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quinta-feira, agosto 29, 2019

O centenário de Jackson do Pandeiro



Por João Máximo

Não sei a exata distância de Alagoa Grande a Campina Grande, mas sei, pelos relatos chegados da Paraíba, que a cantadora de coco Flora Mourão fez o percurso em três noites e quatro dias, a pé, levando pelas mãos os filhos José, João e Severina, o mais velho com onze anos.

O episódio não seria lembrado aqui se José não crescesse tocando zabumba, não mudasse depois para o pandeiro, não se inspirasse no nome de Jack Perrin (herói dos filmes de faroeste que ele curtia no poeira da cidade), nem ficasse conhecido, primeiro, como Zé Jack e, por fim, como Jackson do Pandeiro.

Dentro de alguns dias a música popular vai comemorar o centenário de seu nascimento em 31 de agosto de 1919. Fala-se de alguma coisa à altura de um dos mais radiantes intérpretes do nosso cancioneiro, mas, tratando-se de Brasil, o “à altura” deve ser visto com um mínimo de cautela.

Há promessa de um documentário, com base em entrevistas de gente que conviveu com o homenageado, incluindo cenas de sua atuação na TV e no cinema. Além disso, o incansável Rodrigo Faour está produzido CD com faixas gravadas em fins dos anos 50, na Columbia, até agora não relançados.

É claro que Jackson do Pandeiro merece mais. Mas o quê? Como trazer de volta um artista que, morto em 1982, começou a ser esquecido antes mesmo de sair de cena. Verdade. Em seus últimos anos de carreira os dias de sucesso já iam longe, embora ele continuasse sendo o mesmo excelente intérprete da melhor música popular brasileira.

Valiosos textos têm sido dedicados a Jackson do Pandeiro a propósito dos 100 anos. São importantes tentativas de recuperar a memória de um paraibano pobre, negro, analfabeto até a idade adulta, que só foi descoberto aos 34 anos e que por quase 30 deixou seu nome entre os maiores.

Jackson do Pandeio era um original. Sua técnica de divisão, única, aprendeu-a sozinho. Não procede aplicar-se a ele a quase mania de se atribuir à influência de João Gilberto todas as qualidades de nossos grandes intérpretes. Jackson do Pandeiro veio antes, seu modo de dividir já estava presente nos primeiros discos. Também é gratuita a associação com Luís Gonzaga, por terem ambos feito o Sul ouvir, aprender e gostar do que sempre se fez nas bandas lá de cima.

Jackson, como Gonzaga, cantou de tudo que se fazia por lá: coco, xote, rojão, forró, frevos, pontos. Mas, diferentemente, dedicou-se mais ao samba do que à música nordestina. O que resultou em outra associação, esta com Jorge Veiga, conhecido como “o caricaturista do samba”.

Os que apontam semelhanças entre os dois falam das vozes anasaladas e as bossas, sem considerar que o canto nasal de Jackson do Pandeiro não tinha a agressividade do outro, e que sua bossa de sambista era tão mais viva que levou Jorge Veiga, enciumado, a acusá-lo de querer tomar-lhe o lugar.

Jackson do Pandeiro já andava meio esquecido quando Gilberto Gil o trouxe de volta, em 1972, ao gravar “Chiclete com banana”, de Gordurinha e Almira Castilho. Mais do que celebrar o compositor baiano, o disco chamou a atenção para o intérprete de 1959, a ponto de Gil ver ali uma semente tropicalista. Terá sido? Quanto a Almira, parceira e mulher de Jackson por doze anos, era uma pernambucana mais alta, mais moça e mais instruída que ele, lembrada por seu jeito de dançar, dura, corpo ereto, braços e pescoço movendo-se sem conexão. Morreria em 2011, aos 86 anos.

Enfim, as comemorações. À altura ou não. Por algum motivo, fãs de Jacskon do Pandeiro começaram a homenageá-lo antes dos 100 anos. O mesmo Faour, com uma caixa de 15 CDs, lançada há três anos pela Universal Music, com 235 faixas da melhor fase. Como se disse então, uma discografia “quase completa”, faltando justamente o que fora gravado na Columbia. É caixa que vale busca nas poucas lojas onde se pode comprar CD (se é que ainda há CD para comprar nesses dias de rendição ao streaming).

De bem antes, de 2001, é a excelente biografia “Jackson do Pandeiro, o rei do ritmo”, de Fernando Moura e Antônio Vicente, esta sim, como os trabalhos de Faour, à altura de um rei.

A memória mente muito, mas não faz por mal



Por Joaquim Ferreira dos Santos

Eu me lembro, e não entendo por que de uns tempos para cá as pessoas ficaram com vergonha de molhar os olhos quando se lembram de ai como era bom, eu me lembro que saudade era, ao lado do batuque na cozinha, o toque de trivela e as ancas da sardinha 88, a saudade era uma das glórias nacionais.

Não tinha tradução no idioma inglês e nem em qualquer outro. Coisa nossa. A saudade era pedacinho colorido de confete e, dependendo de quão velho cada um de nós fosse, havia sempre alguém que se lembrava de ter dormido protegido apenas pela segurança antimosquito dos espirais de durmabem, outro que se abanava com o sexo seguro de um catecismo do Zéfiro – e isso tudo era tão delicadamente gostoso que a saudade matava a gente, morena. De prazer. Tenho saudade e gosto de conjugar seus verbos em todos os tempos regulares e irregulares.

Às favas a modernidade dos que não vêem sentido em pegar jacaré nessa onda, não vêem nenhuma praticidade em se ter um carro com os faróis projetados para trás. Eu vejo.

I see dead people, mas sem o mesmo medo do garoto no cinema. Na boa. Sinatra disse para Sammy Davis Jr. que vencia quem morria com mais brinquedos. Estou de acordo. Gosto de brincar de saudade. Tenho dúzias desse bambolê e Playmobil.

Eu me lembro da frota encabeçada pela Santa Maria, Pinta e Nina. Eu me lembro de todos os afluentes da margem direita do Amazonas, começando com o Javari e o Juruá, lá no cantinho com o Acre, e vindo até aqui perto na boca do Atlântico com o Madeira, Tapajós, Xingu e Tocantins. Eu me lembro, e se Deus quiser não pretendo jamais me esquecer, dessas inutilidades escolares porque, por menos utilidade que elas ofereçam hoje aos homens de negócios que somos, não me ocorre madalena mais gostosa para lambuzar de jajá de coco os lábios da memória e alavancar junto o cheiro da minha pasta de couro na escola.

Qual o problema?

Qual é o mosquito de se ouvir de novo o bento que bento é o frade na hora do recreio (que hora tão feliz, queremos o biscoito São Luiz) e ainda o Zé Trindade chanchadeiro avaliando, e me sendo primeiro professor na matéria, a dona boazuda que passava emulando a pororoca marajoara, as águas quentes de Goiás e o arrebol do Arpoador. “O que é a natureza”, dizia o Zé. Até hoje concordo, me maravilho e faço profissão de fé.

Sei que quanto mais fraca for a memória – e eu não tomei todo o óleo de fígado de bacalhau que o doutor mandava – quanto mais fraca a memória mais o cidadão se recordará com nitidez de como foram bons aqueles tempos. Melhor assim. E, boémia, aqui estou de regresso, aqui estou vibrante de suspiros de como era malandramente elegante saltar de ônibus andando, como era matissiana a seda azul do papel que envolvia a maçã e como toda a atual programação do canal a cabo Sexy Hot soa sem mistério erótico diante do pêra, uva, maçã ou salada de frutas com as meninas no recreio.

Eu vi essas “cachorras” nascendo. Eram chamadas de avião, pedaço de mau caminho, certinhas, broto. Posso até achar que as saradas sucederam-nas com mérito, e, cá entre nós, eu adoraria chancelá-las com o meu carimbo de aprovadas. Mas jamais vou esquecer as que me foram cacho, affair e perdição.

A memória mente muito, mas não faz isso por mal. A subjetividade lhe é da índole. Eu me lembro, qualquer um pode ir ao arquivo confirmar, que o ataque do Flamengo era formado por Joel, Moacir, Henrique, Dida e Babá. Já a memória afetiva não tem autenticação passada em cartório, não registra assinatura. Ela apenas pede baixinho, feito a princesinha Norma Blum no Teatrinho Trol da Tupi, que você acredite. A memória afetiva, essa minha crença de que o fonograma perdido de Dóris Monteiro cantando o jingle do Café Capital é a melhor gravação da bossa nova, tem a inteligência do dono. É o outro lado do videoteipe, esse burro da pior espécie. Limitado a suas câmeras óbvias, o teipe registra tudo exatamente como é de fato. Tolo. Moço, pobre moço. A memória não.

Paulinho da Viola ensinou que a vida não é só isso que se vê. É um pouco mais. Quem haverá de saber, sequer eu, sequer o analista, o bem que me fez o amor inicial? Presumo que minha primeira namorada tenha sido a moça da tampa da caneta esferográfica, aquela para sempre sorridente que ia tendo o maiô subtraído pelo movimento da tinta até que finalmente, para meu espanto, revelava sua gloriosa e glabra nudez. Saudades sinceras, meu bem. Foi bom enquanto durou a tinta, querida.

Eu me lembro do mocotó das vedetes, do pente Flamengo para fora do bolso, de ajudar a empregada a tirar as pedrinhas do feijão, das pílulas de vida do dr. Ross fazendo bem ao fígado de todos nós - e não sou doido de estar com isso querendo matar a saudade de ninguém. Que a todos a saudade seja imortal. Vivo da minha, e graças a Deus essa saudade me vem com duas polegadas a mais e na cor mais linda do mundo, o azul da pedra do anil Rickett. Sou grato quando a saudade me aparece com aquela saia tergal plissada, cheia de machos e que ao estrear, no governo João Goulart, foi apelidada de Maria Teresa, por ser nossa primeira dama, como insinuava a maledicência da época, cheia deles também.

Quero mais é tratá-la, a saudade, a minha, com Biotônico Fontoura. Perpetuá-la com a gordura de coco Carioca. Nutri-la com a banha de porco e com muitos biquinhos daquele pão, os seios que eu imediatamente beliscava quando era trazido pelo padeiro de bicicleta. Quero que a saudade cresça e apareça, brinque com a língua retrô, faça barba-cabelo-e-bigode da contemporaneidade otária e mostre a todos que não adianta estrilar e nem bater o pé. O que resolve é ter logo à mão lâmpadas GE. O que resolve é fazer a luz da criatividade e apagar o preconceito.

A culpa, se você pretende classificar meu comportamento de antinatural, é do desafinado. João Gilberto, logo ele, um sujeito que vivia cantando sambinha antigo, lançou em 1959 o Brasil na terra da modernidade com o LP “Chega de saudade”.

O país do futuro, tão anunciado, chegara e queria se livrar o mais rápido possível do Jeca Tatu, do tiro no peito do Getúlio, da bofetada no Bigode, das macacas de auditório, das múmias do Museu da Quinta da Boa Vista, dos amores infelizes do Antonio Maria. Queria se reapresentar em novo padrão. Camisa Volta ao Mundo que não precisava passar, garotas de biquíni no Arpoador, o fusca produzido nas fábricas de São Paulo. Depois de décadas com o berreiro do Vicente Celestino tonitroando nos ouvidos pátrios, a modernidade urgia em sintonizar o dial num sujeito cantando baixinho. Como o Chet Baker e a Julie London faziam lá fora. Foi aí que João sussurrou o chega de saudade, e o Brasil começou a achar cafona, hoje de manhã, tudo que tivesse sido feito ontem à noite.

Sinceramente, sem querer cantar marra, sem tirar chinfra, eu estava lá, e não pisquei. Deve ser porque eu usava Optraex, um copinho azul em que se colocava uma solução líquida para lavar o olho. Com a menina-dos-olhos viva e esperta, não levei João no radical. Entendi que aquilo era o velhíssimo Dorival Caymmi, o eternamente Orlando Silva, só que numa outra batida de violão, essa coisinha também das antigas. Segui na paz, curtindo tanto o blim-blom do novo baião de João como o que vinha das ondas da PRE-8, Rádio Nacional do Rio de Janeiro, transmitindo diretamente do palco-auditório do 21° andar da Praça Mauá, 7.

Eu sempre pautei a vida pelo bordão do Café Moinho de Ouro, que já nos tempos dos barões era servido nos salões – e nunca entendi por que jogar fora os bons grãos da memória. Não só digo que dura lex, sed lex, no cabelo só uso gumex, como faço questão de aproveitar sempre uma sobra do fixador para colar bem coladinho tudo o que já ameaça ser vaga lembrança. I see dead people, e não só: produtos, jingles, comportamentos, piadas e palavras. Pode ser tudo muito divertido e brinquedo. Ou você não brinca com meu brinco?

Continuo achando, do mesmo jeito que os Sex Pistols cantando o “My Way” do Sinatra, feito o João cantando Noel, que não há programação melhor para o grande rádio da vida do que misturar as estações. Não dar um chega-pra-lá no passado. Mas manter vivo, para sempre turbinado, o que nos é felicidade e borogodó.

O último suspiro do ufanismo



Por Sergio Augusto

A nostalgia não é mais o que era. Quando, nos anos 1970, a atriz Simone Signoret teve o lampejo de dar esse espirituoso título a seu livro de memórias, a nostalgia, ao contrário do que ela acreditava, ainda era o que havia sido. Basicamente porque, além e aquém das guerras e demais flagelos do passado, ainda restava uma abundância de coisas boas e gente muito especial para serem recordadas. Hoje até as décadas de 1970 e 80 só provocam suspiros em quem delas é capaz de se lembrar.

Ok, não havia internet, outros acrescentariam o celular e até o Viagra, mas tantas e tamanhas são as evidências da piora geral (cultural, social, econômica, ambiental etc), que eu me pergunto do que sentirão falta os futuros saudosistas. O que suas madeleines irão deflagrar? Ou melhor, o que lhes restará de inolvidável para remoer com saudade, orgulho e deleite?

Praticamente nada. E não estou pensando em Trump e outras calamidades estrangeiras, mas exclusivamente no Brasil da desigualdade social escandalosa e da violência institucionalizada (uma em cada cinco chacinas cometida por policiais), do desemprego em massa, do Brasil usurpado por milicianos e contaminado pelo ódio, pela ignorância soberba, pela desesperança ressentida, do Brasil assaltado por um bando de fanáticos religiosos, terraplanistas e inimigos declarados da ciência, da cultura, dos pobres e dos índios.

Nem sequer com as dádivas da natureza, em acelerado processo de deterioração, podemos mais contar. Perdemos o protagonismo internacional de alguns anos atrás, notoriamente nas discussões e programas ligados à sustentabilidade, desdouro algum se, ao invés de coadjuvantes, não tivéssemos virado vilões da destruição ambiental. Mais do que vilões, tomamo-nos alvos de chacota mundial, graças ao que dizem e fazem o presidente e o núcleo doidivanas de seu ministério.

Levantei a questão da nostalgia numa roda de amigos, e um deles respondeu: “Eu já estou até sentindo saudades do governo Collor, imagina.” Todos apenas riram. A que patamar descemos.

E porque descemos abissalmente em quase tudo (inclusive no futebol) e fazia, justo naquele dia, 80 anos da primeira gravação de Aquarela do Brasil, mítico fundador do gênero samba-exaltação, ápice do ufanismo em nossa também decadente música popular, alguém levantou outra questão procedente: se ainda existisse samba-exaltação, o que o Ary Barroso de hoje exaltaria?

Para começar, não poderia comparar o Brasil a um “mulato inzoneiro”. Mais do que politicamente incorreto, passível de enquadramento na Lei Afonso Arinos, embora pouquíssima gente saiba o que significa inzoneiro (sonso, enganador), já em desuso quando Ary Barroso pintou sua utópica aquarela. O próprio Francisco Alves, o primeiro a gravar o samba, ignorava seu significado, talvez porque a tenha registrado como “linzoneiro”.

As feministas poderiam implicar com a “morena sestrosa de olhar indiscreto”; mas o calcanhar de Aquiles do samba é a estrofe que proclama o verde que o Brasil dá, “para o mundo admirar”, comprometida pelo desmatamento e incêndios na Amazônia e em outros verdes que o mundo aprendeu a admirar, e o governo Bolsonaro e seu ministro do meio ambiente se apressam em agronegociar e, por via de consequência, destruir.

Palavras, em tom de queixa, de um pecuarista paraense, suposto beneficiário das políticas ambientalistas do atual governo: “Bolsonaro inflamou o desejo pelo desmatamento”. Que, diga-se, cresceu 66% em julho. Sem contar as dantescas queimadas, que provocaram indignação mundial, a suspensão de verbas para o Fundo Amazônico por parte da Alemanha e Noruega, e renderam vários apelidos ao presidente, entre os quais “Bolsonero” (apud Marcelo Rubens Paiva) e “Dragão da Maldade” (apud Aroeira).

Ao culpar as ONGs de atear fogo em nossas matas, outro epíteto lhe cairia bem: “Bolsonóquio”.

Mas voltemos à octogenária aquarela do Ary. Tirantes a mulata sestrosa, o Rei Congo, a “Mãe Preta do Serrado” e a “Sinhá Dona” que arrasta pelos salões o seu vestido dourado, o Brasil que nela predomina é o da natureza exuberante, selvagem, de fontes murmurantes e matas sem fim. Nisso Ary manteve-se fiel à edenização da paisagem estabelecida pelos colonizadores portugueses, teorizada por Sérgio Buarque de Holanda em Visões do Paraíso, e deu a tônica ufanista aos sambas-exaltação que em seu rastro logo surgiram e fizeram de Francisco Alves seu menestrel de plantão.

Brasil, “continente a caminhar”, “onde o azul é mais azul”, proclamavam os versos de David Nasser para o samba de Alcyr Pires Vermelho, lançado meses depois de Aquarela do Brasil e acusado de plágio por Ary. A hipérbole do “azul mais azul” seria retomada por Braguinha em Onde o Céu é Mais Azul, também de 1944, tonitruante propaganda das riquezas vegetais e minerais deste “país grande e sem fim”, de um “povo bom e tão feliz”.

Os “saborosos cambucás” são de outra e menos antiga exaltação, Olhos Verdes, de Vicente Paiva, lançado em 1950 por Dalva de Oliveira, celebração da mulata e da cadência do seu andar, réplica mimética dos “requebros e maneiras das palmeiras esguias e altaneiras”, e de seus olhos da cor do mar e da cor da mata.

O samba-exaltação surgiu e floresceu, paradoxalmente, numa época imprópria ao seu cultivo. Em 1939, a Europa se preparava para uma guerra mundial e o Brasil vivia sob a ditadura do Estado Novo. Mas, apesar de tudo, havia muita esperança por estas bandas, de resto justificada, pouco depois, pela derrota dos nazistas e o fim da ditadura. Bons tempos aqueles.

quarta-feira, agosto 21, 2019

Os 130 anos de Cora Coralina: a mulher que reescreveu a história de Goiás com poesia


Por Fábio Alves

Cora Coralina faria 130 anos nesse dia 20 de agosto. A escritora goiana mais reconhecida do país marcou época por registrar o ponto de vista feminino, desvelar preconceitos de seu tempo e ajudar a reorganizar a história oficial de Goiás e do Brasil. Em sua obra estão temas do cotidiano das mulheres, dos velhos e das crianças. Abordagens críticas de estética ímpar documentam os excluídos e marginalizados dos séculos XIX e XX.

Através de Cora vemos o castigo dos cacos de vidro amarrados ao pescoço das crianças, as prostitutas punidas com cabeças raspadas e a Igreja disciplinando corpos. A escritora foi umas das precursoras no enfrentamento à dominação cultural da sociedade machista. Escreveu sobre os temas que a rodeavam e transgrediu as normas sociais por ser uma mulher escritora que exaltou a liberdade das mulheres.

Nascida na cidade de Goiás em 1889, foi batizada como Anna Lins dos Guimarães Peixoto Bretas e escolheu Cora Coralina. “Gosto muito deste nome, que me invoca”, escreveu o poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade no Jornal do Brasil, em dezembro de 1980, encantado com a goiana.

Drummond cravou: “Cora Coralina, pra mim a pessoa mais importante de Goiás. Mais do que o governador, as excelências parlamentares, os homens ricos e influentes do Estado. Entretanto, uma velhinha sem posses, rica apenas de sua poesia, de sua invenção”.

Cora cresceu em meio ao processo de mudanças na vida das mulheres – que aos poucos conquistou acesso à educação e espaços nunca antes ocupados na sociedade. Frequentou as primeiras séries do ensino primário e aos 14 anos escreveu os primeiros textos. Com 21 anos, grávida, saiu de Goiás para São Paulo com seu futuro marido.

De volta a Goiás

Ela voltou viúva para a agora conhecida casa velha da ponte, às margens do Rio Vermelho, em Goiás, onde foi doceira de reconhecida mão cheia. O primeiro livro veio em 1965: Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais, que foi lançado quando ela tinha 76 anos. O livro foi enviado para vários escritores. Drummond foi um deles e ajudou na projeção nacional da escritora. O mineiro louvou ao país a idosa de versos singelos e libertários.

Pesquisadores e críticos literários apontam que os excluídos – com ênfase nas questões das mulheres – e os problemas sociais circundaram a poesia de Cora. A obra se mostra atual e de importante registro, uma vez que pouco foi superado e as feridas das desigualdades de gênero e desigualdades econômicas seguem expostas nos dias de hoje.

“Ela (Cora) se coloca junto aos humildes, defende-os com espontânea opção, exalta-os, venera-os. Sua condição humanitária não é menor do que sua consciência da natureza. Tanto escreve a Ode às Muletas como a Oração do Milho”, analisou Drummond, ainda no texto de 39 anos atrás.

Mulher forte

A personalidade forte e marcante na obra; o fato de ter vencido todos os obstáculos da vida de artista; e o dom com as palavras e o dom com a poesia são os motivos que o escritor Miguel Jorge atribui ao sucesso empreendido por Cora Coralina desde sua primeira publicação.

“Em cada obra poética sentimos a emoção e os sentimentos de uma mulher comum e lutadora que sabia se expressar através dos versos”, diz o escritor que sucedeu Bernardo Élis na cadeira de número 18 da Academia Goiana de Letras (AGL).

A obra de Cora “é de sua própria essência, de suas vivências pessoais, seus amores, suas frustrações. Das coisas que a cercavam. Era uma poeta feminista que usava a linguagem do povo”, lembra Miguel Jorge.


Casa da escritora Cora Coralina, na Cidade de Goiás

Na biografia de Cora estão: Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais (1965), Meu Livro de Cordel (1976), uma segunda edição de Poemas dos Becos de Goiás (1978), Vintém de cobre – meias confissões de Aninha, (1984), Estórias da Casa Velha da Ponte (1985) e o livro infantil Os meninos verdes (1985).

A escritora faleceu em Goiânia, em 10 de abril de 1985, aos 95 anos. Quatro meses antes ela havia sido eleita para a Academia Goiana de Letras (AGL), para a cadeira de número 38. Após a morte de Cora, a velha casa da ponte foi transformada no Museu de Cora Coralina. O local guarda manuscritos, livros, objetos pessoais e as correspondências trocadas durante anos entre a escritora e o amigo Carlos Drummond.

Para homenagear dos 130 anos de Cora, o governo de Goiás decretou nessa terça-feira (20), na cidade de Goiás, o Ano Cultural Cora Coralina. A iniciativa do governo tem como proposta promover eventos para exaltar a escritora. Estão previstas inúmeras atrações, que incluem saraus literários, oficinas, concursos de redação, exibições audiovisuais, exposições, concurso literário, entre outras atividades.

terça-feira, agosto 20, 2019

Turma do Casseta & Planeta volta aos palcos com ‘stand up de cinco’



Por Silvio Essinger

Quem apostaria que um grupo de redatores de humor desprovidos de sex appeal e de pendores artísticos (o que lhes sobrava, no caso, era cara de pau) viraria sensação dos palcos brasileiros em 1989? Nem mesmo os próprios envolvidos: Bussunda, Reinaldo, Hubert, Claudio Manoel, Marcelo Madureira e Beto Silva. O fato é que, na contramão dos prognósticos e do bom senso, há exatos 30 anos Casseta & Planeta entrava no radar do país com “Eu vou tirar você desse lugar” — um show que começou, tímido, nas segundas-feiras do Jazzmania, mas que rapidamente chegou ao horário nobre do Canecão e virou até um disco, “Preto com um buraco no meio”.

— A gente fazia aquele show na segunda da mesma forma que ia jogar bola na quarta. Não havia expectativa, a gente fazia porque gostava daquilo — recorda-se Madureira, aos 61 anos, em pleno processo de se reunir novamente com os amigos para voltar aos palcos, depois de um afastamento de mais de 20 anos.

No dia 26 de outubro começa, em Maceió, a “Casseta & Planeta Tour 30 Anxs 2019” (o show carioca é dia 8 de dezembro, no Vivo Rio). No novo espetáculo, o grupo recupera músicas dos antigos shows (caso do “Rap do vagabundo”, revisitado como “O rap do youtuber”) e apresenta músicas novas, em meio a paródias, velhos personagens dos programas de TV (Seu Creisson, Gavião Bueno), esquetes, causos e homenagens a Bussunda (falecido em 2006, de ataque cardíaco, quando cobria a Copa da Mundo para a TV) e Maria Paula (a Dona Casseta do programa “Casseta & Planeta, urgente!”). A venda de ingressos começa nesta terça-feira.

— Fazemos um stand up de cinco, diferente dos outros shows, que eram mais musicais, tinham banda e acabavam virando discos. Depois de tanto tempo de TV, a gente teve que se reacostumar à ideia de estar no palco — explica Claudio Manoel, 60 anos, por WhatsApp, de suas férias na Itália.

Pioneiros na internet

Claudio diz “cinco”, porque além de Bussunda, o grupo agora está desfalcado também de Reinaldo Figueiredo, célebre na TV pela paródia do presidente Itamar Franco, o Devagar Franco.

— Sou o mais velho do grupo, ou melhor, o mais vintage do grupo, e já tinha combinado que, depois que o programa na Globo terminasse ( em 2012, eles ainda fizeram “Casseta & Planeta vai fundo” ), eu ia começar a pendurar as chuteiras — conta Reinaldo, de 67 anos, por e-mail.

Hoje, o Casseta & Planeta existe basicamente na internet, meio no qual o grupo foi um pioneiro em termos de Brasil, ao lançar um site em 1995. Em seu canal do YouTube (com mais de 180 mil inscritos e vídeos que somam mais de seis milhões de visualizações), os cinco apresentam dois programas semanais. Às terças, sai a “Resenha Tabajara”, na qual comentam os acontecimentos do Brasil e do mundo. Às quintas, o “Plantão Casseta & Planeta”, com imitações, emulando o velho estilo do programa de TV. E este ano ainda, o quinteto estreia um programa de entrevistas.

— Na internet, a pegada do Casseta & Planeta não mudou, e a aceitação, no geral, tem sido boa. Não é uma coisa saudosista. Estamos nos revelando para um monte de gente, ao mesmo tempo em que reencontramos quem já era fã — avalia Marcelo Madureira.

Os tempos são outros, os humoristas reconhecem. E algumas das piadas que eles costumavam fazer — como a da capa de “Preto com um buraco no meio” (segundo eles, a descrição objetiva do que é um LP) e a do “mulher é tudo vaca” no refrão da canção de dor de corno “Mãe é mãe” — talvez não tenham a mesma graça em 2019, para dizer o mínimo.

— As pessoas querem olhar o passado do ponto de vista de hoje. Isso é um problema muito sério. Naquela época, a gente achou engraçado botar na capa do LP um negão fazendo um buraco com uma furadeira — conta Helio de la Peña, de 60 anos, o negro do grupo. — Lá mesmo no lançamento do disco, a gente foi contestado por um grupo de ativistas negros, dizendo que aquilo era uma alusão ao preto com um buraco de bala na testa. Mas essa ideia nunca ocorreu à gente!

— Era um outro momento, de saída da ditadura, todo mundo estava radicalizando para todos os lados — argumenta Beto Silva, 59 anos, que nas novas imitações assume o papel de Donald Trump (“e, agora, de Boris Johnson também”).

Hoje, em tempos de fake news, Casseta & Planeta tenta marcar presença na internet e nos palcos renovando o seu lema “Jornalismo mentira, humorismo verdade”.

— Hoje seria jornalismo fake e humorismo verdade — define Hubert Aranha, 59 anos, para quem o Brasil ainda está muito longe de ser o país da piada pronta. — A piada ainda não ficou pronta por uma razão simples: o orçamento foi superfaturado.

Por que rezar?



Por Nizan Guanaes

Inspirado por Abilio Diniz e pelo meu personal trainer, comecei a rezar todas as manhãs. Leio os jornais e depois rezo.

No início, foi como começar a correr e fazer exercícios, uma decisão intelectual, um gesto de disciplina, que você faz por obrigação e pouco prazer.

Mas, aos poucos, aquilo foi virando um oásis neste momento atribulado que, como qualquer empresário brasileiro, eu vivo.

Esta é uma crise brava, em que você tem que fazer sacrifícios para salvar o todo e vencer a crise. Um momento duro, de decisões duras, mas decisões necessárias e inadiáveis.

Neste momento, é preciso pedir a sabedoria que o jovem Salomão pediu a Deus. A sabedoria que David, o estadista, pediu tanto a Deus.

Só mesmo Deus vai nos dar, por meio de seu Espírito Santo, as virtudes que não temos. No meu caso, por exemplo: paciência, sabedoria, parcimônia.

David diz nos seus lindos Salmos que o Senhor salva o homem e a besta. Tem uma besta no homem. E, se deixar a besta solta numa crise como essa, a besta desembesta.

Não rezo para ser santo. Rezo para ser homem, para ser humano. No sentido divino dessa palavra: ser um líder humano, um profissional humano, um marido humano, um pai humano.

Humano como Francisco, o Papa, que ao escolher seu nome já apontou o caminho. Que em dois anos tirou a Igreja Católica do intramuros do Vaticano e a trouxe de volta aos homens e às mulheres do mundo todo e de todas as fés.

Minha amiga Arianna Huffington, uma das empresárias e mulheres mais interessantes destes tempos modernos, me ensinou a prestar mais atenção em meditação em seu novo livro, “A Terceira Métrica”, publicado no Brasil pela editora Sextante.

Nos Estados Unidos, só se fala em “mindfulness”, em meditação. Até no Massachusetts Institute of Technology, o famoso MIT, meca mundial da tecnologia, se fala disso.

Roberto Zeballos, que é um dos médicos mais modernos do Brasil, fala muito em meditação.

Rezar é meditar. E fortalece muito o empresário. É bom para quem tem fé, é bom para quem quer ter fé, é bom para quem quer ter paz, é bom para quem quer ter foco e discernimento.

Quando você reza ou medita, você foca, concentra, reúne forças, toma o controle da sua vida. Você toma o controle da besta, como a inveja, a usura, o olho gordo, a pequenez, o medo e os instintos animais que existem em cada um de nós.

Sem a oração e a meditação a gente desembesta a fumar, a beber, a tomar Rivotril. Desembesta a sofrer e a passar as noites acordado. Desembesta a pensar com o fígado em vez de pensar com a cabeça, com o coração e com a alma.

A besta é uma má pessoa e um péssimo empresário. Rezar é o meu antídoto contra ela.

A oração torna todo dia o dia 25 de dezembro. Por meio da oração nasce a cada dia um menino Jesus em nós. Rezar é um Natal na alma!

Acreditar em Deus evita que a gente se ache Deus. E evita que a gente seja movido pela besta que está no homem.

É por isso que, a cada manhã e a cada noite, eu rezo. Não para ser santo, como disse, mas para não ser besta. Para ser homem.

O mistério das bolas de gude



Por Cecile Mendonça

De Vila Madalena para o centro de São Paulo. Depois, passa por destinos como Rio de Janeiro, Recife, Cali (Colômbia), Manaus, Nova York e a Índia. Todo esse passeio de 16 anos se torna nada mais do que um diário de viagem com um toque de investigação jornalística. Escritos que Gilberto Dimenstein transformou na obra “O mistério das bolas de gude: Histórias de humanos quase invisíveis”.

Em 190 páginas, o colunista e membro do Conselho Editorial da Folha, foi capaz de dar visibilidade a casos de pessoas excluídas pela sociedade. Crianças na vida da prostituição, adolescentes comandados e ameaçados por chefes do tráfico, pessoas que sofrem torturas dentro de instituições repressoras, portadores de AIDS tratados com desprezo e até bebês espancados até a morte pelos seus próprios pais. Essas são algumas das duras realidades evidenciadas pelo autor, que acredita que a invisibilidade é a principal causa da violência ao afirmar que “O que gera a violência é a sensação de não ter conhecimento, de não pertencer à sociedade”.

O jornalista fala sobre as contradições nas mais diversas regiões brasileiras. Lugares onde bolsões de miséria dividem espaço com mansões luxuosas. Lugares onde de um lado, meninas escolhem leiloar sua virgindade para sobreviver e do outro, há filhos de latifundiários interessados em pagar para retirar a virgindade de crianças de doze anos. Há quem viva completamente entorpecido pelo uso de narcóticos em meio a restos de comida, dejetos e drogas. Então, a força policial espanca, combate e mata. Tratando assim, o livro é capaz de tirar a venda dos olhos e dar a visão por trás das fachadas megalomaníacas da famosa Avenida Paulista, onde se escondem histórias de quem não tem mais noção da sua condição como pessoa humana. Seu direito à cidadania se perdeu na pobreza.

Contudo, apesar da tragédia, Dimenstein fala as “pontes de resistência” que foram criadas por pessoas que buscam transformar a realidade desumana em algo melhor, doando seu tempo e recursos para mudar a vida de outras pessoas. Tendo como armas, não a violência, mas sim a persistência, a teimosia e o amor ao próximo. O livro expõe alguns exemplos de projetos que nasceram dentro das favelas, organizações independentes do governo que dão apoio às mais variadas causas, cidadãos anônimos que sem apoio financeiro governamental investiram em jovens e adolescentes que se encontravam em situações de risco, entre muitos outros exemplos.

Se é proposto na obra que a violência está intrinsecamente ligada à sensação de ser invisível e estar à margem da sociedade, é a cultura, a educação e o trabalho que faz nascer o sentimento de reconhecimento como ser humano. De início, essas iniciativas servem apenas como refúgio, até que, com o tempo, passam a gerar o desenvolvimento humano e social, equilibrando e proporcionando condições justas à população.

“O mistério das bolas de gude”, além de tirar o véu das grandes cidades e tratar de temas necessários, traça novas rotas para a reconquista da cidadania – um bem valioso para quem vive em situação de miséria e risco. O livro apenas incomoda um pouco pelo fato de Gilberto Dimenstein demonstrar um inocente deslumbramento ao usar como exemplos de sucesso as cidades norte-americanas, mas ainda assim é uma leitura totalmente recomendável para todos nós – que muitas vezes fechamos os olhos para todos aqueles que não fazem parte da engrenagem, sendo meras peças invisíveis nesse sistema opressor.

sexta-feira, agosto 16, 2019

Fome, doença e prisão: escritor é acusado de enganar leitores por dinheiro


Por Mauricio Duarte, colaboração para o UOL, em São Paulo
Sucesso nas redes sociais, público leitor cativo, participação em grandes eventos literários, contrato assinado com uma das maiores editoras do país, um conto de sua autoria prestes a virar filme. O enredo é capaz de deslumbrar qualquer escritor em início de carreira. Porém, apesar de tudo isso, Diego Moraes resolveu sumir no começo do ano.
O autor cult de Manaus apagou suas redes sociais, onde interagia com os leitores frequentemente, cortou contato com editores e escritores. O que poderia ser mais um truque literário, porém, pode se revelar um caso de polícia. Segundo apurou a reportagem do UOL, Diego usava seus talentos de contador de histórias para enganar leitores dentro e fora do Brasil com o intuito de obter dinheiro.
O escritor costumava abordar seus seguidores em mensagens privadas em redes sociais, oferecendo seus livros, pedindo ajuda financeira ou os dois juntos. Também afirmava que estava doente, com câncer terminal, sem dinheiro para tratamento e alimentos, e usava essa história para pedir dinheiro ou convencer o leitor a comprar suas obras. Porém, os livros jamais eram entregues, até porque, conforme verificado nas editoras, estão esgotados.
A questão da saúde também é posta em xeque, já que, nas diversas mensagens a que a reportagem teve acesso, a versão sobre qual é o órgão atacado pelo câncer muda. Além disso, há também mensagens em que ele dizia estar preso e precisando pagar fiança, envolvido com drogas ou sendo ameaçado por traficantes. Tudo muito similar aos textos de sua obra literária.
Realidade ou ficção?
Apelidado por parte da crítica e também por leitores de Charles Bukowski da Amazônia, Diego Moraes surgiu para o cenário da literatura nacional publicando contos e poemas repletos de becos escuros, escatologia, prostitutas, traficantes, bêbados, mendigos e violência lírica. De personalidade excêntrica, logo conquistou uma legião de fãs nas redes sociais, que não sabiam qual era o limite entre ficção e realidade no que escrevia.
Os relatos de golpe superam a casa das centenas e calcula-se que, com isso, ele pode ter arrecadado um valor que pode chegar a R$ 20 mil. A reportagem obteve mensagens trocadas em privado entre o escritor e as vítimas, bem como um Boletim de Ocorrência registrado contra ele por um leitor, feito no 20º DP, em São Paulo. Nele, a vítima, que prefere não ter seu nome revelado, reclama de ter comprado livros do autor no valor de R$ 270,00. Depois disso, descobriu que na verdade os livros estavam fora de catálogo, por isso jamais foram entregues.
Há cerca de dois anos, Diego também montou um grupo de WhatsApp com vários escritores e leitores do Brasil com quem mantinha contato, a pretexto de falar sobre eventos e oportunidades no meio editorial. Não demorou para que ele começasse a pedir ajuda financeira, sempre em reservado, com as mesmas habituais alegações: doença, prisão ou fome. Ele frisava sempre a necessidade de urgência, passava uma conta na Caixa Econômica Federal e o pedido para que fosse realizado um TED bancário. Logo após o dinheiro entrar, ele bloqueava o contato da pessoa que o tinha ajudado. Para não ser rastreado, também trocava mensalmente o número de seu telefone celular.
Marcelo Adifa foi uma dessas pessoas. Comprou livros que jamais chegaram a suas mãos. “Eu, particularmente, fico triste pela situação toda. Por um escritor ter se perdido assim, por usar a doença como mote para os golpes. Faz anos que falo que o Diego é um personagem de si mesmo, um escritor que se perdeu na loucura de sua obra e se tornou um personagem mesquinho de um livro inacabado”, diz.
A história do “Bukowski da Amazônia”
Por conta dos temas abordados em seus escritos e de sua história pessoal, Diego teve seu estilo associado ao reverenciado poeta, contista e romancista Charles Bukowski (1920-1994). Diego sustenta que aos 21 anos, ainda em Manaus, era usuário de drogas e, após brigar com a família, resolveu ir para São Paulo com a namorada. Após uma série de contratempos, passou um ano morando nas ruas do centro da capital paulista após se viciar em crack. Embora não exista confirmação dessa história, ela funcionou como um manto para sacramentar a aura de escritor marginal de Diego e para enquadrá-lo em um gênero bastante popular de literatura: a autoficção, que paradoxalmente combina dois estilos antagônicos, a autobiografia e a ficção.
Com seis livros publicados por editoras independentes, seus textos romperam a barreira do país e ele chegou a ser editado também em Portugal. Em 2016, foi convidado a participar da Festa Literária Internacional de Paraty (FLIP) e assinou contrato com a Record, uma das maiores casas editorias do país, para um romance e um livro de contos. Recebeu adiantamento, mas nunca entregou uma linha sequer.
“Reconheço nele um verdadeiro talento. Sabia que ele era excêntrico. Confesso que gostava da atitude dele, essa coisa de ser criador 24 horas por dia, essa aura marginal. Minha impressão era de que ele fazia ficção o tempo todo”, comenta Carlos Andreazza, editor-executivo do Grupo Editorial Record.
Ele conta que, durante um tempo, o escritor o procurava regularmente para dar satisfações sobre os livros, dizendo que em breve os entregaria. No entanto, determinado dia ele surgiu pedindo dinheiro para comprar um computador, pois precisaria dele para escrever, já que o seu havia quebrado. Diante da negativa recebida, ele nunca mais entrou em contato ou respondeu às solicitações da editora, que decidiu não processar o escritor.
O ator e cineasta amazonense Diego Bauer pretende filmar um conto de Moraes chamado “Enterrado no quintal”. Apesar disso, também confessa que nunca sabe o que é real e o que é fictício quando se trata do escritor. “Até mesmo por essa questão de ele ser um personagem de si próprio, não sei até que ponto ele é o que ele escreve, se ele se influencia pelo que ele escreve. Conversando comigo, ele já me falou que tem câncer e que não tem muita perspectiva de vida. Eu confesso que nunca sei se isso é sério, se é verdade, se não é verdade”, afirma.
Embora já tenha tudo acertado para as filmagens, Bauer revela que também perdeu o contato com o escritor. “De vez em quando ele some, mas desta vez ele está sumido faz um tempo mesmo”, completa.
Saída da literatura
A reportagem do UOL conseguiu entrar em contato com Diego Moraes por e-mail, mas ele não quis comentar o assunto tratado na matéria. Respondeu apenas que abandonou a literatura porque ela “só atrai desgraça” e repetiu uma célebre frase do escritor Raduan Nassar: “Dormir é melhor do que escrever”.
(Publicado no site UOL, no dia 5 de agosto de 2019)

quinta-feira, agosto 15, 2019

Escritor amazonense fala de novo livro em Portugal e critica ‘fiscais do Facebook’


Por Rosiel Mendonça
Um dos escritores mais produtivos dos últimos anos na literatura amazonense, Diego Moraes não dá sinais de cansaço e tampouco está disposto a fazer concessões aos “fiscais de tesão do Facebook”. Usuário assíduo das redes sociais, ele lança no mês de março seu segundo livro pela editora portuguesa Douda Correria, a sétima obra de uma carreira promissora e inspirada, que ainda tem em seu horizonte um romance e um filme.
Com prefácio de Mário Bortolotto, “Dentro do meu peito você pode cultivar a solidão o ano inteiro” reúne 13 contos e 16 poemas, sendo a maioria um apanhado de textos publicados por Diego nas redes ou em sites e revistas de literatura. “Não é uma coletânea completamente inédita, mas também trago algumas coisas escritas de última hora”, afirma o autor.
Ele adianta que os contos são uma espécie de viagem pela noite manauara, enquanto os poemas têm algo de catártico. “Esse é o meu livro que mais fala de Manaus. A prosa é violenta, traz a violência manauara nas entrelinhas. Já os poemas foram escritos para eu me livrar do último relacionamento que tive. Foi algo muito intenso, e o livro me ajudou a superar isso”.
Para Moraes, ser publicado fora do País pela segunda vez também representa um novo impulso no objetivo dele de ser cada vez mais lido – em 2015, a coletânea de poemas “Um bar fecha dentro da gente”, também publicada pela Douda Correria, foi considerada como um dos 10 melhores lançamentos do ano em Portugal. “A editora tem acesso a livrarias importantes de Lisboa e o editor viaja muito com os livros. Para mim, é questão de expandir mesmo, de angariar leitores lá fora. Meu lance é esse”.
Outras linguagens
Diego Moraes agora se dedica à finalização do seu primeiro romance, ainda sem nome, que sairá pela Record. A previsão é que ele entregue os originais do texto no dia 18 de abril, mas o contrato com a editora também prevê a publicação de um livro de contos daqui a dois anos. Segundo ele, o trabalho tem sido diário, e a cada dia ele costuma ter um saldo de cinco novas páginas.
Sobre a experiência de migrar das narrativas curtas para uma de maior fôlego, ele diz: “O grande barato de sair do conto e da poesia, que têm um poder de síntese mais intenso, é você se exercitar, sair de uma piscina de cem metros rasos e ir nadar no Rio Negro, dando braçadas longas. Também foi um pouco chato porque, principalmente no início, eu queria terminar logo a história. Batia a ansiedade do contista, mas depois entendi que romance exige um pouco de paciência”.
Além disso, o escritor iniciou conversas com o diretor paulista Francisco Garcia (o mesmo de “Cores”, “Desequilíbrio”, “Máscara negra” e outros) para a produção de um longa-metragem adaptado a partir de um conto seu. Por enquanto, Diego revela apenas que o filme será gravado em Manaus.
Literaturas
Antes ligado a grupos que movimentavam a cena literária amazonense, hoje em dia Moraes admite acompanhar pouco o que é produzido no Estado, numa espécie de estratégia deliberada de distanciamento: “Aqui rola muita inveja, mesquinharia, e quando você se sobressai num grupo você começa a ser cobrado pelo coletivo. Para mim, a literatura sempre vai ser uma arte individual; ninguém escreve comigo, é o meu delírio, minha onda, as pessoas confundem um pouco as coisas”, diz.
Por isso, o poeta se vê em condições de opinar mais sobre o cenário da literatura nacional do que o local – e a avaliação dele é positiva, mas com ressalvas: “O Brasil está indo muito bem na prosa, que tem me encantado mais que a poesia. Acho que a poesia deixou de ser provocativa, vejo muita poesia acomodada, não tem poetas escrevendo sobre o caos, o desespero, só uma poesia bonitinha e com militância política”.
De vez em quando, em posts no Facebook, Diego também pode ser visto às voltas com o politicamente correto. Para ele, as redes sociais deram voz a “grandes fiscais de tesão” que descambam para o conservadorismo.
“O Brasil tem se revelado muito careta, o que é estranho. Acho uma burrice tão grande quando isso chega na literatura porque não dá para você censurar a arte. Na literatura posso comer um bode e até a minha mãe. As pessoas estão querendo podar o artístico e essa é uma percepção boba, cafona e patética”.
(Publicado no jornal A Crítica no dia 1º de fevereiro de 2017)

O coração sintonizado de um poeta


Por Vivian de Moraes
O escritor manauara Diego Moraes está lançando o seu sexto livro: “Meu coração é um bar vazio tocando Belchior”, que tem elementos gráficos e de estilo que lembram um rádio. O autor, nesta entrevista para o LiteraturaBr, disse que só escreve por impulsos, elogia o público leitor paulistano, menciona influências, entre outros assuntos. Naturalmente, trata do “Belchior”, e seu primeiro romance, que está escrevendo para a Record. Confira a seguir.
Vivian de Moraes: Você é manauara e fala com alegria do lugar onde vive. Manaus tem algo aos poetas que quiserem conceber a arte?
Diego Moraes: Manaus é uma cidade extremamente literária. Consigo dialogar com cada esquina e viela e extrair o melhor sumo lírico, mas aqui poeta se fode. Manauara não consome literatura. Escritor aqui é tratado como pedinte.
Vivian: E você não sente isso também quando vem a São Paulo?
Diego: Não. O interesse por literatura é maior em São Paulo. Vi pessoas se deslocando de outras cidades para o lançamento do meu livro na balada literária e no sarau do bar Patuscada do Eduardo Lacerda. O paulistano tem mais sede de arte que o manauara. A cidade respira cultura. Em Manaus é triste. Aqui artistas de rua pegam porrada de seguranças em praças públicas. Aqui o poeta precisa ser cadastrado no governo pra poder ser credenciado a falar de algo que tem asas. A literatura em Manaus é comandando por gerentes. Agentes de cultura que se consideram artistas. As praças públicas estão sendo privatizadas.
Vivian: Diego, você atribui a que o seu sucesso com o convite da Penalux e o romance da Record? Quando você rompeu a barreira que existe entre São Paulo e outras cidades menos interessantes para a literatura?
Diego: À internet. Devo muito à internet. Se não fosse a internet, certamente seria mais um fantasma. Um sujeito nulo e obscuro que vende livro xerocado de bar em bar. Hoje em dia tenho leitores em boa parte do mundo que me acompanham diariamente nas redes sociais e no Tumblr. Muita gente de Portugal e São Paulo. Mas ralei muito. Nunca dei ouvidos pra ninguém. Sempre escrevi na raça e na coragem. O escritor não pode esperar nada de ninguém. Precisa ser independente quando editoras fecharem as portas. Do céu só cai raio, chuva e cocô de pombo. Nunca mandei um original para uma editora. Todos os livros que já publiquei foram convites, mas se um dia se negarem, me reinvento. Literatura é um grito. E gosto de gritar alto. Até doer a garganta. Não acredito em escritor tímido. Pra mim literatura tem que ser difundida. Deve chegar aos quatro cantos do mundo. Espero que a literatura se torne um vírus mais destruidor que o Ebola.
Vivian: Como é o seu processo criativo? Tem disciplina, tem rotina? Por que, quem lê o que você escreve, tem a nítida impressão de que você acabou de escrever espontaneamente, sem muitas preocupações em burilar os poemas. É assim?
Diego: Sou o sujeito mais indisciplinado que conheço. Só não consigo escrever nada bêbado. Só sai poesia e conto quando estou sóbrio. Não sou também de ficar namorando demais conto ou poema. Eles saem feito foguetes em Réveillon. Às vezes trabalho na cabeça antes de escrever, mas basta eu sentir raiva de alguma coisa pra abrir o computador e escrever coisas do nada. Do zero. Gosto de abrir a tela do Word sem nada programado. Sinto-me um bebê saindo de uma vagina.
Vivian: Você não gosta de ser comparado a Bukowski. Por quê? Quais as influências sobre sua obra?
Diego: Ser comparado ao Bukowski me irrita profundamente. Ele é ótimo escritor, mas não foi o único a escrever sobre as ruas. Muitos caras escreveram sobre desempregados, prostitutas e drogados. Sou apenas um sujeito lírico e sujo que gosto de passar um verniz cinematográfico. Quem conhecer a minha obra sabe que não tem nada a ver essa comparação. É chato porque limita. Tenho recebidos mensagens de gente enfurecidas com esse rótulo. Bukowski é ótimo poeta, mas perde feio pro John Fante quando o assunto é prosa. Sim, se for pra escancarar minhas influencias, digo que vejo mais Roberto Piva, Murilo Rubião, Mário Bortolotto e Pedro Juan Gutiérrez na minha literatura. Mas isso é apenas um momento. A literatura é um camaleão. Uma travesti que muda bastante de roupa. Quem leu meus livros vê essa mudança nitidamente. A pegada do meu “A fotografia do meu antigo amor dançando tango” é cinema. Já “Meu coração é um bar vazio tocando belchior” é mais seco e verborrágico. O lance é flertar com a linguagem sempre, senão vira só foda papai e mamãe
Vivian: Por favor, comente este aforismo do seu último livro: “Só acredito em poetas falhos. Poetas que tropeçam. Poesia é a arte da queda…”
Diego: Ah… Poeta pra mim tem que ter vivido um pouco. Tem que ter pegado um pouco de porrada da vida. Se fodido no amor em algum momento. Ter quebrado a cara pra valer. Poeta de laboratório cheira a perfume enjoativo.
Vivian: Isso me lembra um outro poema do seu livro mais recente:
Paisagem
Não curto cidade praiana
é muita paisagem.
No poema
eu gosto de sujeira
do underground
do submundo.
Diego: Sim, gosto da sujeira. Gosto do mergulhar no inferno de vez em quando. Conforto demais e monotonia tira meu tesão pra fazer literatura. Gosto de sentir a podridão das ruas e voltar carregado de tesão pra escrever. A rua não deixa de ser vitamina. Combustível de dor, raiva e desilusão.
Vivian: Você começou como poeta ou como leitor de poesia?
Diego: A poesia foi um acidente de percurso. Comecei nos contos. Aí num dia entrei na biblioteca pública de Manaus e peguei “Paranoia” do Roberto Piva. Fiquei louco por uma semana e comecei a escrever poesia sem parar.
Vivian: Com que idade?
Diego: Comecei a escrever aos 17 anos. Aos 18 já tinha contos publicados em revistas da cidade. A poesia apareceu na minha vida aos 21.
Vivian: Você acredita que há mais poetas que leitores de poesia?
Diego: Com as redes sociais aumentou o interesse por poesia. Fico feliz com isso, mas o leitor de poesia ainda é um animal escasso.
Vivian: Fale um pouco sobre o “Belchior”. Ele é uma coletânea dos seus escritos no Facebook, certo?
Diego: Não chega a ser uma coletânea. Tem 9 contos e alguns poemas que escrevi especialmente pra ele. Acontece que nunca fui fã de concurso literário e fui postando trechos dele na internet. O Belchior é um livro verborrágico, maldito e sujo. O lirismo dele é mais seco.
Vivian: E quanto ao romance? O que podemos esperar dele? Dá para adiantar?
Diego: Ainda não dá pra adiantar. Ainda está em processo de construção. Tinha um praticamente pronto, mas cheguei um dia bêbado e deletei. Quis começar do zero. Sentir a pressão de escrever um livro com a sensação de que todos estão me olhando. Estou escrevendo esse livro pra Record como o camisa 11 que entra no segundo tempo pra resolver a final do campeonato. Mesmo sabendo que pode não dar em nada ou se tonar um fracasso. Gosto do perigo. É bom se arriscar. Dançar tango no parapeito de vez em quando. Já fui radical. Já briguei com uma porrada de gente por besteira, mas hoje a literatura é uma terapia na minha vida. Parei de vê-la como doença. Agora é dádiva.
Vivian:Você se proclama um poeta sujo, mas mão gosta do ‘”marginal” Qual a diferença?
Diego: Marginal é diferente de sujo. Marginal tem todo um contexto. O cara se sente revolucionário. Um expoente da periferia. Rola todo um discurso. Se você pegar meus poemas e muitos contos, não tem isso. É outra pegada. Tem dor, humor e beleza.Uma baita preocupação com a imagem. Minha literatura transita em todos os cantos. Do Leblon ao bairro da zona leste de Manaus. Sobre uma porrada de temas e o cenário muda constantemente. E também com o advento da internet, acho meio sem graça o cara dizer que é marginal por não ser aceito por editoras e bla blablá. Que o tratam com indiferença e tudo mais. A editora é uma vitrine. Tá cheio de editores pescando gente boa. Agora se o cara quer ser independente e publicar por conta própria, tudo bem. Parabéns. Não tenho nada de marginal. Nunca fui fichado na policia e sonho comprar vinhos caros e levar minha mulher pro caribe com grana de direitos autorais.
O autor
Diego Moraes é um escritor amazonense. Autor dos livros: “A fotografia do meu antigo amor dançando tango” (2012) e “A solidão é um deus bêbado dando ré num trator” (2013), publicados pela Bartlebee; “Um bar fecha dentro da gente”, pela editora portuguesa Douda Correria; e “Eu já fui aquele cara que comprava vinte fichas e falava ‘eu te amo’ no orelhão”, pela Corsário-satã e o recém-lançado “Meu coração é um bar vazio tocando Belchior.”
(Publicado no site LiteraturaBr em 25 de março de 2016)