuais visitas do alheio.

Ele bateu na porta do investigador e, assim que este abriu a porta, Simas meteu um papo reto:

– Porra, Pixoreca, preciso daquele teu pau de fogo emprestado para fazer um acerto de contas lá no Santa Etelvina...

Paulo César entrou na casa e voltou com uma pequena Beretta 950B, semiautomática, calibre 22 curto (5,5 mm).

Simas colocou a arma na cintura, entrou no carro e, quando se preparava para ir embora, Paulo César se aproximou timidamente da janela e também mandou um papo reto:

– Parceiro, só tem um problema: a arma está sem balas...  As balas pra Beretta estão caras pra caralho!...

Simas queria briga.

Só não enfiou a arma no rodiscley do investigador porque teve pena.

E nunca mais quis saber do terreno-quase-sítio em Santa Etelvina, a padroeira dos lesos manauaras.

Jogo de sinuca no Bar do Aristides



O escritor Jones Cunha me exibindo a sua famosa arte plumária, no Lago de Tefé

No final dos anos 70, seu Aristides colocou uma mesa de sinuca no Top Bar e o boteco, que já vivia superlotado, começou a colocar gente pelo ladrão. Todo mundo queria tirar a barriga da miséria apostando no próprio taco.

Havia os chamados “cobras criadas”, em que se destacavam Nei Parada Dura, Alencar (aka “Baixinho”), Lúcio Preto, Frank Cavalcante, Marco Aurélio, Jones Cunha, Valdron, Carlinhos Branco, Helvécio e Guerra – os dois últimos traziam os próprios tacos importados em elegantes maletas de couro. Nessa turma, as apostas eram feitas em dinheiro.

Havia os diletantes, como Rubens Bentes, Chico Porrada, Mestre Louro, Sici Pirangy, Arlindo Jorge, Carlos Noia, Epitacinho Almeida, Ruizinho Major, Manoel Augusto, Antídio Weil, Roberto Amazonas, Sidão Soares, Nelito Bandeira e Luiz Lobão. Nessa turma, as apostas eram feitas em cerveja.

E, finalmente, havia os “patos”, ou seja, o resto da corriola. Como jamais gostei daquela ladroagem travestida de jogo sério, me limitava a olhar as partidas de longe.

O desencanado Lúcio Preto, um dos mais habilidosos naquele jogo de larápios, jogava sempre com uma latinha de Skol na mão e o taco na outra. Quero crer que era uma espécie de simpatia.

Antes de dar uma tacada, ele colocava a latinha em uma das bordas da mesa e começava a rodar a sinuca feito um peru doido, tentando encontrar a melhor jogada.

O escritor Jones Cunha, que na época era liso e confiado, aproveitava essa presepada do Lúcio Preto para pegar discretamente a sua latinha de cerveja e detonar legal.

Quando terminava sua odisseia – ele nunca matava menos de três bolas seguidas –, Lúcio Preto metia a latinha na boca e descobria, horrorizado, que o conteúdo havia se evaporado.

Sem falar nada, ele pedia nova latinha do seu Aristides e continuava jogando.

Um dia, puto da vida porque já havia perdido três partidas seguidas pro Nei Parada Dura, Lúcio Preto pediu uma nova latinha de Skol do seu Aristides, foi até o banheiro, despejou o conteúdo fora e encheu a lata de urina.

O choque térmico fez com que a lata de cerveja ficasse tipo “véu de noiva”. Ele voltou pra mesa, fingiu que dava uma golada, colocou a latinha em uma das bordas da mesa e começou a procurar a melhor jogada feito um peru doido.

Sorrateiramente, Jones Cunha pegou a latinha “véu de noiva” e deu uma golada de respeito, disposto a detonar o conteúdo todo de uma só vez.

Alguns segundos depois, ele ficou pálido feito um defunto vítima de hepatite e começou a cuspir o líquido de volta, emporcalhando o piso do bar. Ninguém entendeu nada.

Lúcio Preto, que havia acabado de concluir sua jogada, se aproximou dele e sussurrou em seu ouvido:

– Qualé, bicho?! Se eu soubesse que tu não gostavas de beber mijo, eu tinha pedido outra coisa...

Jones Cunha não passou recibo, mas também nunca mais se aproximou das latinhas de cerveja do Lúcio Preto.

Fuá na casa da Graça



O engenheiro civil Chico Costa e o engenheiro eletrônico Simão Pessoa

Fevereiro de 1976. Estudante de Engenharia Civil, Chico Costa estava promovendo uma “brincadeira” em sua casa e, em vez de comprar as batidas do Selmo Caxuxa para animar a festa, resolveu ele mesmo fazer a birita, apesar de não ser chegado a uma manguaça.

Deu-se o inevitável: Chico Costa carregou demais na cachaça e no açúcar, produzindo uma verdadeira bomba atômica em forma de batida de amendoim.

Para completar a fuzarca, cada convidado que entrava na “brincadeira” era obrigado a derramar uma garrafa de birita dentro do panelão de 20 litros.

A mistura de cachaça, vodka, gim, vermute, quinado, uísque, rum e campari transformou a bomba atômica em bomba de nêutrons. Não ia sobrar uma alma viva depois de experimentar aquela batida

Eu estava com uma namoradinha, Nonata Batista, biritando no Bar do Aristides e ouvindo alegremente a seleção musical, já que a festa estava rolando ao lado do boteco.

O Mazinho chegou como quem não quer nada, sentou à nossa mesa, bebeu um pouco de cerveja, conversou um pouco e depois foi pra “brincadeira”.

Dez minutos depois, passa um sujeito pela frente da nossa mesa, segurando o sangue que saía do seu nariz. Era o Chico Porrada, a primeira vítima do Mazinho.

Segundo os relatos posteriores, Mazinho tomou três doses da batida infernal e colou o platinado. Começou a se invocar com todo mundo. Quem reclamasse, ele partia pra porrada.

Cinco minutos depois de eu ver o Chico Porrada com o nariz quebrado, o Mazinho sai de dentro da festa cobrindo o Airton Caju de catiripapos, os dois vão brigando até o meio da rua, Luiz Lobão tenta desapartar, leva um soco do Mazinho e aí, puto da vida, ele afasta Airton Caju da confusão e começa a brigar com o Mazinho.

Carlito Bezerra, Roberto Amazonas, Chico Costa e Nego Walter conseguem desapartar os beligerantes.

Como se nada tivesse acontecido, Mazinho, de olhos rútilos, volta pra minha mesa, bebe um pouco de cerveja, conversa um pouco e depois retorna pra “brincadeira”.

Dez minutos depois, o Mazinho sai de dentro da festa cobrindo o Gilson Cabocão de porrada, os dois vão brigando até o meio da rua, Sici Pirangy tenta desapartar, leva um catiripapo do Mazinho e aí, puto da vida, ele afasta Gilson Cabocão da confusão e começa a brigar com o Mazinho.

Arlindo Jorge, eterno brother do Sici, vem em ajuda do amigo e os dois começam a brigar com Mazinho.

Carlito Bezerra, Roberto Amazonas, Chico Costa e Nego Walter conseguem desapartar os beligerantes.

Como se nada tivesse acontecido, Mazinho, de olhos rútilos, volta pra minha mesa, bebe um pouco de cerveja, conversa um pouco e se prepara pra retornar pra “brincadeira”.

Nesse exato momento, um táxi para no meio da rua e dele desce o afável Zé Leso, fantasiado de magnata árabe, se preparando, provavelmente, para participar mais tarde de algum baile carnavalesco.

Mazinho nem pensa duas vezes. Avança em cima do Zé Leso e lhe dá um murro na ponta do queixo. Zé Leso cai no chão, desmaiado.

Uns dez sujeitos avançam em cima do Mazinho e começam a lhe cobrir de porrada. Ele se defende bem.

De repente, para um segundo táxi no meio da rua e de dentro dele descem Nilsinho, irmão do Mazinho, acompanhado de Nei Parada Dura, Erivam Cabocão e Olíbio Xiri.

Ao perceberem Mazinho em apuros, entram na confusão. É porrada pra tudo quanto é lado.

Carlito Bezerra, Roberto Amazonas, Chico Costa e Nego Walter conseguem desapartar os beligerantes.

Beirando um ataque de nervos, Graça Costa, irmã do Chico Costa, abre o verbo:

– A culpada dessa confusão toda é essa merda aqui!

E, antes que alguém pudesse abrir a boca, ela despeja na sarjeta o panelão de 20 litros de batida do capiroto.

Peguei a Nonata Batista pelo braço e me mandei.

Vão ser doidos assim lá no Bar do Caxuxa.

sexta-feira, março 06, 2020

O poeta, o playboy e a guitarra Gibson



Celestino Neto, Thiago Roney e Marcileudo Barros

Outubro de 1982. O poeta Marcileudo Barros estava subindo a Avenida Eduardo Ribeiro quando percebe um sujeito andando pra lá e pra cá na calçada da loja Credilar-Teatro, demonstrando sinais de irritação e impaciência.

Ele reconhece o sujeito. É seu velho amigo Carlinhos Playboy, parceiro dos áureos tempos da Cachoeirinha. Os dois se abraçam efusivamente.

– O que qui você está fazendo aqui? – pergunta Marcileudo.

– O Zezinho veio comprar uma guitarra Gibson aqui nessa merda e, como o pagamento era à prestação, o filho da puta do gerente exigiu um fiador! – explicou Carlinhos Playboy. – Eu vim ser o fiador do caralho da guitarra. Estou aqui desde o meio-dia e me disseram que o filho da puta do gerente foi almoçar. Já são quase duas da tarde e o viadinho ainda não voltou. Vou continuar esperando. E você, porra, o que qui você está fazendo por aqui?...

– Eu sou o filho da puta do gerente viadinho que saiu pra almoçar... – devolveu Marcileudo, timidamente.

Carlinhos Playboy quase caiu no chão de tanto rir.

A flauta mágica do Arnaldo Garcez



Arnaldo Garcez, Simas Pessoa e Juarezinho Tavares

Setembro de 1987. Depois de alguns meses de namoro, o artista plástico, músico e poeta Arnaldo Garcez aceitou o convite da namorada Rita Bacury e se mudou para a casa da garota, lá na Rua Itacoatiara, quase canto com a Rua Borba.

Ele ficou alojado em um dos quartos, junto com o irmão caçula da Rita.

A rotina de seu Moisés e dona Cecília, pais da Rita, começou a ser quebrada da forma mais esdrúxula possível: assim que o dia amanhecia, Arnaldo Garcez começava seus treinos diários de flauta doce e transversal.

Os trinados repetitivos começaram a dar nos nervos do casal.

Um belo dia, mais nervosa do que de costume, dona Cecília interpelou a filha:

– Escuta aqui, minha filha, esse negócio que esse rapaz coloca na boca é algum doce?...

Rita ficou espantada com os conhecimentos musicais da genitora:

– É flauta doce sim, mamãe, é flauta doce sim! Como foi que a senhora descobriu?

Dona Cecília, injuriada, cortando da linha de três pontos:

– Ah, minha filha, porque só sendo uma coisa muito doce pra esse estrupício colocar na boca e perturbar as pessoas com esse irritante fi-ri-fi-ri-fi-ri tamanha seis horas da manhã...

No mesmo dia, Arnaldo Garcez foi colocado pra fora da casa.

O coração bobo de um cabra da peste



Francisco Praciano, Lalá Soares e esse vosso escriba

Junho de 2018. Na companhia do presidente regional do PDT Stones Machado, do ex-deputado federal Francisco Praciano, do designer gráfico Gil da Liberdade e do violonista Lalá Soares, eu retorno a Parintins depois de um hiato de quase 10 anos.

Motivo da efeméride? A celebração dos 25 anos da “Festa da Amizade”, capitaneada pelo compositor Carlos Paulain, em sua própria residência, sempre no sábado, no segundo dia do festival.

Trata-se de uma monumental boca livre com mais de 100 convidados, que detonam centenas de bodós, acepipes diversificados (maniçoba, vatapá, caruru, pirarucu de casaca, leitão à pururuca, picanha no bafo, etc) e engradados de cerveja em quantidade industrial.

A parte musical da esbórnia fica por conta de Israel e Junior Paulain, David Assayag, Edilson Santana, Robson Junior, Prince do Boi e quem mais aparecer no pedaço para dar uma canja.

Carlos Paulain, Stones Machado e esse vosso escriba

No início da manhã de sábado, Stones Machado levou eu e Gil da Liberdade para uma reunião política em Nhamundá, onde o candidato pedetista à reeleição, governador Amazonino Mendes, estaria vendendo o seu peixe.

Seria um encontro rápido, de no máximo uma hora, de forma que estaríamos de volta a Parintins antes do meio-dia.

Infelizmente, a lancha fretada pelo Stones deu pane mecânico antes de chegarmos ao nosso destino, nos deixando à deriva no Paraná do Aduaca por quase 50 minutos até a chegada do socorro.

Resultado: a nossa programação sofreu um atraso monumental, conversamos com o governador em Nhamundá por cerca de cinco minutos e só conseguimos desembarcar em Parintins por volta das 14h.

O panavueiro na residência do Carlos Paulain já estava colocando gente pelo ladrão.

Nos abarcamos em uma mesa onde Francisco Praciano e Lalá Soares saboreavam uma estupenda galinha à cabidela, uma das especialidades da Regina, esposa do Carlos Paulain.

Eu mal havia provado do meu caldinho de muçuã quando Praciano me deu uma cotovelada na costela e mandou um papo reto:

– Poeta, não dá bandeira, mas passa o pano nessa menina que está sentada em uma das mesas aqui do nosso lado... Caralho, mas ela tem os lábios da Angelina Jolie e um sorriso lindo... Espia só, discretamente, sem dar mancada...

Olhei para a menina rapidamente e continuei concentrado no meu caldinho de muçuã.

Dali a cinco minutos, recebo uma nova cotovelada na costela. Era o Praciano de novo:

– Olha só a lapa de coxas da menina, poeta! Olha só a lapa de coxas da menina! Puta que pariu, mas ela é muito gostosa...

Levantei a vista do prato e olhei discretamente para o traseiro da menina, que havia se levantado da mesa e se dirigia a um dos banheiros da residência.

Sem dizer nada, voltei a me concentrar no caldinho de muçuã.

Dali a cinco minutos, recebo uma nova cotovelada na costela. Era o Praciano, cada vez mais eufórico, observando a musa que retornava do banheiro:

– Porra, poeta, essa menina é de parar o trânsito. Ela balançou meu coração bobo de cabra da peste nordestino. Vou tomar umas brejas pra criar coragem e me apresentar pra ela... De repente, sei lá, pode ter jogo e eu acerto sozinho na mega-sena acumulada...

Eu havia terminado de devorar o caldinho de muçuã e me preparava espiritualmente para o consumo de cervejas estupidamente geladas. Aí, fui de uma sinceridade cruel:

– Porra, Praciano, tem 50 mil fêmeas disponíveis aqui na ilha de Parintins! 50 mil fêmeas dando sopa! E, de repente, porra, você resolve se engraçar logo da minha?... Essa aí é a Kelly Taline, minha namorada há cinco anos. Fui eu que a convidei para vir aqui hoje, na companhia do Áureo Petita. Não se avexe não, que vou te apresentar pra ela...


Aí, antes que ele abrisse a boca, chamei a Taline, fiz a apresentação devida para o cabra da peste, ela sorriu meio encabulada e voltou para a mesa que dividia com o Áureo Petita e um casal de amigos. O Praciano não sabia onde enfiar a cara. Acontece. Cada uma.