Pesquisar este blog

quarta-feira, setembro 25, 2019

Parem as máquinas! O repórter morreu!



Por Joaquim Ferreira dos Santos

Hunter Thompson, o repórter americano que meteu uma bala na cabeça, tinha uma regra de ouro para esquentar a entrevista que não estivesse rendendo. Ele recomendava que o jornalista respirasse fundo, como se estivesse buscando a última gota de ar, e em seguida soltasse um impropério contra o entrevistado. “Seu isso, seu aquilo, salafrário de quinta, cronista de segunda.”

Hunter fez o truque algumas vezes e garantia. A entrevista, que até ali se esticava sem qualquer interesse, começaria a ter um mínimo de sangue correndo. Era um exagerado. Não à toa os Hell’s Angels deram-lhe uma coça numa matéria. Problema deles. No dia seguinte, atracado com o jornal, o leitor sorriria agradecido.

Quando ouvi seu tiro nos miolos, exagerado que aprendi a ser, entendi logo. Hunter Thompson, autor de reportagens inesquecíveis em que o repórter era sempre o centro dos acontecimentos, nem aí para essa balela da objetividade bege do jornalismo, Hunter Thompson estava aplicando de jeito radical a técnica que ensinou a milhares de jornalistas. Parágrafo primeiro e único da nossa Constituição: “É obrigatório manter a platéia acordada”. Revogam-se todos os ombudsmen em contrário.

Os jornais andam sonolentos, não é não? Todo dia, mal começo a folhear, toca no meu iPod interno aquela velha musiquinha do Gilberto Gil dizendo “as notícias que leio conheço / já sabia antes mesmo de ler”. O repórter morreu, eis o lide do que se quer dizer – e já que as reportagens escasseiam, espremidas por colunas e artigos de todos os lados, esse obituário vai em forma de crônica. Como na mesma semana do americano morreu outro bamba no assunto, Carlos Rangel, do Jornal do Brasil nos anos 60 e 70, eu aproveito para retificar a frase e esticar o pensamento. Os repórteres morreram. Alguém consegue dormir com uma notícia dessas?

Thompson era o exemplo extremado de um repórter ao pé da letra, o sujeito que saía em campo, encharcava-se do assunto – no seu caso, contratado da revista Rolling Stone, um coquetel de sexo, drogas e rock and roll – e voltava à redação para passar adiante, no estilo mais serelepe que conseguisse, o que havia recolhido. Era um contador de histórias, esse princípio básico do jornalismo. Ver, ouvir e relatar – o meu com molho, por favor.

O repórter-que-anota-no-bloquinho é a versão pós-moderna do cidadão que sentava nas praças medievais e contava para a aldeia o que tinha visto alhures. Estão-se indo quase todos. Thompson e Rangel, que Deus os mantenha sempre no alto da página ímpar, são apenas os casos mais recentes.

Esse tipo de maluco, caçador de pauta exótica, anda demodê. Sua busca de casos imprevisíveis não cabe nos novos fluxos do industrial. Atrasa o fechamento. Sua emoção vai em desencontro às orientações do jurídico, enchendo o financeiro de contas a pagar por processos perdidos na Justiça. Ele desparagona o desenho clean do pessoal dos infográficos.

O repórter em estado bruto, e no caso de Hunter Thompson bota bruto nisso, sempre provocando briga para acordar as fontes por onde passasse, um repórter desse tipo não entende o novo palavreado das infindáveis reuniões de todos os dias na redação para acertar o foco da editoria. Criticado por nâo agregar valor às necessidades de sinergia sincera entre redação e marketing, o repórter tipo Thompsom – ou Otávio Ribeiro, o Pena Branca, autor, com o curso primário incompleto, de algumas das melhores matérias de polícia da Veja nos anos 70 –, um repórter desses, cobrado da necessidade de potencializar a informação em espaços cada vez mais minimalistas, vai perguntar de volta ao senhor editor: “Cuma?”

O repórter que não está sendo chamado ao RH antecipa-se ao lento extermínio da espécie e mete uma bala na cabeça. Deixa jornais cada vez mais bem resolvidos como produto final e profissionalizados como empresas, o que é fundamental para explicar a história heróica dos poucos que sobreviveram – mas carentes daquela grande estrela original.

Onde anda o sujeito eternamente pilhado que vai para a rua, vivência os acontecimentos com olhos de eterno espanto e conta com personalidade? Onde o David Nasser ético que mostre o senador de cueca?

Onde o Joel Silveira que penetre na festa dos Matarazzos de hoje, o jogador de futebol e a modelo, e cinqüenta anos depois da festa na avenida Paulista mostre com estilo literário que o dinheiro pode até ter mudado de mão, mas o ridículo ainda campeia entre os novos-ricos que o pegaram?

Onde os filhos da revista Realidade, mergulhados durante dias num assunto?

Os bons jornais brasileiros estão entre os melhores do mundo, a praga não lhes é exclusiva. Há muito gabinete de senhor doutor nas páginas e nenhum Hunter Thompson para subir na mesa e desarrumar a papelada. As notícias que leio, conheço, e elas agora chegam por e-mail. Ao telefone, sabichões declaram isso, afirmam aquilo outro para matérias que abrem o travessão e deixam um verbo frio encher o espaço até o ponto final.

A História de um país não está nas grandes batalhas e nesses parlamentos perfumados dos severinos de ocasião – e aqui eu estou pedindo licença para traduzir em bom português o que escreveu Joseph Mitchel, o repórter americano das andanças do mendigo Joe Gould pelas ruas de Nova York. O importante é o que as pessoas conversam em dias comuns, agitam nas noites intensas, como aram a terra, discutem seus problemas e põem a vida em movimento. É uma pena que haja cada vez menos Hunter Thompson e Carlos Rangel para pegar essa pauta.

terça-feira, setembro 24, 2019

Sessão Nostalgia: Os Falsos Importados (alguém ainda lembra?)



Por Tárik de Souza

O mercado do disco no Brasil está sendo invadido por fantasmas bem-sucedidos que enriquecem sobretudo as gravadoras. Escondidos por detrás de pseudônimos, autores e cantores brasileiros são vendidos como produtos estrangeiros. Por quê? Vamos destrinchar essa história.               

Era uma tarefa jornalística simples. Conseguir na representante nacional, a gravadora carioca Top Tape, dados biográficos sobre o astro importado Dave MacLean, primeiro colocado nas pesquisas da Nopem no Rio e em São Paulo com o compacto “Me and You”. Mas, estranho, nada sabem informar na Top Tape.

Em geral os press releases (material de propaganda para a imprensa) são escritos antes do lançamento dos discos, mas o do artista mais vendido da gravadora “ainda não ficou pronto”. Qual o país de MacLean? Quantos discos vendeu antes? Quando começou a gravar?

Um nebuloso silêncio responde a todas essas perguntas, seguido pela cabalística explicação de que se trata de um original de uma certa Blue Rock Records, aliás a única pista mais sólida registrada na contracapa e no selo do elepê, “Me and You”, do mesmo Maclean: P.1973 Blue Rock Records.

Na editora Copa Musical, filiada à Top Tape, aumenta o enigma. Assombrado com o interesse por MacLean, o funcionário José Gomes redobra as atenções com a reportagem, tirando copiosa xerox da letra em inglês, um dos quais do próprio registro autoral. Cuida, porém, de cortar parte importante do carimbo e das assinaturas que talvez motivassem perguntas embaraçosas.

Gomes, magro e inquieto, encontra mais um atestado da importação da Top Tape, exibindo a letra em português de “Eu e Você”, versão do esperto Rossini Pinto: “ Não há ninguém igual a você / o nosso amor não vai acabar / oh, oh, oh / que vou fazer tão sozinho assim?”.

Embora nada prove quanto à identidade e procedência do original, “Eu e Você” pelo menos demonstra a que nível de rapidez chegaram os mecanismos da indústria do disco nacional: a versão é editada antes mesmo que o artista seja divulgado pela imprensa.

Com a sensação do dever incompleto e um gosto amargo de inexperiência na boca pelo seu fracasso numa tarefa em princípio tão prosaica, o repórter dirige-se por fim ao estúdio Hawai, onde a mesma Top Tape grava seus contratados brasileiros.

Wiliam Luna, diretor da empresa, também nada sabe de MacLean, mas um de seus funcionários, seu Domingos, prontifica-se a ligar para a sua loja de discos no subúrbio do Meyer, em busca de maiores indícios do mistério.

De repente, outro funcionário da Hawaii encerra as investigações com uma pista definitiva: “Esse cara é paulista, deve ter gravado nos estúdios lá em São Paulo”.

Domingos já havia acrescentado a desculpa de que a Hawai cobra 350 cruzeiros a hora e não se interessa pelo material gravado. Mas quem se interessa: Há dois anos e em volume cada vez maior, o mercado brasileiro começou a ser assolado por esses fantasmas internacionais, o primeiro deles o cantor anglo-paulista Terry Winter.

Enquanto estourava nas paradas de sucesso com seu eficiente “Summer Holliday”, num estilo que lembrava velhas gravações de Nat King Cole, Winter, o filho de ingleses Thomas William Stamden descansava tranquilamente na sua casa em Vila Mariana, subúrbio paulista e antigo território eleitoral do ex-político Jânio Quadros.

Com alguma arrogância, Stamden (ou Winter) afirmou na época ao repórter Luís Nassif, da Veja, que seu sucesso era calculado, uma “fórmula para salvar a moeda brasileira, contendo as importações artísticas, assim como os Beatles levantaram a libra”.

Nada disso, naturalmente, aconteceu, mas Winter vendeu bem seu compacto e elepê de estréia, chegou a passar da pequena Beverly para a grande RCA com um polpudo advance e seu êxito (naturalmente também camuflado) empolgou algumas platéias inocentes da América Latina.

Se Winter apenas seguia velhos exemplos como o do saxofonista Bol Fleming (na realidade, Moacyr Silva), Prini Lorez (Jospe Gagliardi Jr.), Românticos de Cuba (uma orquestra com vários regentes: Severino Araújo, Lirio Panicalli, etc), ele também era o sintoma de uma crise.

Desempregados por vários motivos, inclusive por sua própria indigência musical, vários guitarristas, pilotos de sintetizadores, baixistas, organistas e bateristas jovens concordaram em trocar seus nomes, às vezes sucessivamente, servindo de escudo para fantasmas bem-sucedidos, que mais enriqueceram as gravadoras que seus verdadeiros solistas.

A penúltima dessas descobertas, também por Luís Nassif, da Veja, lhe valeu ameaças e um diálogo ríspido com o empresário do truque, o paulista Mário Bonfiglio.

O referido senhor indignou-se com a reportagem que estampava possíveis rostos do conjunto Light Reflections e garantia sua procedência paulista, além de levantar algumas identidades de autores brasileiros escondidos por detrás de pseudônimos estrangeiros.

Bonfiglio e o conjunto foram ao programa de Flávio Cavalcanti tentar desmentir a reportagem afirmando que os rostos da foto não lhe pertenciam, mas com suas presenças e seu correto português fluente, terminaram dando veracidade ao texto.

Daí em diante, e ainda hoje no atual programa Fantástico, da TV Globo, os Light, ao lado dos Pholhas, defendem-se, antes de qualquer acusação, com o clássico slogan de que “a música é universal”.

Pelo menos os protetores do fenômeno David MacLean são mais realistas e guardam a alma de seu negócio, argumentando que descoberto o segredo as vendas diminuem, como já aconteceu em diversos outros casos.

Domingos, da Hawaii, ajuda a tese com um argumento eloquente: “Outro dia uma moça ouviu London, London na minha loja e gostou muito. Aí, viu que era a Gal Costa que cantava. O vendedor, para dar maiores informações, disse que era uma música de Caetano Veloso. A moça devolveu o disco e pediu um de música estrangeira”.

               

(Publicado no jornal Folha da Manhã, de Porto Alegre, em 27 de março de 1974)

sábado, setembro 21, 2019

Movimento Marujada promove festa de 106 anos do Boi Caprichoso



O Boi-Bumbá Caprichoso comemora 106 anos de história no próximo mês de outubro. O marco tradicionalmente festejado em Parintins será realizado oficialmente, pela primeira vez, para a nação azul e branca da capital amazonense.

Caberá ao Movimento Marujada, associação cultural que promove o boi-bumbá há mais de três décadas em Manaus, mais uma ousada empreitada originalmente parintinense, como em 2014, quando o tradicional Boi de Rua desembarcou na capital e conquistou os torcedores em três bem-sucedidas edições realizadas, que tingiram de azul as ruas manauaras.

Inspirado nessa trajetória de sentimento e arte, a exaltação aos 106 anos do Boi Caprichoso será realizada no dia 19 de outubro. Para isso, uma estrutura diferenciada está sendo preparada para proporcionar à nação azul e branca a experiência singular e histórica só vista nos tradicionais redutos azuis dos quatro cantos de Parintins.

A festa terá início às 18 horas, remetendo aos áureos tempos da TV Lândia, estimulando a presença familiar e a inserção do renovado público no importante papel de preservação, fortalecimento e difusão da cultura do boi-bumbá. Shows de itens, artistas e grupos oficiais prometem levar o público a intenso êxtase de sentimentos.

Os ingressos do evento custarão R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia). Torcedores que comparecerem vestindo camisa do Boi Caprichoso poderão pagar meia-entrada.

Raízes – Para receber a nação azul e branca na exaltação aos 106 anos do Boi Caprichoso, o Movimento Marujada aposta na reciprocidade e identidade com uma instituição também centenária: o Atlético Rio Negro Clube. Na sede social, localizado no Centro da capital, a associação cultural cultiva raízes há cerca de uma década.

Eventos tradicionais, como a Feijoada VIP Caprichoso em 2011, e a ousada carreata rumo ao título do Festival em 2012, entraram para a história do Movimento Marujada e do Boi Caprichoso tendo como vitrine a afamada relação de parceria. Capítulo à parte, o pioneiro Bar do Boi se reinventou “De Volta às Raízes” no parque aquático do Atlético Rio Negro Clube. A edição especial do tradicional evento resgatou a história do boi da estrela – de artistas consagrados às toadas antológicas – diante de grandes públicos.

Atualmente, o local é casa da Marujada de Guerra para ensaios técnicos há quatro temporadas, sendo três destas também do evento Marujada Fest.

quinta-feira, setembro 19, 2019

Festival Jungle Matsuri celebra cultura japonesa



Para comemorar os 90 anos da migração japonesa na Amazônia, o Studio 5 Centro de Convenções sedia, de sexta, 20, a domingo, 22, o evento Jungle Matsuri. O festival, totalmente dedicado à cultura e à gastronomia nipônica, tem com entrada gratuita e contará com uma ampla programação que inclui exposições, shows, desfile de cosplay, workshops e muito mais.

No quesito musical, apresentações com os principais artistas da comunidade nipônica, de estilos e gêneros variados irão surpreender a platéia. Presença confirmada de Joe Hirata, Karen Ito, Ricardo Cruz, Mariko Nakahira, entre outros.

Um elemento nipônico que caiu no gosto do brasileiro foi a gastronomia. O evento contará com uma rica praça de alimentação com todas as delícias da culinária oriental: sushi, temaki, sashimi, yakissoba, tempurá e rolinho primavera.

A alta tendência do cosplay é outro grande atrativo desta primeira edição, por isso, um desfile de cosplay será apresentado ao público. Apresentação de grupos de Taikô, instrumento japonês de percussão considerado a expressão artística japonesa mais difundida no mundo, também está incluso na programação.

Para complementar, o Jungle Matsuri realizará diversos workshops voltados para a produção de mangás, origamis, kirigamis e pixel art, a exposição de filmes da diretora Tizuka Yamasaki, com a presença da própria, e a exposição fotográfica “Patrimônios Mundiais do Japão”.

Na área comercial, o espaço terá a presença de mais de 20 expositores de marcas fortes como Honda, Yamaha e Panasonic, que trarão seus últimos lançamentos.

O Jungle Matsuri 2019 contará com uma palestra de Mauricio de Sousa, na sexta-feira, às 19h. O cartunista, escritor e empresário brasileiro, criador da “Turma da Mônica”, é um grande amante da cultura japonesa, com a qual mantém estreita relação. Na ocasião, ele deve apresentar os novos produtos da marca e tirar as dúvidas dos fãs.

Os 80 anos do Homem-Morcego



Um personagem muito importante para os quadrinhos e desenhos animados está entrando para o grupo dos octogenários. Herói de Gotham City, o misterioso Batman completará 80 anos neste sábado, 21. Para a comemoração, a DC ao lado da Warner Bros., promoverá atrações em algumas cidades do mundo.

Ponto alto das celebrações, o bat-sinal iluminará arranha-céus e ponto turísticos. Em material de divulgação, Pam Lifford, Presidente da Warner Bros. para Marcas Globais e Experiências anima os fãs. “O bat-sinal é certamente uma das imagens mais reconhecíveis em toda a iconografia de super-heróis, por isso o evento será marcante e transcenderá fronteiras, idiomas e culturas para nos unir a uma experiência única”, diz.

A lista de cidades que recebem o bat-sinal é composta por Tóquio, Joanesburgo, Paris, Barcelona, Londres, Nova York, Montreal, Cidade do México e Los Angeles. No Brasil, a atração será projetada na Avenida Paulista, em São Paulo, sob o prédio do Itaú Cultural um pouco antes das 20h, assim como os demais pontos selecionados.

Completando as comemorações brasileiras, os fãs poderão participar de “Batman 80 – A Exposição”, no Memorial da América Latina ou visitar a “The Art of The Brick: DC Super Heroes”, maior exposição de Lego do mundo, no Parque do Ibirapuera, em São Paulo.

Para os fãs esportistas acima de 16 anos, o dia do Batman também será comemorado com a corrida noturna Batman Run Series, onde os atletas irão percorrer as ruas paulistas.

Além do toda programação organizada, alguns lançamentos prometem agradar os admiradores do Homem-Morcego de todas as idades e bolsos. Itens como camisetas e conjuntos infantis podem ser adquiridos nas lojas da Riachuelo, C&A, Pernambucanas, Marisa, Piticas, Havaianas e Grendene, em todo o país. Além das lojas físicas, os produtos também podem ser adquiridos pela internet, na loja oficial da DC no Brasil.

quarta-feira, setembro 18, 2019

Os bondes de Manaus



Por Moacir Andrade

Já três décadas se passaram e uma enorme transformação se operou na antiga face tranquila desta cidade de Manaus, capital do Amazonas e Zona de livre comércio.

Apenas 30 anos nos distanciam daqueles dias tranquilos onde o maior ruído era produzido pelo ranger das rodas nos trilhos dos bondes tropicalíssimos, com seus bancos de pinho inglês e o tradicional “faz favor” do cobrador, destacando a senha mediante os 200 réis da passagem.

Bondes de horário inglês, cuja passagem em tempo mecânico dizia as horas a quem interessasse. “Puxa vida, estou atrasadão, este é o bonde das 10h45!” E era mesmo: o bicho não falhava. Bonde dos Remédios, Bonde da Saudade, cuja linha fora inaugurada para servir às pessoas que iam visitar as sepulturas de parentes e amigos no Cemitério São José, onde hoje está construído o Atlético Rio Negro Clube. Em frente, também, a Praça da Saudade, onde as pessoas iam meditar sobre os seus mortos.

Havia ainda o Bonde Circular-Cachoeirinha, que aos domingos ia sempre acrescido de reboques grandes para atender a grande quantidade de pessoas que escolhiam o mais “chique” passeio das tardes de domingo. A linha Circular, que começava na Estação dos Bondes, subia a Sete de Setembro, dobrava a Carvalho Leal e, de curva em curva, circulava a cidade de Manaus, limitada por este romântico itinerário, até a Rua Belém. Aí começava a segunda seção que passava em frente ao Parque Amazonense, onde havia corridas de cavalos aos domingos.

O Parque Amazonense atraía, naquela época, o findo da sociedade manauara para assistir aos campeões importados da Inglaterra, Argentina e outros países produtores dos famosos quadrúpedes de corrida. Muitos deles não aguentavam o calor local e sucumbiam de desidratação e disenteria.

Lembro-me, ainda, de um veterinário cujo diagnóstico fora desmentido por um jornalista que, através de um editorial, provou a impossibilidade da importação de cavalos puro sangue dos pampas argentinos e da Inglaterra para este tropicalíssimo pedaço do Brasil. Este e outros motivos determinaram a extinção das pretensões desse nobre esporte inglês no Amazonas. Outro motivo que também ajudou a encerrar a carreira de jóqueis locais foi o fechamento de firmas inglesas, última reminiscência do efêmero sonho da borracha.

Durante os minutos que precediam o início das corridas, os bondes paravam obrigatoriamente em frente ao grande portão do estádio. Depois, continuavam pela Cláudio Mesquita, Silva Ramos, Ferreira Pena, Dez de Julho, Eduardo Ribeiro e, finalmente, Sete de Setembro, para novamente estacionar na Praça Osvaldo Cruz.

Os bondes para mim tinham, além de sua característica especial, um cheiro, o cheiro de bonde que só os bondes mesmo podiam espargir nas tardes de Manaus. Aquilo tudinho parecia eterno para o menino que apertava, avaramente, as duas moedas de 400 réis, troco dos 10 tostões que o condutor me passara e que iria pagar uma lauta merenda no garapeiro da esquina, com seu carrinho de três rodas, onde se encontravam permanentemente refrescos de frutas diversas, dentre as quais eu escolhia o de maracujá, cujo copo, a 200 réis, acompanhava uma imensa fatia de bolo chamada mata-fome. Essa guloseima era saboreada depois de uma sessão de cinema no Cine Guarany com Buck Jones, o grande astro da garotada de então.

Eu morava na Rua Dr. Machado, nº 115, trecho que terminava bem ao lado da 1ª Igreja Batista de Manaus, onde o Bonde Igreja Batista-Joaquim Nabuco fazia o ponto final. Muitos moleques que faziam parte da minha turma aguardavam a chegada do elétrico que, “morcegando”, procuravam no chão as senhas que eram colecionadas e serviam para prêmios de jogos infantis. Na bolinha, pião, peteca, pedrinhas e macaca, os prêmios eram pagos com os cupons de bondes. Os de bagagem, por serem mais difíceis, valiam mais. Eles eram cor de rosa. O cupom da linha Circular e o de Flores, faziam parte dos colecionadores campeões de bolinha.

O Deoson, Nego Zura, Canhoto, Esbim, Alfredo, Eloy e Pingueleta constituíam o grupo dos campeões. Dificilmente perdiam uma parada. Eu, geralmente, era refugado pela turma: alegavam falta total de disciplina. Mesmo assim os acompanhava, de longe, nas incursões pela Matinha, Areal, Igarapé do 40 e Monte Cristo, onde íamos tomar banho ou pescar camarões nas locas dos barrancos.

O Esbim era o chefe da turma, ditava as ordens com seus olhos sempre muito vermelhos e apertados como um chefe mongol das estepes russas. Usava a sua autoridade com as características de um verdadeiro líder, dava cascudos em quem desobedecia.

Quando íamos para o Areal, próximo da Ponte dos Bilhares, era importante os 400 réis das passagens, 200 de ida e 200 de volta. Quem não tivesse o dinheiro, ficava. O Esbim não pagava a passagem de ninguém. As notas de mil réis que ele guardava dobradinhas, com muito carinho, na sua carteira porta-níqueis, eram ganhas com muito sacrifício na compra e venda de garrafas vazias.

Toda a turma vendia garrafas vazias. Cada qual com seu saco de açúcar cuidadosamente dobrado, ´piamos nos reunir nos fundos do quintal da Dona Cachica, mãe do Deoson, sob a copa de uma imensa mangueira, cujos galhos debruçavam-se sobre a rua Dr. Machado. Ali discutíamos as bases do negócio e as áreas onde atuar. O Esbim e o Tabajara me faziam inveja – compravam e vendiam mais do que eu, por isso gastavam mais. Eu achava aquilo um assombro.

Alguns anos depois, em plena adolescência, o Tabajara morreu. Ele foi para mim o amigo mais íntimo que tive, com quem brincava e brigava muito.

A Avenida Getúlio Vargas, que naquela época se chamava 13 de Maio, era dividida em três áreas: da Ramos Ferreira, Leonardo Malcher e Dr. Machado. Três turmas valentes defendiam seus territórios. O Pingueleta, o valente da Leonardo, num domingo de manhã, brincando com os vagões da Treze, esmagou uma das pernas tentando parar o vagão que montava. O líder da Dr. Machado era o Orígenes Martins, peitudo e metido a domesticar mucuras, que trazia sempre a tiracolo. Depois foi ser seminarista. Hoje é um monumento da nossa educação, líder da nossa juventude e diretor proprietário do Instituto Christus.

As antigas hortas onde vivi a minha infância deram lugar aos grandes prédios de hoje: o Hospital Infantil Dr. Fajardo, o Edifício do Senai, os belos prédios residenciais fronteiros e todo o quarteirão entre a Avenida Getúlio Vargas, Dr. Machado, Tapajós, Leonardo Malcher e Tarumã. Quase todo o bairro era constituído de grandes áreas verdes de hortaliças, tratadas pelos seus proprietários portugueses. Entre eles estavam seu Joaquim Cegueta, seu Firmino, seu Herculano, seu Adílio, Dona Rosária com seus dois filhos, Manoel e João da Rosária, porque também tinha o João Pé-de-vaca, filho do seu Herculano. A Dona Rosária tinha a maior horta daquele tempo, com muitos empregados, entre eles alguns lusitanos saudosos da santa terrinha, cantando antigos fados que enchiam de ternura as tardes maravilhosas da Rua Dr. Machado.

Todas essas recordações afloraram durante a minha última viagem à Europa, quando tive a oportunidade de ver os bondes de Sintra, em Portugal, iguais aos antigos bondes dessa cidade de Manaus. Neles vi desfilar toda gente da minha infância, alguns já habitantes da grande luz, como diz o meu irmão Farias de Carvalho. O último banco com os tabuleiros cheios de folha para banhos e a algazarra dos moleques que hoje passeiam silenciosamente na imagem viva da recordação.



(Publicado no jornal A Notícia, em maio de 1973)

terça-feira, setembro 17, 2019

Prefeitura de Manaus vai restaurar o antigo Hotel Cassina



O antigo Hotel Cassina, localizado na esquina das ruas Bernardo Ramos e Governador Vitório, no Centro de Manaus, passará por uma restauração.

A obra será lançada nesta quarta-feira, 18, com a assinatura da ordem de serviço com a empresa vencedora da licitação, a Construtora Biapó, a mesma que fez a restauração do Mercado Municipal Adolpho Lisboa.

O restauro da obra obteve aprovação junto ao Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).

Após o lançamento do projeto de restauro, o prefeito Arthur Neto deve realizar uma visita às demais obras de revitalização do centro histórico em execução e que integram o programa “Manaus Histórica”, um dos eixos temáticos das ações planejadas em homenagem aos 350 anos da cidade.

A visitação será guiada pelo diretor-presidente do Instituto Municipal de Planejamento Urbano (Implurb), Cláudio Guenka, nas obras do Pavilhão Universal, na praça Adalberto Vale; ao prédio da antiga Câmara Municipal, na avenida 7 de Setembro; e na Biblioteca Municipal João Bosco Evangelista, situada na esquina da rua Monsenhor Coutinho com a praça Antônio Bittencourt.



Situado na antiga Praça da República, atual Dom Pedro II, em um prédio de dois andares, o Hotel Cassina teve como primeiro proprietário o italiano Andréa Cassina.

A referência mais antiga que existe sobre o início de suas atividades é um anúncio publicado no jornal Amazonas, de 1º de setembro de 1897.

Em 1905, o hotel já estava sob a gerência da empresa Luiz Pinto & Cia., quando passou por reformas e foi reinaugurado na véspera de Natal daquele ano, com uma nova denominação: Grande Hotel Cassina.

Devido ao declínio da economia gumífera em Manaus, o estabelecimento, outrora frequentado pelos barões da borracha, transformou-se em uma hospedaria e casa de jogos.

De Cassina, o hotel passou a ser chamado, popularmente, de Cabaré Chinelo, denominação que utilizou até o encerramento de suas atividades.

Atualmente, o prédio encontra-se em ruínas e somente as quatro paredes externas ainda permanecem de pé.

sexta-feira, setembro 13, 2019

Como beber whisky



Por Edson Aran

Antes de beber, compre o whisky. Algumas pessoas costumam entrar em lojas de bebidas e sair bebendo, mas isso dá encrenca. Por algum motivo misterioso, gente que bebe não tem credibilidade alguma com a polícia, enquanto os donos de loja têm bastante.  Certifique-se, contudo, de que a loja realmente vende bebida. Tentativas de comprar whiskies em açougues ou petshops são mal sucedidas em 93% dos casos, diz pesquisa.

Na hora da compra, entenda que existem dois tipos de whisky: um é feito de cevada e o outro é feito de milho. O de milho é produzido nos Estados Unidos e costumava ser chamado de “whiskey”, mas usa o nome social de “bourbon”. O mais famoso entre eles é o Jack Daniels, embora o Jim Beam tenha um leve sabor de amendoim que me parece mais agradável, mas isso é tão pessoal quanto o seu nome social.

Entre os whiskies de cevada, existem dois tipos: o escocês e os outros. Ignore os outros. Dizem que há bons whiskies feitos no Japão, mas acreditar nisso é o mesmo que dizer que Godzilla vive em Loch Ness.

Entre os whiskies escoceses, existem dois tipos: o single malt e o blended. Ignore o blended. O single malt é o whisky de uma única destilaria e o blended (“misturado”) junta o produto de várias delas. Quase 80% do mercado é dos blendeds, que saem mais em conta. Ou costumavam sair. De uns tempos pra cá, as destilarias têm inventado misturebas chiques de rótulos pretos que custam os olhos da cara. O blended whisky mais famoso do mundo é o Johnny Walker, que ninguém conhece na Escócia. É fato. Até o monstro de Loch Ness é mais visto no país do que ele. No entanto, caso o PIB prossiga na baixaria atual e você tenha de trocar o single malt pelo blended, escolha o Famous Grouse, que não é tão famoso quando o Johnny Walker, mas desce redondo e reanima. Note, contudo, que com apenas alguns reais a mais, você leva o Jura, que é um single malt. Fique tranquilo. O nome “Jura” vem da ilha onde a bebida é destilada. Depois de tomá-lo você não vai sair por aí lacrando e falando “Jura?”

Entre os single malts, existem dois tipos: os da montanha e os de ilha. Você deve chamar as montanhas de “highlands”, que é mais chique. As ilhas você pode chamar de “islands” mesmo. Também existem whiskies nas “lowlands”. Ignore. A região de Speyside fica no norte da Escócia e os bebedores costumam separá-la das highlands. Isso é frescura. A divisão só acontece porque dali sai o mítico The Macallan, o whisky mais caro do mundo. A garrafa do Macallan 1946 está no mercado por 400 mil euros (um milhão e oitocentos disso que você chama de “reais”). E, mesmo assim, você não consegue comprá-la. A maldita elite já arrematou tudo. De pé, oh, vítimas da fome! De pé, famélicos da Terra!

Entre os whiskies de ilhas, existem dois tipos: os das ilhas menores (Jura, Aran, Mull e Skye) e os da ilha maior, Islay. Isso também é frescura e você deve agrupá-los. Se quiser, pode incluir o Oban, que é um whisky de litoral, mas que tem sabor de ilha. O whisky das montanhas é claro, suave e adocicado. O whisky das ilhas é turvo, defumado e salgado. Paladar e nome social não se discutem, mas eu prefiro os whiskies de Islay. O Lagavulin é o mais famoso, mas bom mesmo é o Laphoraig 10 anos, um excelente motivo para comprar uma passagem pra Escócia. Só de ida, de preferência.

Como beber Jack Daniel’s



Por Edson Aran

Escrever é uma abominação aos olhos de deus e dos homens. Nada de bom advém desse hábito feio de enfileirar letras e palavras em frases que não fazem sentido algum. Obadih obadah yeah yeah lahlahlah. Olha isso que eu acabei de escrever. Pra quê serve isso? Pra nada. Escrever é arrumar encrenca e ninguém precisa de mais encrenca na vida.

Semana passada, por exemplo. Semana passada, escrevi na Revista Bula um textinho sobre whisky. Nem bem a coisa tinha sido uploadada e a redação já estava cercada por uma multidão de aldeões com tochas e forcados gritando: “Justiça para o Jack Daniels! Dê-nos a cabeça do Aran!”

Onde os aldeões conseguem arrumar tochas e forcados em 2019 é um desses grandes mistérios da humanidade. É possível que eles sejam todos amigos do prefeito do Rio, Marcelo Crivella. Ele tem o maior jeitão de quem é íntimo de aldeão com tocha na mão.

A razão da comoção é que cometi o desatino de escrever que Jack Daniels é um bourbon, o que é uma grossa empulhação. Embora o velho Jack seja feito como bourbon, com ingredientes de bourbon e tenha gosto de bourbon, ele não é um bourbon, mas sim um Tennesee Whiskey, pois o bourbon é uma denominação de origem controlada que fica no Kentucky. O Tennesee e o Kentucky são vizinhos, mas um não gosta muito do outro, embora os dois tenham escolhido juntos o lado errado na Guerra de Secessão. O Kentucky fica do lado de cima e por isso se acha superior.  A questão do bourbon é tipo assim: imagine que, amanhã, Salinas ganhe na Justiça o direito de ser a única região do país a produzir “cachaça” e Paraty tenha de escolher outro nome pra sua aguardente.

Já que não podia ser bourbon, o Jack Daniels apelou e começou a queimar os barris por dentro com folhas de bordo, o que dá à bebida um leve sabor adocicado… de bourbon. Quer dizer, embora seja um Tennessee Whiskey por fora, o Jack é um bourbon por dentro. Igual a um amigo meu, o Jeremilson, que nasceu homem e negão, mas que, por dentro, é uma moça vietnamita chamada Xuan Linh.

quinta-feira, setembro 12, 2019

Ruy Castro troca biografia por crônicas em novo livro



“Acrescento que nunca fiz outra coisa na vida senão escrever”, diz Ruy Castro na crônica “Autor da bula”, de seu mais novo livro, “A arte de querer bem (2018).” Trata-se da mais pura verdade. Ruy é um operário das palavras, escritor e jornalista conhecido por livros como “Chega de Saudade”, uma reconstituição da Bossa Nova e da vida boêmia e cultural carioca da época, “Carmen”, uma biografia sobre Carmen Miranda, e “Estrela Solitária”, sobre a vida do jogador Garrincha, entre outros.

As paixões de Ruy, assim como episódios de sua vida jornalística e pessoal, podem ser encontradas nesta nova obra publicada pela Estação Brasil. “Esse livro é um oásis no meio do deserto. Até eu mesmo, que sou o autor, pego para folhear e me sinto no meio de uma ilhazinha, com uma palmeirinha e uma caixinha de sorvete ao meu lado”, diz ele.

O livro é um compilado de crônicas publicadas no jornal Folha de S. Paulo entre 2008 e 2017, em que Ruy expressa o amor por sua profissão, pelo futebol, por sua cidade, pela música e por sua vida. Nestes mais de cem textos, grandes temas e figuras nacionais e internacionais dão lugar a amigos de infância, incursões em sebos ou a história de sua “leitora número 1”.

Os textos são curtos e de fácil leitura. Traços fortes são o humor e a leveza com que o autor conduz os mais diversos assuntos. É assim quando ele conta sobre um bizarro acontecimento, como o de uma máquina de escrever que quase caiu em sua cabeça quando criança, ou até mesmo quando mergulha em reflexões inusitadas, como a da tecnologia de nuvem.

Por ser um compilado de crônicas, uma coisa que falta ao livro são menções às datas em que elas foram publicadas. Com a ausência delas, o leitor pode se sentir perdido em alguns momentos por não ter o conhecimento do contexto em que elas foram escritas – contexto este que é inerente ao leitor de jornal quando lê a crônica no dia. Então algumas referências temporais – como quando o autor escreve “há dois anos”, ou “outro dia” – e citações sobre peças em cartaz, ou até mesmo do ambiente político e cultural, se perdem na leitura hoje. Isso não diminui a qualidade dos textos de Ruy, mas tira o aproveitamento total da experiência de lê-los.

Aos 71 anos, Ruy conta que é fã de crônicas desde os 4, quando a mãe lia para ele os textos de Nelson Rodrigues, seu futuro biografado. Viriam outros ídolos cronistas, que inclusive se tornaram amigos, como Carlos Heitor Cony: “Hoje entendo a cabeça daqueles caras.” Em uma conversa no em seu apartamento, no Leblon, Ruy falou também sobre sua trajetória, seus projetos, o amor pelo Rio de Janeiro e o caso de João Gilberto: “Seria o caso de chamar a polícia”

Qual a diferença de fazer biografias e crônicas?

Na biografia, tenho que ser o mais objetivo, imparcial e impessoal possível. Estou tratando de fatos e pessoas que não me pertencem. Na crônica, não só posso como tenho obrigação de ser subjetivo, parcial e pessoal. O Álvaro Moreyra fez um livro chamado As amargas, não… (1955), ou seja, que não trazia notícias ruins. “A arte de querer bem” é minha versão de “As amargas, não…”: só tem textos que eu espero que façam bem ao leitor.

Quem são seus ídolos cronistas?

Gostava e gosto do Cony, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Nelson Rodrigues, Carlinhos de Oliveira, que era uma sensação. Lia tudo “em tempo real”. Mas hoje, depois que eu passei a trabalhar com a vida e com o legado deles, que passei a entender a cabeça daqueles caras.

Como assim?

Se você pega um jornal de 1942, está lá uma manchete bombástica, Brasil na Segunda Guerra Mundial. Mas isso virou História. Então eu sigo folheando e, no meio daquele troço massudo, num quadradinho, tem o Rubem Braga falando porque, quando era garoto, decidiu que não seria conde. É uma alfinetada no Conde Matarazzo, uma obra prima. Tudo que havia de importante em volta deixou de interessar, e o que tinha de mais fútil e bobo é o que hoje você lê com mais interesse. Esse é o barato do cronista.

Mas dá para ignorar as manchetes?

O cronista precisa estar minimamente atualizado. Isso implica ter que falar de vez em quando de política, citar nomes que não quero reproduzir agora. Mas às vezes sinto que o leitor não aguenta mais, é preciso dar é um refresco da vida real. Hoje fui num médico aí e o cara perguntou: “Você leu o livro do Trump?” Eu comecei a ler, mas é tanta gente que eu nunca ouvi falar, que eu não conheço, que eu parei. Antigamente, eu seria uma autoridade em Donald Trump. Para falar mal, evidentemente. Mas agora estou escrevendo um livro sobre o Rio dos anos 20. Quero saber de Di Cavalcanti, de Villa-Lobos, de Álvaro Moreyra.

Quando você pesquisa o passado, é seu refresco da vida real?

Não. É a continuação de uma coisa que me acompanha pela vida inteira. Vivi o final dos anos 1960 intensamente, a efervescência cultural, os protestos, a revolução sexual. Eu estava nos lugares certos, com as pessoas certas e na idade certa, tinha 20 anos. Apesar disso, você pega a minha produção na época e é uma quantidade de textos sobre Noel Rosa, Chaplin, jazzistas dos anos 1930... Para mim, voltar no tempo sempre foi um prazer muito grande. Tem gente que só pensa em ir a Nova York. Eu já enjoei, fui mais de 20 vezes, não preciso mais. Mas eu adoro ir a 1930, não importa aonde.

Tendo mergulhado tantas vezes no passado do Rio, como você vê ele hoje?

Há muitos anos deixei de levar a sério quem diz “bom era antigamente”. Neste sentido, o passado é negativo. Em toda a história você encontra pessoas dizendo que “o Rio era a Cidade Maravilhosa antes”. Esse “antes” é quase sempre na época de juventude de quem está falando. O que dava a entender que a culpa não é do Rio, mas da pessoa. A Heloísa [Seixas, escritora e mulher de Ruy] me chamou a atenção: quem fala que o Rio está decadente geralmente é alguém que veio para cá jovem, se apaixonou – o Rio inevitavelmente é melhor que a cidade dele – e não se conforma que a cidade mudou.

Sim, mas nos últimos anos…

Claro que tem milhões de problemas que estão cada vez mais graves por inépcia, cretinice e corrupção dos nossos governantes. Tenho a visão mais realista possível. Lamento muito o que está acontecendo. Sei de tudo e que tende a piorar até. Mas eu ainda consigo enxergar as coisas boas.

Uma coisa boa é que a bossa nova, em parte pelo seu livro Chega de saudade chega aos 60 anos melhor do que aos 30. Mas a situação de um dos pais dela, João Gilberto, não é de se comemorar. Você gostaria de comentar?

O isolamento do João Gilberto não me incomoda em nada. Roberto Carlos não aparece para ninguém e todo mundo acha normal, mas o João Gilberto é criticado. A minha opinião definitiva no momento é que ele deveria estar sob cuidados médicos, num lugar adequado, profissional. Em relação a situação dele num conjunto, seria o caso de chamar a polícia. Quem vai resolver isso? Só a polícia.

Vida de biógrafo

Ruy Castro tem a cláusula pétrea: se nega biografar pessoas vivas. “Enquanto o cara estiver aqui, não dá para ser como tem que ser, ou seja: contando tudo.”

Mesmo para falecidos, há regras: “Não aceito fazer biografia de quem não me interessa a priori. Morto ou vivo, vou ter que conviver com essa pessoa por anos.”

O próximo projeto de Ruy é um livro sobre o efervescente Rio dos anos 1920, previsto para sair no final de 2019. Já tem título, que ele prefere não divulgar.

Ruy morou no Solar da Fossa, onde hoje é o Shopping Rio Sul, e recorda do clima liberal: “Pedia-se no pátio interno: ‘Fulana, me empresta o diafragma?’ Ninguém ligava, era normal.”

Biógrafo de Carmen Miranda, Ruy faz parte da campanha, ainda sem sucesso, por uma estátua da cantora no Catete. “Tem estátua de tanta gente menos importante…”, comenta.

Em novo livro, Heloisa Seixas se inspira nas histórias de quase morte do marido, Ruy Castro



Na página 92 do livro “Carmen – Uma biografia”, o escritor Ruy Castro conta ao mundo como foi o dia em que Carmen Miranda foi a uma favela pela primeira vez. Foi no carnaval de 1934, levada por Almirante ao Morro do Salgueiro, onde assistiu à roda de samba que 20 anos depois daria origem à Acadêmicos do Salgueiro. Naquela noite, ficou encantada com o sambista Gargalhada, uma lenda local, conhecido por defender os moradores nas primeiras ações de despejo no morro.

No dia em que pôs fim a esse trecho, uma das milhares de passagens que ajudavam a construir deliciosamente a imagem da “brasileira mais famosa do século XX”, Ruy tinha acabado de receber o diagnóstico de um câncer na língua.

A obra que ganharia o Prêmio Jabuti de melhor biografia e melhor livro de não ficção em 2006 fora escrita, portanto, durante 34 sessões de radioterapia que deixaram seu pescoço em carne viva, e sete de quimioterapia, que o impunha náuseas e jejum absoluto.

Quem conta em detalhes o que foi um dos piores momentos de sua vida é o personagem Ruy, protagonista do novo livro da escritora Heloisa Seixas, “O oitavo selo” (Cosac Naify): “Tudo o que foi escrito dali para a frente, todas as quase quinhentas páginas seguintes foram feitas durante o tratamento. Eu tinha de conseguir. Não podia decepcionar a Carmen”.

Inspirada nas histórias de quase morte do marido, Ruy Castro, com quem é casada há 25 anos, Heloisa escreveu o que chama de um “quase romance”:

– É meio ficção, meio não ficção. Muitas cenas ali de fato aconteceram como eu descrevo, e até parecem romanceadas, mas não são, outras são totalmente inventadas. Eu não quero ficar nessa questão se é verdade ou mentira, é um romance baseado em fatos reais. São histórias de confronto com a morte – define Heloisa, autora de mais de dez livros de ficção, entre romances e contos, e três vezes finalista do Prêmio Jabuti.

Portanto, Heloisa corre os olhos pelas muitas estantes da sala da casa do marido, no Leblon (os dois vivem em casas separadas; ela, em Ipanema), quando questionada se o romance, ainda assim, pode ser lido como uma espécie de biografia de um dos principais biógrafos brasileiros – além de Carmen Miranda, Ruy desfiou a vida de Nelson Rodrigues e Garrincha.

Afinal, é a primeira vez que histórias difíceis relacionadas ao passado do escritor vêm à tona, como as passagens sobre dependência química, alcoolismo, cânceres e enfarte. Ela repete a primeira frase do livro com um sorriso: “Não adianta tentar estabelecer as fronteiras”.

Melhor perguntar sobre a biografia do próprio romance:

– Como surgiu a ideia? Eu estava numa festa da Flip de 2012 com uma amiga, a (escritora) Guiomar de Grammont. Ela começou a falar de mitos eróticos. E eu ouvindo aquilo, no meio daquela barulheira, sem prestar muita atenção. Ela citava Tristão e Isolda, Don Juan, e de repente falou... “Sherazade”. Fiquei com aquilo na cabeça. Eu sempre havia comparado internamente o Ruy à Sherazade (narradora de “As mil e uma noites” ). Durante muitas situações extremamente complicadas pelas quais passamos, eu chegava à conclusão que ele só não morria porque tinha uma história para contar, exatamente como a Sherazade. No caso, porque tinha um livro para terminar. E aí comecei a escrever a história. E, quando eu sento para escrever um livro, seja qual for, não é charme, mas eu nunca tenho muito clara essa questão de gênero. Os livros se escrevem.

Bergman como referência

Dividindo o quase romance em oito “selos”, um para cada vez que Ruy Castro chamou a morte para uma partida de xadrez – uma referência explícita ao cavaleiro Antonius Block, do filme “O sétimo selo” (de Ingmar Bergman, 1956), que, ameaçado pela figura da morte, tenta ganhar tempo num jogo contra ela –, o personagem Ruy enfrenta a hemorragia que vitimou a irmã mais nova; o vício em cocaína; o alcoolismo; o câncer de língua; o enfarte; o câncer na próstata; a convulsão cerebral. O último selo fica para o leitor descobrir, ou se configuraria um spoiler de um filme que ainda não acabou. Vale lembrar que o livro é repleto de referências cinematográficas, além das literárias e musicais, tal qual qualquer conversa com o escritor.

Ruy entra na sala. Pede desculpas por entrar no meio da entrevista. Estava no escritório fazendo alguma pesquisa para o novo livro em que trabalha, sobre a história do samba-canção. Acha curioso quando lhe perguntam se está bem.

– Estou ótimo. Faz dois anos e meio que não morro – diz Ruy.

– Ele sempre faz essa piadinha – emenda Heloisa, abrindo espaço para o marido no sofá e lembrando que nunca faltou humor ao escritor, mesmo nas muitas vezes em que esteve entubado no hospital (no dia seguinte à convulsão cerebral, em 2012, um domingo de carnaval, Ruy posou para fotos ainda na UTI segurando uma contracapa do jornal O GLOBO, onde se lia, no título, sobre varredores do sambódromo: “Pouca folia e muito trabalho”).

– Sem humor não seria eu – brinca Ruy, garantindo não ter se sentido exposto ao ler o romance, antes de sair da sala para procurar a foto de 2012. – Não vejo nada de mais. Em algumas questões, como o alcoolismo, eu acho até que tenho obrigação de expor. As primeiras histórias do livro foram muito mais fáceis de ler, são histórias da minha infância e da vida que já contei a ela dezenas de vezes. Só fiquei admirando a habilidade dela para costurar tudo, de ficcionalizar as memórias que tem sobre mim. Mas em relação à última história do livro, eu não lembrava mais de nada, porque estava inconsciente quando aconteceu. Eu não sou testemunha da minha própria história. Fiquei muito impressionado. Se a sensação de ineditismo que tive lendo essa última história foi tão impactante, quem sabe o leitor possa ter uma sensação parecida ao ler o livro, já que não conhece nada ou muito pouco da minha vida.

Para contrapor as histórias pesadas que perpassam o romance – numa delas, o personagem, completamente alucinado pela cocaína, toma a mulher do amigo na mesa do bar e é flagrado com ela no banheiro do local por ele –, Heloisa usa o humor, característica primordial do personagem que a inspirou.

Cura pelo humor

Numa das cenas mais curiosas do romance, ao fazer uma tomografia computadorizada para detectar se o câncer de próstata havia se espalhado, foi notada uma mancha cintilante no exame de contraste do protagonista, perto da cabeça.

O médico o tranquilizou: como havia esvaziado a bexiga para fazer o exame, a mancha podia ser apenas uma gotícula de urina que ficara nos dedos, passando para a cabeça ao coçar os cabelos, por exemplo. Ao ouvir a explicação, Ruy retrucou: “Ou é mijo ou metástase”.

– O humor faz parte dessa ideia geral do livro, que é a salvação pela palavra e pelo prazer. Acho que essa é a grande mensagem, e volto à Sherazade: a salvação do Ruy sempre foi a palavra. É uma vida muito impressionante, ele quase morre, e quase morre de novo, e de novo. E ainda assim, está aí, com mil ideias de livros, colunas diárias – derrete-se a mulher.

segunda-feira, setembro 09, 2019

Correspondente de pub


Por Ivan Lessa

O dia em que a América Latina me dá mais trabalho é no sábado. No sábado, entre 11 da manhã e uma da tarde, transformo-me no mais ubíquo dos correspondentes estrangeiros da BBC, informando, num mínimo de palavras e com o máximo de fatos, sobre os mais diversos aspectos do conturbado continente. Duvido que outro correspondente para ou da BBC trabalhe tanto em tão pouco tempo inclusive o responsável pela cobertura de Beirute.

É que no sábado, entre 11 e uma da tarde, como disse, tomo minha cervejinha no pub da esquina, antes de comer com a família num dos restaurantes do bairro. E é no sábado que sou assediado pelo Stanley ou Stan, para os íntimos, quer dizer: eu.

Stan é ex-oficial da Real Força Aérea Britânica. Nada mais ex do que o lamentável Stan. Um terno que nem eu teria coragem de dar para os pobres e nem os pobres o mau gosto de aceitar. Suéter onde ainda se podem distinguir três das seis refeições consumidas no último inverno. Sapato preso com corda tingida com tinta preta. O mundo e a caspa a lhe pesarem nos ombros.

Para aguentar tudo isso, Stan já chega bêbado. O que ou onde bebera não sei. Mas entendo. Na mão, como um manche inútil no seu avião desgovernado, o exemplar do Times. Não encontrando alvo melhor, pousa perto de minha mesa, como se saltando de pára-quedas sobre território ocupado pelos alemães.

Como eu nunca lhe fiz perguntas sobre a RAF, Stan se acredita na posição de comando, de delicado e cortês comando. Sabe-me vagamente latino-americano. E sou vagamente latino-americano. Só que em termos diferentes dos que crê Stan. Por ser do morro e moreno, consequentemente, respondo em despachos breves às indagações puxa-prosa de Stan.

Vejam o que foi este sábado, por exemplo.

Em minha opinião, o general Augusto Pinochet abriu mão do poder em consequência dos eventos no Leste europeu, ou outros fatores contribuíram para a augusta decisão?

Bem – eu, como todo especialista, sempre começo minhas respostas com bem –, bem, temos que levar em consideração que o plebiscito realizado no Chile ocorreu algum tempo antes de os ventos das reformas soprarem no Leste europeu.

Notaram meu sutil uso da primeira pessoa do plural? Outra técnica jornalística: dar peso às tolices que digo como se tivesse fontes fidedignas de informação e simultaneamente envolvendo-o – a ele, meu interlocutor – na ponderação.

E a Nicarágua terá condições de encontrar o caminho para a reconciliação nacional sem o auxílio econômico dos Estados Unidos?

Pela pergunta, vocês podem notar que Stan não está tão por fora quanto seria de se desejar. Tenho que proceder com cautela. Há tocaias à minha espreita nesta selva nicaraguense. Opto pela saída clássica, a imbatível estratégia mineira: respondo firme. “Bem, tudo depende do ponto de vista.”

Bebo o último gole de meu chope duplo e ofereço-me para pagar qualquer coisa para ele. Stan vira de uma só vez 17 goles que lhe sobram de seu chope, diz que sou muito gentil e diz que a dele é uma bitter. A questão nicaraguense me sai mais barata do que ao contribuinte norte-americano. Um pint de cerveja amarga.

Stan está animado com minha política externa. Igualzinho a um El Salvador ou Honduras gritando “Olha os comunistas!” para os políticos americanos e suas generosas doações.

E toma ele a bitter e tomo eu Mario Vargas Llosa e Sendero Luminoso. Rebatidos com a bem-sucedida nova política econômica mexicana e as relações diplomáticas entre Grã-Bretanha e Argentina.

Lá se foram – cortesia da América Latina e da RAF – meu jornal, meu chope, meu sábado de manhã.

Já mudei de continente. Terei agora de mudar de bar?

quarta-feira, setembro 04, 2019

Festa e ação social marcam a comemoração dos 38 anos da Reino Unido



Nesta quinta-feira, 5 de setembro, o GRES. Reino Unido da Liberdade estará completando 38 anos de fundação. Para celebrar a data, a diretoria preparou uma programação que começa ao longo do dia de hoje, 4, a partir das 9h da manhã, com uma grande ação social na quadra Terreirão do Samba Mãe Zulmira Gomes, no Morro da Liberdade.

Entre outros serviços ofertado gratuitamente aos moradores estão Corte de Cabelo, Massoterapia, Esmaltação, Serviços de Estética, Palestras, Emissão de RG, Certidão de Nascimento, Carteira de Idoso e CadÚnico, Distribuição de Cestas Básicas e Atendimento Jurídico, Psicológico e Pedagógico.

Também será oferecido o Curso de Agente de Portaria, com 8 horas de duração e certificado, além do Aulão de Ritmos com Hudson Praia, Ellen Juliana e o grupo Vem Dançar. Por volta das 18h, após o encerramento da ação social, ocorrerá uma Celebração Ecumênica.

O famoso arrastão da quadra antiga para o Terreirão do Samba está previsto para começar às 19h30.

O evento musical se inicia às 20h, com o Grupo Pão Torrado, e às 22h será a vez da Bateria Furiosa da Escola apresentar o melhor do samba de enredo com a presença da Ala Show, Casais de Mestres-salas e Porta-Bandeiras, interpretes de escolas coirmãs. À meia-noite haverá a tradicional salva de fogos e os parabéns comemorativos os 38 anos de aniversário, com o samba correndo no pedaço até amanhecer o dia.

A Escola de Samba Reino Unido da Liberdade iniciou sua trajetória como Bloco de Empolgação em 1981, se transformou em Bloco de Enredo e depois em Escola de Samba do 2º Grupo. Em 1987 foi convidada para participar como Escola de Samba do 1º Grupo, hoje Grupo Especial, com as grandes escolas da época, e foi para a Avenida Djalma Batista com o enredo Hoje A Arte Vai Brilhar, levando para a avenida 1.900 figurantes e ficando em 4º lugar.

No ano seguinte, em 1988, trouxe do Rio de Janeiro o carnavalesco Oswaldo Jardim, que por sua vez trouxe Xangai para a conclusão dos carros alegóricos, revolucionando o carnaval daquele ano com belas alegorias gigantes e o enredo Conta Amazonas. Após o desfile, ganhou o favoritismo da imprensa e do público presente na Avenida, porém, para os jurados, lhe valeu o vice-campeonato com uma diferencia de 2 décimos.

Em 1989, com o enredo Mãe Zulmira: O Amanhecer De Uma Raça, desfilou com 4.200 figurantes, seis carros alegóricos, além de vários tripés, 160 destaques, bateria com 220 ritmistas, e consagrou-se a grande Campeã do carnaval naquele ano. Foi o seu primeiro campeonato como Escola de Samba do 1º Grupo.

Hoje, a Reino Unido da Liberdade é detentora de 13 títulos, sendo atualmente a tetracampeã do carnaval amazonense.

terça-feira, setembro 03, 2019

Livro reúne mentiras e exageros na política brasileira



Por Eduardo Brito

Fake news é termo novo. Tão novo quanto verdade alternativa, a denominação adotada por quem gosta de fake news. Só que a prática é antiga nos meios políticos e, principalmente, entre os governantes, muito antes de se adotarem as denominações em inglês. A propósito, chamava-se mentira, mesmo. No Brasil, sucessivos governos, governantes e candidatos a governantes usaram e abusaram da mentira.

É disso que trata o livro “Você Foi Enganado”, dos jornalistas Chico Otávio e Cristina Tardáguila, publicado pela Editora Intrínseca. A falsificação de notícias em época de campanha eleitoral é um modus operandi tão antigo quanto a Velha República, ao menos. É o que mostra o livro, que tem como subtítulo “Mentiras, exageros e contradições dos últimos presidentes do Brasil”.

Ao longo da história do Brasil, candidatos à Presidência da República, vice-presidentes e presidentes eleitos faltaram com a verdade ao se dirigir à população. Fosse qual fosse o partido, se não mentiram, muitas vezes optaram por omitir dados ou induzir os cidadãos a conclusões equivocadas sobre o cenário político.

Aproveitando-se da boa-fé dos brasileiros, políticos usaram a mentira como instrumento para conquista e manutenção do poder.

Em “Você Foi Enganado”, Cristina Tardáguila e Chico Otavio apresentam uma seleção de casos que marcaram nossa história, desde 1920 até agora mesmo. Estão no livro episódios emblemáticos envolvendo 15 presidentes.

Tem de tudo: documentos forjados para sugerir uma fictícia ameaça comunista; fotos posadas para omitir o grave estado de saúde de (vários) governantes; e principalmente presidentes que, eleitos, fizeram o oposto do que prometeram de modo veemente durante o processo eleitoral.

Primeira mentira

No Brasil, um país de memória curta, foram incontáveis os momentos em que candidatos e governantes se aproveitaram da boa-fé dos eleitores. Cristina Tardáguila e Chico Otavio mostram, por meio de análises de casos emblemáticos, como a mentira serviu de instrumento para a conquista e a manutenção do poder. E ressaltam: “Não foi casual a escolha do ano eleitoral de 2018 para colocar no mercado editorial brasileiro esta obra. Este livro é uma tentativa de tornar os eleitores mais atentos e preparados para as decisões que deverão tomar diante das urnas”.

Provavelmente nunca se saberá qual foi a primeira mentira aplicada na política brasileira. Os autores escolheram um caso de 1921 para, já na introdução do livro, começar a explorar e contextualizar o tema. Esse foi o ano em que cartas falsamente atribuídas ao mineiro Artur Bernardes incendiaram o País, ajudando a intensificar o clima de instabilidade reinante. Nos oito capítulos que se seguem, passeiam sucessivos presidentes, de Figueiredo a Temer, de Tancredo a FHC, de Collor a Lula. Eles comprovam: a mentira não tem partido nem posicionamento político específico.

Os autores fizeram um trabalho minucioso de apuração. Além de consultarem arquivos e bibliografia especializada, ao longo de oito meses ouviram historiadores, economistas, cientistas políticos e fontes próximas ao poder. A partir do material reunido, selecionaram, dentre episódios antigos e novos, os que compõem o livro. Situações em que políticos abertamente enganaram os cidadãos, seja mentindo, exagerando, ocultando, distorcendo ou se contradizendo.

Alguns dos fatos contados no livro:

Bomba do Riocentro explodiu no governo

Quando agentes do ex DOI-Codi detonaram um explosivo em show de música, no Rio, o presidente Figueiredo prometeu investigação severa. Na verdade, o único esforço do seu governo foi manipular o inquérito aberto e culpar “radicais de esquerda” não identificados.

Doença escondida, cirurgias misteriosas

A ocultação de informações sobre a doença do presidente eleito Tancredo Neves partiu dele próprio, por temer que não se consumasse a abertura política. Tudo se agravou e o Brasil mergulhou em um pesadelo médico-hospitalar até sua morte. Está em O Paciente, nos cinemas.

Real será preservado, diz Fernando Henrique

Um mês antes da eleição de 1998, a crise externa ameaçava o valor do real, justamente o que segurava a inflação e o poder de compra do brasileiro. O presidente disse que quem defendia desvalorização não “tem apreço pelo trabalhador”. Em janeiro, o câmbio foi liberado.

Lula garante que vai acabar com corrupção

Em plena campanha para o Planalto veio a promessa: “Se ganharmos a eleição, tenho a certeza de que parte da corrupção irá desaparecer já no primeiro semestre”. Quem afirmava? Luiz Inácio Lula da Silva. Não se passaram dois anos e veio o mensalão. Depois, o petrolão.

A cidade é terreiro



Por Luiz Antonio Simas e Luiz Rufino

A cidade é aquilo que praticamos. Essa é a defesa da noção de cidade mirada pelo alinhave das múltiplas sabedorias que dão o tom daquilo que reivindicamos como epistemologias das macumbas. Assim, a cidade é aquilo que é inventado cotidianamente enquanto terreiro.

Lembremos que os terreiros são as saídas inventivas, a partir da prática do tempo/espaço por aqueles que rasuram as lógicas da desterritorialização. Dessa forma, a experiência do desterro se dá via a retirada compulsória e também pelas vias da descredibilização do ser e de seus saberes enquanto possibilidades. Para a maioria dos seres que não repousaram nas cadeiras dos privilégios arranjadas sobre os alpendres da Casa Grande, resta a invenção dos terreiros como ato de desobediência, transgressão e invenção.

Pensemos o Rio de Janeiro por essa perspectiva: um enredamento de terreiros encravados entre as montanhas e o mar. Por aqui corre a gira falanges ameríndias e africanas que na relação com os europeus rodopiaram na mesma canjira. De vez em quando, diríamos até que muito frequentemente, os encantados de falanges diferentes saem no cacete e a curimba esquenta. Eventualmente, porém, vira-se mundo e o povo no corre da gira cruzada e firma ponto para inventar a vida enquanto possibilidade.

A perspectiva riscada no encante da pemba nos revela uma cidade que é tempo/espaço em disputa; em um jogo que nem sempre se desenrola de forma igualitária para os seus praticantes e que em muitas das vezes o uso do artifício do desencante é artimanha dos poderosos. Ler a cidade do Rio na perspectiva do encante é tarefa para aqueles que aprenderam a versar na língua do povo do congo e bradaram alto no campo de batalha, feito guerreiro tupinambá. É tarefa para aqueles que sabem a potência da diversidade, dos diálogos e dos trabalhos feitos na artimanha do transitar pelas diferenças.

Lendo em múltiplos dizeres e entenderes, vamos mais longe na canjira carioca: Pereira Passos está encantado numa águia daquelas do Theatro Municipal. Cartola ajuremou-se numa pedra miúda da subida do Pendura Saia. Noel encantou-se em alguma garrafa de cerveja, com maestria. Jamelão virou Jequitibá do samba. Estão todos por aí, prontos para baixar, dançar, dar conselhos, passes e o escambau. Registre-se que a cidade inventada enquanto terreiro é também cheia de encosto de capitão do mato, de fardas e ternos bem cortados, empunhados verdades únicas, querendo atrapalhar a firmeza do riscado da pemba.

Percebemos que é no baixar dessas presenças, almas obcecadas pela intransigência, que nascem as demandas e marafundas que precisamos desatar. Agora é hora de firmar a banda de todas as pertenças daqueles que estabelecem relação de identificação com a cidade praticada enquanto terreiro. Sambistas, capoeiras, curimbeiros, professores, biriteiros, peladeiros de fim de semana, camelôs, navegantes do Santa Cruz ao Japeri, torcedores, feirantes, vadios, trabalhadoras e trabalhadores de toda estirpe, desse ou de outros mundos: nos lancemos nessa peleja.

A gerência de uma cidade praticada pluralmente por uma perspectiva contrária a diversidade produz um efeito de desencante, perda de potência vital, que reifica as raízes mais profundas do colonialismo. A grande peleja que se trava nesse momento veste o véu das purezas dos “homens de bem” para descredibilizar o nosso pluralismo e nossas sabedorias táticas operadas nas frestas.

O risco dos efeitos da demonização, dos absolutismos- reivindicados por seja qual for a banda- se dá no fortalecimento das lógicas monolinguístas. Contrários a esses efeitos, reivindicando as sabedorias de frestas inventivas dos nossos terreiros mundos, propomos firmar o fuzuê correndo a gira cruzada que é a cidade. A cidade simulacro ergue-se feito um edifício entoado por único dizer, cresce por cima de corpos e saberes múltiplos. A cidade terreiro corre gira, fala em vários dizeres para múltiplos entenderes, firma o encante no cruzado dos quatro cantos.

Haveremos de firmar uma toada duradoura, essa há de enunciar/comunicar em todas as línguas. O que nos espreita como demanda, marafunda de tempos atrás, opera na via contrária de nossa mirada, sendo fortalecida e perpetuada até os dias de hoje pelos mesmos modelos de catequese colonial.

O (re)encanto urge.

Jackson do Pandeiro: Os 100 anos do Rei do Ritmo



Por José Telles, de Recife

José Gomes Filho, nome de batismo de Jackson do Pandeiro, paraibano de Alagoa Grande, completaria 100 anos no dia 31 de agosto de 2019. Embora quase toda sua discografia original esteja fora de catálogo, ele continua fazendo amigos e influenciados pessoas, 37 anos depois de sua morte, em 10 de julho de 1982, em Brasília.

Pelo Brasil afora se celebra o centenário. Jackson foi o homenageado da edição deste ano do Festival de Inverno de Garanhuns. Sua cidade natal (a 118 km de João Pessoa) promove uma grande festa, com shows de artistas assumidamente influenciados por ele, caso do pernambucano Lenine, enquanto o governo da Paraíba declarou 2019 como Ano Cultural Jackson do Pandeiro.

Pelo país, artistas seguidores e admiradores de Jackson do Pandeiro montaram shows com canções pinçadas de sua obra. Apesar do descaso das gravadoras com a memória da música brasileira, o paraibano é mais forte do que elas. O que ele cantou permanece presente no repertório de nomes como Zé Ramalho, João Bosco, Guinga, Alceu Valença, Geraldo Azevedo, Silvério Pessoa, Chico César e grande elenco.

O Rei do Ritmo, epíteto que geralmente se aplica ao nome Jackson do Pandeiro, não faz jus ao talento do franzino cantor, que chegou ao Recife em 1948, com a fundação da Rádio Jornal do Commercio, onde foi contratado como ritmista (o que hoje chama-se de percussionista), na Orquestra Paraguary, uma das duas que a emissora mantinha. Tocando ao lado de estrelas feito Sivuca e Luperce Miranda, Jackson era muito grande para se limitar apenas a tocar pandeiro.

Aos poucos foi se destacando como cantor nos programas de auditório. Mas logo ficou claro que não se tratava de uma voz a mais no cenário artístico pernambucano. Com Almira Castilho ele formou uma dupla que incendiava os palcos. Ela, bem mais alta do que ele, curvilínea, reforçava a presença em cena com a particular coreografia que criaram, na qual entravam coco, rumba, frevo, entre outros ritmos.

Mas teve dificuldade em chegar ao microfone. O superintendente da Rádio Jornal do Commercio, o rigoroso Theóphilo de Barros (pai de Théo de Barros, parceiro de Geraldo Vandré em “Disparada”), emitia sempre um sonoro “não” quando Jackson pedia para cantar nos programas da emissora. O paraibano, aproveitando uma viagem de Téofilo a São Paulo, conseguiu convencer que o deixassem cantar. Segundo Jackson, o superintendente não lhe dava oportunidade por causa de sua aparência. “Ele fazia questão de manter na Rádio Jornal do Commercio gente que tivesse pinta de galã”, contou Jackson à revista Mundo Ilustrado.

Jackson do Pandeiro submetia-se às rígidas normas da empresa, onde qualquer deslize no trajar, nem que fosse um mero par de meias diferente do padrão, era motivo para uma multa ou suspensão. Por isso, em 1953, enquanto seu nome estava em todas as paradas do país, na programação das principais emissoras de rádio cariocas, ele continuava morando oficialmente no Recife. Jackson e Almira só conseguiram viajar ao Rio no ano seguinte, quando foram liberados para apresentações no “Sul”. Na Rádio Nacional, no Rio, Record, Bandeirantes e TV Tupi, em São Paulo.



Não é exagero comparar o surgimento de Jackson do Pandeiro ao de João Gilberto, cinco anos mais tarde. Ambos estenderam os limites do canto popular. João transgrediu a regra do vozeirão, herdado do bel canto italiano. Jackson, o da voz bonita pelos padrões radiofônicos. Tanto um quanto o outro faziam proezas vocais com uma simplicidade que levou a se achar que João fosse afinado, mas sem voz, ou que Jackson fosse somente embolador ou coquista. Na verdade, com Orlando Silva, os dois formam a trinca de vozes-guias da música popular brasileira. Os três criaram um caminho que deu em várias estradas vicinais.

O talento de Jackson do Pandeiro era tão superlativo que ele não precisou seguir os trâmites que regeram o mercado do disco até os anos 90. No início dos anos 50, artistas submetiam-se a programas de calouros, daí a uma gravadora, que promovia o trabalho, levando seu contratado às emissoras de rádio, TV, sessões de autógrafos e promoções, que poderiam ou não surtirem efeito.

Muitos tiveram as carreiras abortadas ou demoraram a chegar às paradas. Com Jackson do Pandeiro foi um rastilho de pólvora que provocou um fogaréu nacional. Sem ter sequer disco gravado, seu nome começou a ser comentado no Sudeste, principalmente no Rio de Janeiro, que abrigava o grosso da indústria do entretenimento no país.

Em dezembro de 1953, em plena temporada das marchinhas, quando radialistas, compositores, intérpretes e gravadoras digladiavam-se para emplacar sucesso, na revista Mundo Ilustrado lia-se uma matéria sobre os discos que estavam despontando como vitoriosos. Tratava-se da época em que mais se faturava na indústria musical. Gravadoras compravam horários nas emissoras de rádio para veicular seus suplementos carnavalescos; a chamada música de meio de ano tinha que esperar para depois da folia. Mas haviam as exceções, como comenta Borelli Filho, que assina uma página inteira sobre o cenário radiofônico na citada publicação:

“Para desespero dos cantores e autores interessados, os maiores sucessos continuam os mesmos há algumas semanas. E com o detalhe curioso de que está despontando violentamente uma gravação regional tipicamente pernambucana, em nada de acordo com a época momesca, gravada no Recife pelo Jackson do Pandeiro (prata nova da casa), e com todas as características para liderar as preferências do público por muito tempo”.

Amigo do radialista e compositor pernambucano (de Macaparana) Rosil Cavalcanti, desde quando morava em Campina Grande onde começou a vida artística como pandeirista e baterista, Jackson do Pandeiro não precisou recorrer a repertório alheio ao dar os primeiros passos como intérprete na Jornal do Commercio. Rosil lhe deu a impagável “Sebastiana” e o recifense Edgar Ferreira forneceu-lhe “Forró em Limoeiro”, o outro lado do que seria o 78 rotações que inauguraria uma extensa discografia.



Até 1955, Jackson, preso por contrato à emissora recifense, gravou no auditório da rádio, no Recife. O maestro caruaruense Clóvis Pereira, que dirigia a Orquestra Paraguary, foi testemunha dessas gravações. Aos 87 anos, o maestro mantém a memória afiada, ao relembrar de Jackson do Pandeiro: “As primeiras que ele gravou, Sebastiana e Forró em Limoeiro, eram mais populares, mas não fui eu que fiz os arranjos. Foram gravadas com o regional de Luperce Miranda: Gaúcho na sanfona, Romualdo Miranda no violão, Alcides do Cavaquinho. Tinha outro violonista que não me lembro. De uma hora pra outra, faltou um cantor e pediram pra ele cantar. Agradou. Ele já estava com 34 anos, eu era rapazola, estava com 20 anos, entrando na rádio”, lembra Clóvis Pereira.

O maestro conta que, quando foi gravar “Micróbio do Frevo”, Jackson queria fazê-lo com orquestra. “Eu escrevi o arranjo e acompanhamos ele com a Paraguary. Fiz também o arranjo para o samba Vou Gargalhar. Eu era muito amigo de Jackson, que era uma pessoa muito simpática, engraçada. Naquele tempo havia um programa na Jornal do Commercio chamado A Felicidade Bate à sua Porta. A gente ia num caminhão cheio de presentes que parava numa praça ou num largo onde pudesse juntar gente. Depois que o programa terminava, enquanto o pessoal arrumava o caminhão, Jackson me chamava pra tomar uma cachacinha com ele. Me ensinou a beber cachaça”.

O sanfoneiro Gaúcho, ao qual ele se refere, era realmente do Rio Grande do Sul, chamava-se Auro Pedro Thomas. Sargento da Aeronáutica, foi transferido para o Recife e logo chefiava o regional da Rádio Tamandaré (do grupo Diários Associados). Com a saída de Luperce Miranda da Jornal do Commercio, ele foi dirigir o regional daquela emissora. Foi ele, Gaúcho, pois, que tocou em quase todos os discos gravados por Jackson do Pandeiro na Jornal do Commercio.

Valiam-se do precário equipamento com que se registravam programas pré-gravados, em acetatos feitos com cera de carnaúba, bastante frágeis. Tudo em um único take. Os acetatos não eram reutilizáveis, e custavam caro. Não se podia errar. O maestro conta que as gravações eram realizadas à noite, depois que o carrilhão do prédio do Diário de Pernambuco soava às 20h. A razão era porque a Radio Jornal do Commercio, na Rua do Imperador, ficava vizinha ao DP, e o som do relógio seria captado na gravação.

“Jackson ensaiava com os músicos três, quatro vezes, quando a gente achava que estava nos trinques, então, gravava. Usavam um equipamento que não tinha dois canais, nem playback. Era de primeira”, diz. “Com aquela batida dele, Jackson conseguia fazer tudo. Tocava pandeiro com a mão esquerda, com a direita. Cantava com o pandeiro errado, atravessando, e não se perdia”, testemunha o maestro.

Em fevereiro de 1954, a imprensa do país inteiro, sobretudo do Sudeste, abordava a agressão da qual Jackson do Pandeiro e Almira Castilho foram vítimas numa festa na casa de Eládio de Barros Carvalho, o mesmo que hoje dá nome ao estádio do Clube Náutico Capibaribe. Jackson e Almira eram os artistas mais badalados de Pernambuco, e foram convidados para animar o evento. O ciumento Jackson não se agradou quando Guerra Holanda, jornalista da Folha da Manhã, passou a proferir gracinhas e tentar apalpar sua mulher. Ela tentava se desviar do afoito, mas era quase impossível. Foi quando o tempo fechou. Cearense, um jogador do Náutico, entrou na briga, ele e vários outros. Jackson e Almira escaparam de serem massacrados por um providencial tiro de pistola, para o alto, desferido por alguém em momento oportuno.

Os dois correram, pularam o muro para escapar do linchamento. “Quando olhei pra Jackson vi que um dos olhos estava fora do globo ocular”, contou Almira, muitos anos depois, quando voltou ao Recife no final dos anos 80.



Na cidade, a imprensa local foi relativamente discreta ao noticiar esta batalha dos Aflitos, que levou o cantor paraibano ao hospital. Era impossível não publicá-la, afinal, Jackson do Pandeiro, embora ainda contratado da Rádio Jornal, era um nome de fama nacional, tocava no país inteiro. Por outro lado, a confusão acontecera na casa de um dos mais ilustres nomes da alta sociedade pernambucana.

O Jornal do Commercio maneirou na notícia, que o Jornal Pequeno deu embutida na cobertura do cotidiano da Câmara Municipal: “Um vereador trouxe a consideração do plenário o assunto do casal Jackson do Pandeiro e Almira Castilho esbordoado na madrugada desta segunda-feira na residência do senhor Eládio Barros de Carvalho, ex-presidente do Náutico, quando se comemorava carnavalescamente a vitória das cores alvirrubras quando da conquista do tricentenário da Restauração Pernambucana. Como se não estivéssemos na época das máscaras e dos lança-perfumes”.

O Diário de Pernambuco, mesmo sem abrir um grande espaço, foi quem melhor detalhou o quiproquó, até porque o problema era do concorrente. A manchete: “Agredido a Socos e Cadeiradas Conhecido Casal de Radialistas. Quando Jackson do Pandeiro começou a discutir com o rapaz, aproximou-se outro e o chamou para a briga. Quando o cantor foi tomar satisfações, os amigos caíram de pau em cima dele e de Almira. Só a muito custo, Jackson e sua esposa conseguiram deixar o local e, bastante feridos, foram submeter-se aos curativos de urgência no Hospital de Fernandes Vieira, onde relataram o ocorrido ao investigador Severino Vicente da Silva que, por sua vez, a transmitiu ao delegado Paulo do Couto Malta, que tomou providência a respeito do inquérito regular. As contusões e escoriações sofridas por Jackson do Pandeiro estenderam-se mais ao rosto. O conhecido artista do rádio está na iminência de ficar cego, achando-se entregue aos cuidados do oculista Francisco de Assis”.

No Rio, em entrevista à Radiolândia, Jackson do Pandeiro contou sua versão do incidente: “Não tive o menor apoio, nem da rádio nem do jornal. Todos diziam que eu é que tinha provocado os acontecimentos”. Ele só livrou a cara do dono do presidente do grupo F. Pessoa de Queiroz, que se encontrava em São Paulo, para uma cirurgia de vesícula: “Se ele estivesse lá tenho certeza de que eu não seria tratado como fui”, disse Jackson.

Ele e Almira pediram a rescisão de contrato, assinado em 1953, válido até 1957, o que lhes foi negado. O casal pagou para ir embora. Com prejuízo, no qual estavam embutidos 54 mil cruzeiros ganhos com a renda de shows e de venda de discos.

Jackson do Pandeiro ainda não tinha colocado o pé no chão, nem parecia entender a fama que lhe chegara tão súbita. 54 mil cruzeiros era muito dinheiro para se entregar para alguém guardar, tendo como garantia apenas um recibo. Alcides Lopes, o diretor da rádio sabia disso, tanto que depositou a quantia num banco, que, por azar, faliu na semana seguinte. Jackson chegou a chorar durante a entrevista, e jurou não mais pôr os pés na capital pernambucana. O repórter da revista diz que ele voltará quando a saudade apertar. Ao que Jackson rebate: “Que saudade? Saudade eu tenho da minha terra, a Paraíba. Almira, sim, que é de Pernambuco. Por ela, pode ser que a gente volte. Mas por mim, nunca”.



A jura de Jackson do Pandeiro só durou um ano. Em 8 de fevereiro de 1956, ele e Almira eram anunciados como atrações principais do Carnaval no Varandão, no Palácio do Rádio, onde funcionava a PRA-8, Rádio Clube de Pernambuco, a maior concorrente da Rádio Jornal do Commercio. Era uma revista carnavalesca, da qual participaram vários artistas – de fora, e do elenco da emissora – bailarinos, e a orquestra do maestro Nelson Ferreira. O casal faria um show de despedida na noite seguinte, já divulgado como um dos maiores nomes do broadcasting nacional com sua “partenaire” Almira Castilho.

A violência que sofreu com a companheira indiretamente contribuiu para consolidar a carreira de Jackson do Pandeiro no Sudeste. Se continuasse na Rádio Jornal do Commercio talvez não conseguisse vender tantos discos. O sucesso comercial exigia que viajasse, os convites vinham de todas as partes do Brasil. Os diretores da rádio, a princípio aprovavam as idas dos seus contratados ao Sudeste porque faziam publicidade gratuita da emissora, mas começavam a se incomodar com as ausências do casal. Queriam usufruir de sua fama, porque sabiam que Jackson não demoraria a ir embora. Prevenidos, em 1953, renovaram-lhe o contrato por mais três anos.

A intenção de ir embora não se deveu apenas à briga na casa de Eládio de Barros Carvalho, e à má vontade da emissora em defendê-lo. Jackson do Pandeiro tinha crescido muito para continuar no Recife, sua saída era questão de tempo. Vitório Lattari, da gravadora Copacabana, depois de dois 78 rotações, quatro sucessos, exigia a presença do cantor no Rio, onde se tornara uma espécie de lenda. Nunca tal coisa havia acontecido antes. Um artista estourado no país inteiro, sem que o público o conhecesse. Os 78 rotações não traziam fotos, apenas o nome da gravadora.

Sua chegada ao Rio, de navio, com o compositor Genival Macedo (Almira viajaria dias depois, de avião), em abril de 1954, foi badaladíssima, conforme atesta o jornalista Nestor de Holanda, em sua coluna na revista Manchete: “Jackson do Pandeiro, cantor regional pernambucano, veio ao Rio e fechou o comércio”. Não se imagine que Nestor sofria de um ataque de bairrismo. Nestor de Holanda Cavalcanti, como o nome dá a pista, era pernambucano (de Vitória de Santo Antão).

O carioquíssimo Sérgio Porto (que assinava crônicas como Stanislaw Ponte Preta), sobrinho do crítico Lúcio Rangel, especialista em jazz e em samba, numa crônica ficcional, também na Manchete, reproduziu um debate entre um tradicionalista e um modernista. Este segundo personagem, rebatendo um elogio a Noel Rosa cita sambistas do momento: “Antonio Maria, Ary Barroso, Dorival Caymmi e Jackson do Pandeiro”, que havia gravado até aí apenas um samba, Vou Gargalhar, de Edgar Ferreira.

“Com este disco eu estourei e resolvi vir ao Rio dar uma olhada. A Almira, que nesta época fazia dupla comigo, fazendo a voz feminina em Sebastiana, resolveu vir também. Então viemos como amigos. Aqui, ela foi meu braço direito, espécie de secretária. Um dia fomos ao cinema e no cinema começou a fuzarca. Quando voltamos pro Recife, encontramos uma onda contra ela. O caso é que ela tinha um namoro com o chefe do rádio-teatro (Geraldo Lopes), e lá já estavam sabendo que a gente estava vivendo como casado. Resolvemos casar mesmo e vir de vez para o Rio. Foi bom porque no Recife não tinha mais campo pra mim. Meus discos vendiam às tulhas. Fizemos muito sucesso”, comentou Jackson, em 1972, quando voltava às páginas dos jornais do Sudeste.



Foi nesta volta ao Recife que Jackson do Pandeiro ganhou do compositor Rui de Moraes e Silva mais um sucesso, “Rosa”, lado A do 78 rotações com “Falso Toureiro” (José Gomes/Heleno Clemente), primeiro disco que gravou no Rio, ainda pela Copacabana. O bolachão subiu rapidamente nas paradas. O paraibano já não era unicamente um fenômeno, e, sim, uma estrela de primeira grandeza na constelação do rádio brasileiro.

Assim como Luiz Gonzaga, também Jackson do Pandeiro foi um garimpeiro de canções, com faro aguçado para o sucesso. O extremamente amplo espectro dos temas que cantou deve-se à quantidade de compositores que lhe forneciam músicas. Tantos que a Universal Music teve dificuldades para relançar discos originais na caixa “O Rei do Ritmo” (2016), por não conseguir o contato de parentes de compositores falecidos que assinassem a liberação das músicas. “Nos deparamos com autores desaparecidos, alguns sem herdeiros, editoras antigas que foram extintas, entre outros percalços” (do texto do encarte da caixa da Universal, assinado por Rodrigo Faour).

Na biografia “Jackson do Pandeiro – O Rei do Ritmo”, de Fernando Moura e Antônio Vicente, contabilizam-se duas centenas deles. Muitos ficaram conhecidos apenas pelo apelido. É o caso do pernambucano Maruim, apelido de Ricardo Lima Tavares, de quem se sabe muito pouco, mesmo que ele tenha sido gravado por algumas das principais vozes do forró como Jackson do Pandeiro, Luiz Gonzaga, Marinês e Genival Lacerda. Entre outras, ele compôs, para Jackson do Pandeiro, “O Scratch de Ouro”, que alude à conquista da Copa do Mundo de 1962 pela seleção brasileira, e “Imagem do Cão”, de letra inimaginável nos dias de hoje, mas que na verdade é a clássica contenda de um artista com o demônio (“Cara de macaco, dente de leão / o nego era mesmo a imagem do cão / quando ele pisava sacudia o chão / e tava na cara que o nego era o cão”).

Outro criador de canções para o paraibano foi Buco do Pandeiro, autor de “Cantiga do Sapo”, e que também forneceu composições para Trio Nordestino, ou Walter Damasceno, primeiro imitador de Jackson do Pandeiro. Segundo Genival Lacerda, Buco do Pandeiro e Pernambuco do Pandeiro são a mesma pessoa. Mas ficam as dúvidas. Pernambuco tem discos gravados, Buco nenhum. Não há composições de Pernambuco do Pandeiro gravadas por Jackson.

Poucos não cediam parceria a Jackson do Pandeiro. Era praxe da época. O cantor procurava faturar em cima do seu prestígio, que garantiria também bom faturamento para o compositor que, não raro, vendia a mesma música a mais de um intérprete. Foi assim que Luiz Gonzaga e Ari Monteiro se tornaram parceiros em “Meu Pandeiro”. Quando descobriram que tinham comprado a mesma composição, tiraram o autor/vendedor da parada e assinaram o samba que foi lançado por Cyro Monteiro.

Assim como Luiz Gonzaga, as comparações são inevitáveis. Jackson do Pandeiro burilava a composição que recebia, adequando-a a seu estilo, tornando-se quase co-autor. Os autores da citada biografia do cantor aventam que ele poderia ter assinado a maioria das músicas que gravou: “Ele sempre interferia com um cuidado de autor. O problema é que não fazia muita questão disso. Sua praia era outra”.

Mais adiante, o irmão Cícero afirma que Jackson não poucas vezes deixou que o parceiro registrasse a composição sozinho. “Os compositores que entregavam as músicas prontas, com melodia, letra e tudo, pra Jackson chamavam-se Nilvaldo Lima, Severino Ramos, João Silva, Rosil Cavalcanti e Antonio Barros. As músicas de Edgar Ferreira todas têm parte de Jackson, mas o nome dele não saía. Em Forró em Limoeiro as dicas todas são de Jackson. A música chegou um bagaço, aí meu irmão ajeitou tudinho. Não tinha ritmo”.



Certamente Jackson incrementava o que era trazido pelos autores, porém são nítidas as evidências de que entrava na maioria das parcerias pelo alinhave que empreendia nas canções. Isto fica patente pela pequeníssima quantidade de composições que assina sozinho. No livro “A Música de Jackson do Pandeiro”, de Inaldo Soares, encontram-se apenas seis músicas, entre 161, que ostentam sua assinatura, quer dizer, ele assinando como Jackson do Pandeiro.

Muitas vezes o compositor ia até ele. Aconteceu assim, por exemplo, com Juarez Santiago, pernambucano de São João, mas que viveu até o final da vida em Caruaru. Em 1970, Santiago, que já tinha sido gravado por Jacinto Silva e o Coroné Ludugero, foi aconselhado a ir para Rio, tentar a sorte. Levava pouco dinheiro no bolso, e muita música inédita na cabeça. Tinha um destino certo na cidade, a Praça Tiradentes, onde, nos bares das cercanias, artistas, músicos e autores se encontravam para bater papo, tomar umas e fazer negócio. Jackson do Pandeiro costumava bater ponto na praça: “Levei o dinheiro certinho, para o hotel, comida e a viagem de volta. Cheguei num dia, no outro fui no ponto dos artistas, na Praça Tiradentes. Um cara lá me disse que Jackson não atendia ninguém ali. Vamos ver se ele não atende”, contou o compositor, em entrevista ao JC, em Caruaru, no Alto do Moura, em 2001 (ele faleceu em 2011).

Jackson o atendeu bem, mas não quis saber de ouvir música. Já estava com o repertório do próximo LP selecionado: “Eu me apresentei e falei que tinha umas músicas para mostrar. Aí ele colocou a mão no meu ombro e disse: ‘Ô corno pequeno, tu é doido mesmo, vamos até ali, almoçar e você toma uma’, e me levou a um restaurante”. Antes de se despedir ele deu um cartão a Juarez e pediu que dentro de três dias ele fosse em sua casa.

Juarez Santiago foi com o cantor Azulão, que tinha acabado de chegar ao Rio. Jackson recebeu os dois, já foi dizendo que ouviria as músicas mas que, mesmo gostando, só gravaria no ano seguinte. A primeira que mostrou foi “Morena Bela”. Depois de ouvir, Jackson olhou para o sanfoneiro Severo e perguntou o que ele achava”. Severo disse que no repertório do disco novo não tinha nenhuma música melhor do que aquela. Jackson pediu para Juarez cantar outra, e aí ele, entusiasmado, cantou: “Madalena meu amor, não faça assim / Ô Madalena meu amor, volte pra mim”. Jackson interrompeu novamente. “Ô corno pequeno, pelo amor de Deus, você quer me matar?”. Resumindo. Jackson do Pandeiro mexeu no repertório já pronto e incluiu as duas composições de Juarez Santiago, que seria gravado por Luiz Gonzaga, Genival Lacerda e o Trio Nordestino, entre muitos outros. “Morena Bela” (parceria com Onildo Almeida) abre o LP O Dono do Forró, de 1971.

Juarez contou que quando Jackson foi gravá-lo pela terceira vez, na música “Aproveita Mais Sua Vida”, pediu-lhe a parceria: “Corno pequeno, bota eu aí nessa. Tu já botasse muita gente na tua música, agora é a minha vez”. O compositor, que estava ansioso para gravar mais uma com Jackson, deu-lhe a co-autoria.



Jackson e Almira deixaram Copacabana em 1958, ano em que a música brasileira sofreu mudanças radicais. João Gilberto lançou, pela Odeon, “Chega de Saudade”, de Tom e Vinicius, com a interpretação causando ainda mais impacto do que quando Jackson do Pandeiro lançou “Sebastiana”, cinco anos antes. Na mesma época, pela mesma gravadora, Cely Campello estrearia em disco com o irmão Tony. Até então o rock and roll era tratado como mais um modismo circunstancial, e a adolescente, cândida e suave, de Taubaté, consolidou o gênero no Brasil. Ambos, João e Celly eram o novo no mercado da música. A trilha que abriram foi alargada por compositores e intérpretes. Com Juscelino o país entrava na modernidade, e nela não cabiam sambas-canções doloridos, ou música calcada em regionalismos. Ainda na primeira metade da década de 60, surgiriam a sigla MPB e o rock and roll se abrasileiraria com o rótulo de iê-iê-iê.

O 78 rotações continuava forte no Brasil, o compacto ainda era novidade, e LP ainda fora do alcance da maioria dos consumidores de discos do país. Jackson lançaria oito 78 rpm pela Columbia. O sucesso continuava, mas dentro de um padrão mais modesto, longe da fase de Jackson do Pandeiro na Copacabana, quando todos seus discos foram diretos para o topo das paradas. O cantor passaria um período curto na Columbia, pouco menos de dois anos, durante os quais a música mais marcante que gravou foi a consagrada “Chiclete com Banana”. Em 1967, ano em que a Jovem Guarda chegou ao ápice, o LP de estúdio de Jackson tem o emblemático título de “A Braza do Norte” (com “z” mesmo), uma óbvia referência ao “é uma brasa, mora”, bordão de Roberto Carlos disseminado no programa na TV Record.

Pela primeira vez desde que começou a gravar, Jackson do Pandeiro faz um hiato na carreira fonográfica. Só gravaria disco de estúdio novamente em 1970, “Aqui Tô Eu”, o apropriado nome do LP. Continuaria gravando um LP por ano, com uma parada entre 1978 e 1981, quando lançou o disco que fechou sua discografia “Isso É Que É Forró”.

Sua carreira foi tão inusitada quanto seu surgimento no cenário musical. Ele começou como um nome nacional, mas por volta de 1968 tornou-se um artista regional, com espaço nos forrós do Rio e São Paulo. Mudou-se para a Zona a Norte carioca, onde viveu até o final da vida. Neste mesmo ano sofreu um acidente enquanto dirigia sua Rural Ford, que o deixou com os dois braços quebrados, e com sequelas. Passaria a ter dificuldades com o pandeiro. Mas o talento no instrumento era tanto, que foi com ele que enfrentou as vacas magras, tornando-se um dos músicos mais requisitados para gravações em estúdio.



Vinte anos depois do seu surgimento espetacular, Jackson do Pandeiro voltou à imprensa impulsionado pela gravação de Chiclete com Banana por Gilberto Gil, no álbum Expresso 2222. A música voltou a tocar no rádio e Jackson voltou a ser procurado pelos jornalistas e produtores de shows: “Tem muita gente por aí que pensa que eu morri. Outro dia fui fazer um show em Minas, teve um rapaz que perguntou: Ué Jackson você ainda tá aí? Eu disse, sei disso não. Eu tô aí, gravo todo ano. Faço LP, faço Carnaval, faço São João. Agora, quede que tocam os discos? Tocam nada. Então não tem condição de eu aparecer. Passei 12 anos que nem lhe conto. 12 anos da moléstia. Só não fui passar o chapéu no Tabuleiro da Baiana porque eu tenho vergonha na cara”.

“Voltou também à Zona Sul carioca, apresentando-se no projeto Noitada de Samba, no prestigiado Teatro Opinião”, noticiava o Globo no início de 1973. Jackson já havia sido gravado por Gal Costa (Sebastiana, no LP de 1969), mas sem atrair atenção para o cantor.

“Às vezes até me esqueço como cantar porque não tem lugar para trabalhar, né? É difícil até viajar para o interior, não tem contrato para ninguém. Tudo isso por causa da invasão da música estrangeira. Meu conjunto é formado por quatro paraibanos e uma baiana, Neusa, minha mulher. Todo mundo lutando em cima disso, só cantando Brasil mesmo. A gente passa fome, passa necessidade, ninguém muda. Me chamaram para gravar cha-cha-cha. Eu disse não. Canto é baião, samba, frevo, coco, e ai” (entrevista em 22 de dezembro de 1972).

Com a gravação por Gilberto Gil de “Cantiga do Samba” (no LP Temporada de Verão, de 1974) e “Chiclete com Banana”, em 1972, Jackson voltou à mídia e foi descoberto por uma geração nascida nos anos 50. Tornou-se cult, cantando tanto para os imigrantes nordestinos que vieram em busca de melhores dias nas duas maiores cidades do país, quanto para universitários e intelectuais, em redutos como o citado Teatro Opinião. Quando o interesse esmorecia, chegaram Alceu Valença e Geraldo Azevedo, para defender com ele “Papagaio do Futuro”, na fase nacional do Festival Internacional da Canção. Alceu faria o projeto Pixinguinha com Jackson (o show, na íntegra, circula na internet, com qualidade sonora muito boa).

O cantor trabalhou até o fim da vida. Em julho de 1982, fez shows em Santa Cruz do Capibaribe (onde se sentiu mal, um princípio de infarto), Caruaru, e encerrou a carreira com uma apresentação em Brasília. Sofria de diabetes, diagnosticada em meados dos anos 60. Morreria em consequência da doença crônica e mal-cuidada. Morte que teve pouco espaço na imprensa, e nenhuma comoção popular.

Passou mal quando se anunciava o embarque do seu vôo, de Brasília para o Rio. Foi internado no dia 4 de julho, um domingo, na UTI da Casa de Saúde Santa Lúcia. Na quarta-feira, o Correio Brasilense noticiava o internamento. O médico Nery João atribuiu o internamento a “descompensação da glicose”. Com o título curioso de J-K Sou Brasileiro JK – Sou do Pandeiro, em 10 de julho, o mesmo jornal alertava para o estado grave do cantor, que morreria naquele dia.

A próxima matéria sobre Jackson noticiava seu sepultamento no Cemitério do Caju, no Rio. A causa mortis: um edema pulmonar. Oswaldo Oliveira, Carmélia Alves e Azulão eram alguns dos artistas que estavam no velório. Jackson estava com 62 anos. Seus restos mortais foram trasladados para sua cidade natal, Alagoa Grande em 2009, e estão num mausoléu no Memorial Jackson do Pandeiro.