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sábado, dezembro 28, 2019

A tiranaboia de Bob Nelson e Bazam



O inesquecível Bazam (ao lado do filho Antônio), 
que resolveu virar encantado na manhã de ontem

O cantor e compositor Nelson Roberto Perez (aka “Bob Nelson”) se tornou conhecido por misturar música caipira com o ritmo country e ficou famoso pela interpretação da canção “Oh, Susana!”.

Nascido em Campinas (SP), em 12 de outubro de 1918, Bob Nelson era o sexto dos oito filhos de José Pérez, espanhol, ferroviário da Mogiana e dono do Hotel Dalva, e de D. Floresmina.

Ele morreu no Rio de Janeiro, em agosto de 2009, aos 90 anos, após sofrer uma parada cardíaca.

O nosso Bob Nelson baré (batizado Roberto Borges Cardoso) nasceu em Santarém (PA), em 15 de setembro de 1946, e faleceu em Manaus, em maio de 2006, aos 60 anos, vítima de diabetes.

Ele era irmão do Alberto Gordo, supervisor de Produção na Philco da Amazônia e ex-diretor do Sindicato dos Metalúrgicos, no período 1984-1987. O sangue bom Alberto Gordo também faleceu há alguns anos, vítima de diabetes.

Dotado de uma voz talhada para o canto yodell (aquele canto com vibrato do tipo “tiroleeiiiite”), o Bob Nelson baré começou se apresentando em shows de calouros pelos quatro cantos da cidade, com um repertório inteiramente calcado no Bob Nelson original.

No final dos anos 60, ele já era figurinha carimbada no Bar do Aristides, onde, invariavelmente, começava a detonar uma garrafa de Praianinha cantando “Vaqueiro do Arizona, desordeiro e beberrão / Corria em seu cavalo pela noite no sertão / No céu, porém, a noite ficou rubra num clarão / E viu passar num fogaréu um rebanho no céu / Y-pi-a-ê, y-pi-a-ô”.

A gurizada viciada em faroeste, eu incluso, ia ao delírio.

Na sequência, Bob Nelson emendava a sua canção favorita, que eu também não consigo ouvir até hoje sem me arrepiar: “Quando fui ao Alabama e toquei meu violão / Encontrei uma menina num cavalo alazão / Ela me pediu sorrindo pra tocar uma canção / Que falasse do Alabama de um banjo e um violão / Oh! Suzana não chores por mim / Pois eu volto pro Alabama pra tocar meu banjo assim...”.

E aí ele mandava o “tiroleeiiite” por quase cinco minutos, incendiando o cabaré.

Na verdade, Bob Nelson colocava o vibrato yodell em qualquer música que lhe desse na telha – e seus acompanhantes no violão que se virassem.

Por exemplo, ele começava a cantar, batucando numa caixinha de fósforo: “Na minha fazenda tem um boi / Esse boi se chama Barnabé / Sabe moço ele anda se babando / Pela minha linda vaca Salomé”.

Aí, quando todo mundo esperava o segundo verso, ele enfiava as variações inimagináveis a partir do “tiroleeiiite”. Uma zorra.

Depois que descobriu sua alma gêmea (João Carlos Weil, aka “Bazam”, irmão do Antídio Weil), Bob Nelson não parou mais de agitar.

Como se fosse a dupla Pelé-Coutinho, Bazam e Bob Nelson, numa tabelinha perfeita, realizaram milhares de aprontos na Cachoeirinha e adjacências para levantar o leite das crianças.

Mas tudo na base do lero-lero, sem violência, porque malandro é malandro e mané é mané.

Um dos mais brilhantes golpes da dupla era realizado exatamente na entrada da Vila Mamão, próximo da casa de bilhares São Francisco de Assis, sempre nos dias de sábado, no início da noite, quando a banda de Fuzileiros Navais se apresentava em frente do Palácio Rodoviário.

Na época, havia um único caminho entre a Vila Mamão e o muro do Sanatório Adriano Jorge, uma espécie de beco mal iluminado que terminava numa imensa jaqueira.

De lá em diante, dezenas de becos mal iluminados desnorteavam qualquer um que se aventurasse por aquelas plagas sem uma bússola decente.

Os meganhas só entravam ali com proteção policial.

O golpe, simples e funcional, consistia em alardear que Bazam havia aprisionado uma temida taturana também conhecida como tiranaboia.

A taturana estava presa embaixo de um chapéu, sobre um jornal, que os dois haviam acabado de estender no meio na rua.

Claro que não havia nada sob o chapéu de palha estilo Panamá, só que ninguém sabia.

As pessoas que se dirigiam para assistir ao concerto dos fuzileiros navais olhavam para a presepada sem esconder a curiosidade.

Alguns ficavam no meio do caminho para conferir a perigosíssima tiranaboia.

Também chamada de jequitirana, jitirana, taturana, cobra-de-asa, cobra-do-ar, cobra-voadora, cobra-cigarra, gafanhoto-cobra, jaciara e serpente-voadora, o verdadeiro nome da taturana é jaquinaraboia (do tupi iakyrána, “cigarra”, mboia, “cobra”).

Trata-se de um nome comum de vários insetos grandes (alguns chegam a medir 10 cm) e semelhantes a cigarras, que possuem um enorme ferrão no abdome utilizado para perfurar as plantas de onde retiram a seiva com a qual se alimentam.

A crendice popular afirma serem venenosos (“se bate numa árvore, esta seca, se bate numa pessoa, esta morre”), mas, na verdade, são insetos absolutamente inofensivos, que se alimentam do néctar das frutas e da seiva dos vegetais.

Nos anos 60, ninguém sabia disso.

Com sua voz de menestrel, Bob Nelson entrava macio como colher de alumínio em mamão maduro:

– Este bichinho chamado tiranaboia ou taturana, que está preso debaixo desse chapéu, é um dos mais temidos dentro da floresta amazônica. Segundo os mateiros, a tiranaboia só pode pousar sobre uma espécie de árvore. Caso pouse em alguma outra, ela automaticamente mata a árvore. Eu vi uma seringueira que morreu. Ela quebrou exatamente aonde a tiranaboia pousou, no meio do caule. Para a raça humana, a taturana também é muito perigosa. Caso ela trisque na pessoa, diz que a morte é certa.

Começava a juntar gente para ver a presepada.

Bazam fingia uma certa impaciência:

– Eu vou já soltar essa taturana, que ela está com muita fome! – dizia, enquanto se agachava em direção ao chapéu.

Bob Nelson o segurava pelo braço e o repreendia, fingindo nervosismo:

– Não faça isso, meu irmão. Tem muita criança no pedaço. Tu te lembras da merda que deu ontem lá na Matinha? Teve gente que saiu machucada durante a correria... Essa tua taturana é o cão chupando manga, ainda mais quando está desse jeito, morta de fome...

A curiosidade aumentava. O zum zum zum e o diz-que-diz-que iam atraindo mais gente.

Daqui a pouco, os dois já estavam cercados por dezenas de pessoas, implorando para ver a taturana.

Bob Nelson fingia uma exasperação calculada:

– Ô, meu irmão, isso aqui não é circo não! Essa tiranaboia é um terror! A gente vai precisar de uma graninha para cuidar dos mortos e feridos porque depois que ela sair de baixo do chapéu isso aqui vai se transformar no maior pandemônio... Ontem à noite, lá em Educandos, umas quinze pessoas foram parar no Samdu... Essa tiranaboia é perigosa! É muito perigosa!

Algumas pessoas contratadas previamente por eles começavam a colocar notas de um Cabral ao lado do chapéu.

Os incautos curiosos pegavam corda e começavam a depositar suas cédulas de Princesa Isabel, Dom Pedro II, Tiradentes e, em dia de fartura, até de Santos Dumont.

Todos querendo ver, ao vivo e em cores, uma autêntica tiranaboia.

Bob Nelson continuava a pregação, deixando a plateia cada vez mais nervosa e curiosa.

Quando o monte de grana atingia um valor considerado, Bob Nelson anunciava o grand finale:

– É agora que a jiripoca vai piar! – avisava, enquanto recolhia a grana depositada na folha de jornal. – Solta a taturana, meu irmão, que eu quero ver o circo pegar fogo!

Automaticamente, Bazam se ajoelhava, colocava rapidamente o chapéu na cabeça, levantava como se fosse impulsionado por molas, chutava a folha de jornal na direção da galera (a sincronia era perfeita, nem Charles Chaplin ousaria imitar) e berrava:

– Pega eles, taturana maldita! Mata a tua fome tirana, taturana miserável!

Por causa do susto, as pessoas querendo fugir da direção do chute do Bazam se chocavam uma com as outras, se machucavam e já achavam que aquilo era fruto da taturana em ação.

Em questão de segundos havia gente berrando, gente chorando, gente caindo no chão, gente sendo pisoteada, gente falando palavrões, cachorros latindo e mordendo gente, um inferno.

Enquanto o pandemônio se instalava, os dois aproveitavam para fugir correndo pelo beco da Vila Mamão até desaparecer no sem-número de becos existentes depois da jaqueira.

Na semana seguinte, repetiriam a façanha. Lá ou em outro lugar.

terça-feira, dezembro 24, 2019

A saga do Mestre Caramuru (Final)



Careca Selvagem, Caramuru Souza e Juarezinho Tavares

Em 1966, durante uma visita a Santarém, Caramuru encontrou novamente o jogador Leopoldo, que o convidou para jogar em um novo time da cidade, o Conser Clube, criado exclusivamente para desbancar os grandes clubes de Santarém no campeonato da 1ª divisão.

Os cartolas do novo clube contrataram uma verdadeira seleção: Aldo, Leopoldo, Cojoba, Pedro Olaia, Tarubá, Leopoldino, Joseli, Abdala e Caramuru, entre outros.

No primeiro turno do campeonato, o time foi a grande sensação, aplicando sonoras goleadas em todos os adversários.

Esbanjando talento e categoria, Caramuru e Abdala davam as ordens no meio de campo.

O Conser era um time invejável, com uma defesa segura, um meio de campo impecável e um ataque arrasador.

No segundo turno, entretanto, o time novato começou a ser boicotado pelos juízes nas partidas contra os chamados “clubes de tradição” (São Raimundo, São Francisco, América, etc.), sendo “tungado” desavergonhadamente na maior cara dura.

Irritados com a escandalosa roubalheira, denunciada diariamente pela imprensa falada e escrita, os cartolas do Conser Clube resolveram radicalizar e abandonaram a competição na metade do 2º turno.

De repente, da noite para o dia, vários craques ficaram desempregados.

Caramuru era um deles.

Desgostoso com aquela série de acontecimentos, ele resolveu abandonar o futebol e se mandou de Santarém.

O cartola Everaldo Martins foi buscar o craque na comunidade da Prainha e o levou para o São Raimundo.

Começava assim a sua nova trajetória.

O time alvinegro estava fazendo uma série de amistosos e Caramuru foi sendo testado nesses jogos.

O volante rapidamente se entrosou com seus novos companheiros.

Sua estreia foi contra o Sport Clube Bahia, de Sapatão, Baiaco, Romero e companhia.

O São Raimundo fez uma boa apresentação e começou a nascer o grande destaque no meio de campo, que ficaria marcado para sempre na memória de sua torcida: Caramuru e Amiraldo.

A equipe que enfrentou o clube baiano era formada por Genésio, Pedro Nazaré, Inacinho, Ricardo e Javali; Caramuru e Amiraldo; Manoel Maria, Mazinho, Nazareno e Espadim.

O volante e o meia armador deixaram o campo aplaudidos de pé pela torcida.

Na partida seguinte, foi a vez do São Raimundo enfrentar o São Cristóvão, do Rio de Janeiro.

Outro espetáculo de Caramuru no meio de campo alvinegro.

Os jogadores cariocas ficaram de boca aberta ao ver a beleza do grande futebol interiorano, com tanto atleta bom de bola (o ponta direita Manuel Maria chegaria ao Santos e depois à seleção brasileira).

Para o craque Caramuru, aquele foi um período de ouro, já que ele pode mostrar todo o seu grande talento enfrentando vários clubes do Sul do país e jogadores de alta categoria.

Para completar a satisfação do craque, apareceu outro adversário do Rio de Janeiro, o América, de Edu e Antunes, ambos irmãos de Zico.

Foi outra oportunidade de jogar com muita garra e mostrar novamente o seu talento.

Finalmente, o São Raimundo enfrentou o Flamengo, que trouxe em sua bagagem vários craques de renome como Ditão, Carlinhos, Nelsinho, Almir Pernambuquinho e Fio Maravilha.

– Foi uma partida inesquecível! – recorda Caramuru. – Perdemos, mas saímos de campo de cabeça erguida porque demostramos que em Santarém também se jogava bola.

Como aquele foi um jogo especial para Caramuru, ele relembra as duas equipes que se confrontaram no estádio Elinaldo Barbosa, superlotado de torcedores.

O São Raimundo formou com Genésio, Pedro Nazaré, Inacinho, Ricardo e Javali; Caramuru e Amiraldo; Manoel Maria, Mazinho, Nazareno e Pedro Olaia.

O time do Flamengo formou com Marco Aurélio, Luiz Luz, Ditão, Clair e Dione; Carlinhos e Nelsinho; Carlinhos II, Fio Maravilha, Almir Pernambuquinho e Antunes.



No mesmo ano de 1966, Caramuru ganhou o seu primeiro título pelo São Raimundo.

Depois de o América ter dado um show de bola em cima dos dois grandes, Leão Azul (São Francisco) e Pantera Negra (São Raimundo), e ter conquistado o campeonato de 1965, o São Raimundo voltou a ser campeão em cima de seu maior adversário, o São Francisco, com o futebol espetacular de Caramuru e de toda a sua equipe.

O Leão Azul tinha um bom time, mas não resistiu ao domínio dos alvinegros.

Uma das grandes armas do Leão já tinha ido embora, o centroavante Afonso, monte alegrense da gema (ele foi jogar no Clube do Remo, em Belém, e depois foi bicampeão do futebol amazonense pelo Fast Club, fazendo dupla com Edson Piola).

Mesmo assim não era fácil ganhar uma decisão contra o Leão Azul. Mas o Pantera Negra levou a melhor e foi campeão em 1966.

O São Raimundo tinha um excelente plantel: Genésio e Surdão (goleiros), Pedro Nazaré, Piraca, Inacinho, Ricardo Santos, Javali, Chico Cutite, Caramuru, Abdala, Amiraldo, Arinos, Manoel Maria, Caveirinha, Escapulário, Nazareno, Mazinho, Pedro Olaia e Espadim, entre outros.

Como perder com um timaço desse?

O São Francisco formava com Carlito, Guajará, Pedrinho Araújo, Jô e Acari; Pão Doce e Chico Imbiriba; Cabinha, Edvar, Bimba e Navarrinho.

Esta decisão aconteceu quando o futebol santareno era de fato respeitado pelo nível de qualidade de seus talentosos jogadores.

Caramuru ainda ficou jogando no São Raimundo até 1968. Depois retornou para Fordlândia.

Em virtude de metade de sua família já estar morando em Manaus, o craque retornou para a capital amazonense, onde foi trabalhar na Universidade Federal do Amazonas.

Nas horas vagas, a sua pelada era sagrada.

Caramuru fixou residência em Manaus, no bairro de São Francisco, mas, sempre que pode, viaja de férias para Fordlândia, sua terra natal, e para Santarém, cidade que o recebeu de braços abertos e que até hoje lhe devota um grande carinho.

Ele continua torcendo de longe pelo São Raimundo e tem lembranças inesquecíveis do saudoso Everaldo Martins, o cartola alvinegro responsável pela sua carreira no clube.

Casado com dona Terezinha, Caramuru vive em grande harmonia com seus filhos, todos casados e “peladeiros” contumazes: Marcos, Paulo, Zanata e Elton.

O gente-fina Marcos é presidente vitalício do Santos, um dos grandes times amadores de São Francisco.

Paulo Caramuru, engenheiro mecânico da Eletronorte, além de peladeiro é um partideiro de responsa.

Elton, o mais tranquilo dos quatro, é dono de uma distribuidora de bebidas e também se defende bem em um partido alto.

Vascaíno sadio, Zanata é a ovelha negra em uma família de flamenguistas doentes.

Ele foi batizado com o nome do craque flamenguista, mas quando começou a se interessar por futebol o ex-craque flamenguista já jogava no Vasco.

Zanata, claro, trocou de camisa.

Acontece.

A saga do Mestre Caramuru (Parte 1)



Pai Simão e Caramuru Souza

Ele tinha um toque de bola extremamente refinado e, por isso mesmo, detestava jogador que dava “bicuda” ou “isolava” a bola nas arquibancadas.

Era um volante moderno, nos anos 60, que atacava e defendia com igual desenvoltura.

Nasceu na terra que exportou vários craques para Santarém: Fordlândia, a cidade industrial que o magnata Henry Ford construiu no coração da Amazônia.

Em Santarém, ele jogou no Coser Clube, São Francisco e São Raimundo, onde foi campeão, e fez, juntamente com Amiraldo, um dos melhores meios-de-campo do futebol do Baixo-Amazonas.

Seu nome: Caramuru Borges de Souza.

Filho do comerciante Miguel Guimarães, um dos mais ilustres membros da colônia santarena residente em Manaus, Caramuru veio morar na capital amazonense quando ainda era criança.

Nos finais de semana, Pai Simão costumava apanhar o comerciante Miguel Guimarães em sua casa para passearem de carro pela cidade.

Meu pai, que possuía um táxi Aero Willys, conhecia o velho Miguel desde Santarém e mantiveram a mesma amizade em Manaus.

O jovem Caramuru começou a estudar no Colégio Dom Bosco e a disputar alegres peladas no Estádio General Osório do 27º BC (“Batalhão de Caçadores”).

Sua grande habilidade no trato da bola começou a despertar o interesse de muitos “olheiros”.

A primeira oportunidade aconteceu quando o São Lourenço, time que participava do campeonato amador da 2ª divisão, o convidou para defender as suas cores.

Caramuru tinha apenas 16 anos.

Depois de mostrar seu fino trato com a bola, sua fama estendeu-se aos clubes da 1ª divisão e o treinador do Auto Esporte assediou a família do garoto para que ele pudesse jogar no campeonato amazonense.

Dirigente e treinador do time, Cláudio Coelho foi o responsável pela ida do craque para o Auto Esporte, depois de convencê-lo a fazer o famoso “teste de campo” entre os reservas do time.

Bastou o primeiro treino para Caramuru ser aprovado logo de primeira, graças ao seu vistoso futebol.

Depois de alguns treinamentos, ele ganhou a posição de titular no time principal para fazer sua estreia contra um fortíssimo adversário, o tradicional Clube do Remo (PA), que trazia na sua bagagem jogadores como Smith, Socó, Mangaba, Casemiro, Zé Ferreira, Kiba, Sessenta e Dudinha, este oriundo do time São Francisco, de Santarém.

O adolescente Caramuru estreou no Auto Esporte com uma sensacional vitória de 3 a 0 contra o Leão Azul do Baenão.

Os heróis desta conquista do time baré, que ainda jogavam no esquema 2-3-5, foram Vicente, Guarda e Gatinho; Juarez, Gilberto e Joia; Silvio, Osmar, Mario Gordinho, Caramuru e Manoel.

Caramuru sagrou-se bicampeão do futebol amazonense nos anos de 1956 e 1959, e ficou jogando em Manaus até 1962.

Durante uma viagem de férias para Fordlândia, Caramuru encontrou a bordo do barco regional em que viajava o craque Leopoldo, que o convidou para tentar a sorte em um dos times da Princesinha do Tapajós.

A fama do craque bom de bola se espalhou em Santarém e a repercussão chegou até aos ouvidos de Antonio Turco, um dos dirigentes do São Francisco, que acreditou em Leopoldo e pediu o aval do então presidente do clube, Francisco Coimbra, para contratar o craque para o lugar de Mindó, que já estava pendurando as chuteiras.

Tudo isso ocorreu no ano de 1963. Caramuru foi recebido com festa pelo grande elenco do São Francisco: Gato, Tarol, Jô, Pedrinho Araújo, Edvar, Tovica, Afonso, Aluísio, Beleza Preta, Mindó, Coruja, Joseli e Leopoldo.

O time era treinado pelo famoso Raik e no comando fora do campo estavam Chico Coimbra, Dídimo Souza, Osmar Simões, Machadinho e Otaviano Matos.

Caramuru jogou algumas partidas amistosas pelo São Francisco.

Contra o Rio Negro, de Manaus, o time venceu por 4 a 0. Foi derrotado pelo Clube do Remo, de Belém, por 4 a 3. Empatou em 1 a 1 com o Moto Clube e perdeu para o Maranhão Atlético Clube por 4 a 2, ambos de São Luís.

O jogador, entretanto, não se ambientou no time azulino e se mandou para Fordlândia, onde foi por conta de um chamado da família para trabalhar na Petrobrás.

Acabou ficando três anos na empresa.

Maristóteles e os “perus” de dominó



Chico Costa e Simão Pessoa no Bar do Jacó

Abril de 1982. Um dos mais hábeis jogadores de dominó da Cachoeirinha, o comerciante Maristóteles, pai do Neto e do Totinha, tinha um prazer quase sádico em azucrinar os “perus” que ficavam palpitando durante as dramáticas partidas de dominó disputadas no Top Bar.

O engenheiro Chico Costa era um dos que mais sofriam em suas mãos.

De repente, com a partida quase no fim, Maristóteles perguntava o placar.

Quase sempre, sua dupla estava vencendo por uma diferença de mais de 50 pontos.

Ele, então, consultava as três pedras que tinha na mão, observava o jogo formado na mesa, fazia uma série de cálculos mentais e começava a falar para si mesmo, bem baixinho, mas audível o suficiente para o “peru” escutar, enquanto se preparava para sentar uma pedra:

– É... Não tem outro jeito!... Só dá pra fazer isso mesmo!... Vamos lá!... Seja o que Deus quiser!...

Postado em suas costas, vendo suas pedras e fazendo a mesma série de cálculos mentais, o “peru” começava a ficar nervoso.

E o nervosismo se transformava em dor, raiva, exasperação, desespero, quando Maristóteles, de pura sacanagem, sentava uma pedra que não tinha nada a ver com o desenrolar clássico da partida até mesmo na visão estreita de um leigo.

Numa espécie de uivo dolorido saindo do mais recôndito de suas entranhas, o “peru” lhe tomava as pedras da mão e gritava:

– Cavalo! Não era pra jogar essa aí não! Era pra jogar aqui nessa ponta, com essa pedra aqui, dando 50, mais 50 e dominó de 20! Cavalo! Invertebrado! Desgraçado! Filho da puta! Burro!

Maristóteles só faltava perder o fôlego de tanto rir da fúria, do desespero e das imprecações do sujeito.

O inigualável Pagode do Chibata



Março de 1986. Cada vez mais disposto a emular os bicheiros cariocas, Ivan Chibata resolveu montar um grupo de pagode.

Ele contratou o violonista Chiquinho da Baiana, um veterano frequentador do Bar Academia do Galo, no Boulevard Amazonas, conhecido reduto de chorões, pagodeiros e sambistas da cidade, para ser seu acompanhante em tempo integral.

Exímio instrumentista, Chiquinho da Baiana tinha quase 70 anos e estava na cara que não teria pique para acompanhar um bicheiro movido a glucoenergan na veia.

Mas ele topou, talvez porque estivesse precisando de um “agrado”.

Ivan Chibata comprou os demais instrumentos – atabaque, tantã, pandeiro, cavaquinho, banjo, agogô, frigideira, cuíca, tamborim – e, em companhia de Chiquinho da Baiana, começou a circular pelos botecos.

No início eram apenas eles dois (Ivan tocava um atabaque razoável e era metido a cantor), mas se algum presente quisesse participar da roda de pagode bastava pegar um dos instrumentos no porta-malas do carro e começar a brincar.

O Pagode do Chibata começava, invariavelmente, com uma música do João Nogueira: “Clara, / Abre o pano do passado, / Tira a preta do cerrado / Põe rei congo no congá / Anda / Canta um samba verdadeiro, / Faz o que mandou o mineiro / Ô mineira / Samba que samba no bole que bole / Ôi morena do balaio mole / Se embala do som dos tantãs / Quebra no balacochê do cavaco / E rebola no balacobaco / Se embola dos balagandãs / Mexe no meio que eu sambo do lado / Vem naquele bamboleado / Que eu também sou bam, bam, bam / Vai cai no samba cai / E o samba vai até de manhã / Vai cai no samba cai / E o samba vai até de manhã / Ô saravá mineira guerreira / Que é filha de Ogum com Iansã”.

Além de João Nogueira, o repertório tinha Jorge Aragão, Luiz Carlos da Vila, Almir Guineto, Candeia, Monarco, Dona Ivone Lara, Walter Alfaiate, Martinho da Vila, Fundo de Quintal e por aí afora.

O circuito dos bares era bem conhecido.

Ivan começava no Bar do Aristides, por volta das 16h de sábado.

Depois de três horas de agito, ele recolhia os instrumentos e o violonista e ia pro Bar da Alzira, depois pro Bar da Dolores, depois pro Bar da Loura, depois pro Bar do Russo, depois pro Bar do Camaleão, e só parava a cantoria quando o dia estivesse amanhecendo.

O dia de segunda-feira, bem entendido.

O bicheiro também tinha outras bossas.

Era comum, no meio da roda de pagode, Ivan Chibata pedir um tempo e anunciar:

– Agora o meu atabaque vai soar igual caixinha de guerra!

Aí, retirava do pescoço um cordão de ouro de dois dedos de grossura, colocava em cima do couro do atabaque, e começava a bater nas laterais do instrumento.

O som do pesado cordão sobre o couro do atabaque imitava realmente o som de uma caixinha de guerra.

O mulherio que assistia essa presepada só faltava ter orgasmo.

Para entrar no carro do Ivan Chibata e acompanhar o bicheiro exibicionista e podre de rico pelo resto da noite era conta de multiplicar.

Uma madrugada, quando já estava no Bar do Camaleão, Ivan Chibata percebeu que o diamante de 25 quilates de seu imponente anel de ouro havia caído. Só restava o buraco da pedra no anel.

Ele recolheu os instrumentos e, junto com os acompanhantes, empreendeu uma verdadeira via sacra pelos bares aonde já havia tocado antes.

Era hilariante ver aquele monte de gente agachado entre as mesas procurando pelo diamante fujão. A pedra foi recuperada no Bar do Aristides.

O sujeito que encontrou o diamante foi agraciado na mesma hora com R$ 5 mil em espécie.

Segundo Ivan Chibata, a recompensa equivalia a 1% do valor real do brinquedo. Era um exagerado.

No sexto mês de existência do inigualável Pagode do Chibata, o violonista Chiquinho da Baiana já havia se transformado em um verdadeiro zumbi.

Ele aproveitava cada intervalo musical para tirar um cochilo, o que deixava o bicheiro puto da vida.

– Vamos trabalhar, meu compadre, vamos trabalhar! – berrava Ivan Chibata, vibrando o atabaque com violência. – A gente ainda tem mais três apresentações pra fazer. Se o senhor continuar dormindo desse jeito não vai receber um tostão...

Chiquinho da Baiana despertava assustado, se recompunha e recomeçava a dedilhar o violão de sete cordas.

Três meses depois, o violonista pediu arrego:

– Olhe, seu Ivan, eu gosto muito do senhor e preciso muito desse emprego, mas não tenho mais saúde para ficar tocando 36 horas seguidas, só se alimentando de cerveja Brahma, cigarro Carlton e isca de queijo coalho2...

A revelação foi um choque. Até então Ivan Chibata não sabia que as pessoas precisavam ingerir carboidratos, gorduras e proteínas para não morrer de fome.

O Pagode do Chibata acabou na mesma hora.

A Lista de Schindler de Edward Favela



O escritor Jones Cunha no Castanhal do Jutica, em Tefé

Era quase uma tradição de fim de ano. No começo da tarde do dia 31 de dezembro, o motorista Edward Favela, armado com uma peixeira de sete polegadas na cintura, se aboletava solitariamente em uma das mesas do Bar do Aristides, na Cachoeirinha, pedia uma “meiota” de cachaça e começava a consultar uma lista.

Naquela lista estavam os nomes dos desafetos em que ele iria começar a desfechar uma peixeirada no bucho, de preferência para matar, a partir do dia seguinte, 1º de janeiro, dia consagrado à paz entre os homens.

Quem tivesse feito alguma desfeita ao motorista no ano que se encerrava, era um candidato potencial a entrar na lista.

De repente, Jones Cunha se aproximava da mesa do matador:

– O meu nome está na lista?

Edward dava uma olhada.

– Está. Você é o terceiro!

– Meu irmão, não faça isso! Eu vou te pagar uma “meiota”, mas coloca o meu nome lá embaixo, entre os últimos... – implorava Jones Cunha.

– Feito! – avisava Edward.

Enquanto Jones providenciava a cachaça, Favela riscava seu nome do terceiro lugar e acrescentava lá pelo quinquagésimo sexto, que o sujeito tinha muitos desafetos.

Daí a pouco, chegava Nei Parada Dura:

– O meu nome está na lista?

Edward dava uma olhada.

– Está. Você é o quinto!

– Meu irmão, não faça isso comigo não! Eu vou te pagar uma “meiota” e um tira-gosto de sardinha, mas coloca o meu nome lá embaixo, entre os últimos... – implorava Nei Parada Dura.

– Feito! – avisava Edward.

Enquanto Nei Parada Dura providenciava a cachaça e o tira-gosto, Favela riscava seu nome do quinto lugar e acrescentava lá pelo sexagésimo nono.

Dali a alguns minutos, Rubens Bentes se aproximava da mesa:

– O meu nome está na lista?

Edward dava uma olhada.

– Está. Você é o primeiro!

– Porra, meu irmão, você está me desconhecendo! Sempre fui seu peixe. Não faça isso comigo não! Eu vou te pagar duas “meiotas” e uma carteira de Hollywood, mas coloca o meu nome lá embaixo, entre os últimos, de preferência, depois do Jones... – implorava Rubens Bentes.

– Feito! – avisava Edward.

Enquanto Rubens Bentes providenciava a cachaça e o cigarro, Favela riscava seu nome do primeiro lugar e acrescentava lá pelo octogésimo terceiro.

Por volta das 10 da noite, mais bêbado do que um gambá (dependendo do número de desafetos que chegavam no bar, ele era agraciado com até 25 “meiotas”, 15 carteiras de Hollywood e um número incalculável de tira-gostos de sardinha, conserva e salsicha em lata), Edward Favela guardava a lista no bolso e se dirigia para sua residência, aos trambolhões.

Quando se curava da carraspana, no dia seguinte, Favela não tocava no assunto.

Mas no dia 31 de dezembro do ano seguinte começaria tudo outra vez.

Era um obstinado!

Eu e Mário Adolfo brincando de mountain bike



Caloi Barra Forte: só para os fortes, só para os machos!

Fevereiro de 1970. No Natal do ano anterior, Pai Simão havia nos presenteado com duas bicicletas Caloi: uma feminina (“Caloi Ceci”), na cor azul, para as meninas, e uma masculina (“Caloi Barra Forte”), na cor vermelha, para os moleques (eu e Simas).

Estava na cara que o futuro Careca Selvagem dificilmente iria pilotar aquela máquina: ele não tinha tamanho para sentar no selim e pisar nos pedais ao mesmo tempo.

O safado resolveu o problema enfiando uma das pernas por dentro do arco oco que servia de suporte do quadro para alcançar um dos pedais e pilotar a “magrela” meio de lado, como se fosse um sidecar.

Eu havia aprendido a andar de bicicleta com seis anos de idade, quando Pai Simão comprou duas minibicicletas pra gente.

Simone e Silene foram as primeiras a aprender a andar nas bicicletas sem as “rodinhas” auxiliares.

Eu levei um bom tempo até parar de olhar pros pedais e seguir em frente, sem cair.

Silane, Selane e Simas também aprenderam a dominar as maquininhas após uma série de tombos memoráveis.

O certo é que quando as duas Caloi nos foram presenteadas, a farra ficou completa.

Havia um pequeno detalhe. Os freios da Ceci já eram produzidos no moderno sistema de cabo de aço, ou seja, você acionava a manopla de freio com apenas um dedo.

Os freios da Barra Forte ainda eram do antigo sistema “freio de vara”, ou seja, duas manoplas de ferro quase na horizontal, que você só conseguiria acionar usando as duas mãos para apertar com força.

Com o uso continuado, as manoplas de freio ficavam mais maleáveis, mas nos seis primeiros meses o piloto tinha que tocar um dobrado.

Para resolver o problema de frenagem, eu pedia que o sujeito do bagageiro saltasse e segurasse a bicicleta pelo próprio bagageiro.

A estilosa bicicleta feminina Ceci

Uma tarde de domingo, eu e Mário Adolfo estávamos caçando brotos na parte plana da Rua Borba, entre a Codajás e a Parintins.

Como o Mário Adolfo nunca se interessou em aprender a andar de bicicleta, eu pilotava a “magrela” e ele ia confortavelmente sentado no bagageiro para ajudar nas freadas.

Lá pelas tantas, ele me convenceu a passar em frente de sua casa, onde as meninas da rua (Edna, Mary Jane, Hedy Lamar, Sôngila, Silane, Noca, Silvana, Nise, etc.) estavam tricotando fofocas.

Nós dois passamos na frente das garotas na maior bossa e, nas proximidades da atual quadra do GRES Andanças de Ciganos, no começo da ladeira em direção à Rua Tefé, deu-se o inevitável: a bicicleta aumentou assustadoramente de velocidade.

– Caceta, Mário Adolfo, pula e segura essa porra que não estou conseguindo frear! – gritei.

– Nem pelo caralho! – devolveu ele, já posicionando os calcanhares no eixo da roda traseira e se preparando para o pior. – A bicicleta está com muita velocidade, não vai dar pra pular não!

A bicicleta embicou em velocidade supersônica em direção à Rua Tefé.

Eu poderia tentar atravessar a Rua Tefé em alta velocidade para que a velocidade diminuísse na próxima ladeira de subida em direção à Rua Itacoatiara, mas fiquei com medo de um carro nos pegar pela proa e fiz a única coisa que me pareceu razoável: dobrei à esquerda na Rua Tefé, pegando uma nova ladeira, dessa vez em direção à Rua Urucará.

Não lembrava que a prefeitura estava fazendo a terraplanagem da rua.

No barro molhado, a bicicleta virou um bólido de Fórmula Um.

Para nossa sorte (ou azar, sei lá), no cruzamento das ruas Tefé e Urucará havia tanta lama, que a bicicleta atolou e nós atolamos junto com ela.

Levamos uns cinco minutos para descobrir onde a “magrela” havia submergido.

Pra completar, surgiu uma briga de dezenas de cachorros a dois metros de onde desabamos.

Por muito pouco não saímos correndo e deixamos a bicicleta por lá mesmo.

Enquanto subíamos a ladeira da Rua Urucará em direção à Parintins, com barro da cabeça aos pés e empurrando, envergonhados, a bicicleta enlameada, discutíamos o que fazer naquela situação.

– Se a gente subir a ladeira da Parintins nesse estado, as meninas vão rir e passar o resto da vida zoando da nossa cara! – avisou Mário Adolfo.

Resolvemos contornar a Rua J. Carlos Antony, descer a Rua Borba e se limpar discretamente em um barril de água que havia no quintal da dona Sila.

A operação mostrou-se absolutamente inútil.

Mal a gente tinha se lavado, o nosso corpo voltava a ficar esbranquiçado como se fôssemos aborígenes australianos se preparando para a festa do padroeiro da aldeia.

Ô barrozinho filho da puta! Estragou o nosso domingo.

segunda-feira, dezembro 23, 2019

Lúcio Preto e a arte de não pagar a conta em botequim



O comerciante Selmo Nogueira e o garçom Marcha Lenta, no Caxuxa

Nos anos 70, o Bar do Caxuxa, do comerciante Selmo Nogueira, era parada obrigatória dos boêmios manauaras por conta das excelentes sopas, sanduíches, sucos e batidas vendidas no local.

Pelo menos uma vez por mês, Lúcio Preto costumava adentrar no boteco por volta da meia-noite, acompanhado por meia dúzia de mulheres já completamente “mamadas”.

Na condição de senhor absoluto do harém, ele pedia sanduíches de todos os tipos, sucos variados, batidas de frutas de época e encerrava a fuzarca com uma rodada de sopas em cumbucas de porcelana.

As mulheres se fartavam à tripa forra.

Lá pelas tantas, ele solicitava a uma das meninas que lhe desse um fio de cabelo, que ele iria mostrar como era capaz de sair do boteco sem pagar a conta.

Curiosas, elas sempre obedeciam.

Lúcio Preto pegava o fio de cabelo e colocava dentro de qualquer cumbuca que ainda contivesse um pouquinho de sopa.

Na hora de pagar a despesa, ele chamava o Selmo em particular, exibia a cumbuca e chutava de bico:

– Porra, Selmo, eu encontrei um cabelo cheio de lêndeas aqui dentro. Se você me cobrar alguma coisa, vou fazer um escândalo da porra aqui no bar denunciando a falta de higiene dessa merda e duvido que alguém ainda venha lanchar aqui...

Constrangido, Selmo limitava-se a recolher os pratos sujos e rasgar a conta.

As mulheres ficavam tão felizes que só faltavam abrir as pernas pro Lúcio Preto ali mesmo.

Um dia, inquirido pelo Mário Adolfo por que não dava um basta naquele truque velho e manjado, Selmo abriu o jogo.

– É que de vez em quando a luz vai embora e o pessoal aproveita a escuridão pra tentar me dar um xexo generalizado. Mas quando o Lúcio Preto está na área, ele dá logo um grito: “Se alguém sair do bar, eu vou dar um tiro no meio da bunda!”. Como todo mundo sabe que ele é mesmo doido, ninguém se atreve a arredar o pé até a luz voltar. Daí que a grana que eu economizo sem levar xexo nessas ocasiões é suficiente para pagar essas lambanças dele, realizadas uma vez por mês. Mas o teatrinho precisa ser feito para ele impressionar o mulherio, sair sem pagar e ainda me fazer passar por otário... Faz parte do jogo!

Se um dia morrer, Selmo Caxuxa vai pro céu. Papo sério.

Zazá e Cafuringa no Fazendário Clube



Isaías Leite furou a fila em junho do ano passado. Tenho (temos) saudade

No começo dos anos 70, um novo playboy foi morar na Rua Tefé, quase no canto com a Rua Borba, para se transformar no único rival à altura do eterno playboy Odivaldo Guerra.

Com quase dois metros de altura, físico de halterofilista, boa pinta, bem-humorado, bom de papo e bom de porrada, Isaías Leite logo conquistou a admiração da rapaziada. O sujeito tinha um currículo cascudo.

Ainda adolescente, quando morava na Vila Municipal, começou a treinar judô até se transformar em faixa preta e conquistar vários títulos na categoria absoluto.

Quando serviu o Exército, aprendeu a lutar boxe.

O acupunturista que amenizava as indigestas dores de bico-de-papagaio que acometiam seu pai, o comerciante Manuel Leite, era o sansei Noroshi Shiranui, um dos descendentes de Mitsuyo Maeda, o famoso Conde Kano, introdutor do jiu-jitsu no Brasil a partir de Belém do Pará.

O acupunturista passou a ensinar jiu-jitsu para o Isaías.

Nos anos 60, Isaías morou no Rio de Janeiro, em companhia de Artur Virgílio Neto, e ficou íntimo da família Gracie.

Começou a tomar aulas de jiu-jitsu com Rickson Gracie, o maior lutador da história do esporte em todos os tempos.

Com pouco mais de um ano, já era um dos maiores “brigões” do Rio de Janeiro, fazendo parte da temida “Turma da Miguel Lemos”, de Copacabana.

– Técnica, você já tem de sobra! – explicou Rickson Gracie, após mais um treino. – Agora só precisa trabalhar a respiração. Você tem que ter fôlego para duas horas de porrada. Conseguindo isso, você vai ser invencível.

Isaías levou a sério o conselho do treinador.

Começou a praticar natação, mergulho, corrida, alpinismo, o diabo a quatro.

Transformou-se em uma máquina de guerra.

Quando se mudou para a Cachoeirinha, alguns anos depois, já era pau de dar em doido.

Ninguém encarava a fera.

Sua técnica era simples e infalível: ele voava nas pernas do oponente, dava uma “baiana”, fazia a montada e esfarelava a cara do sujeito de porrada.

Nenhuma luta durava mais de três minutos.

Um dia, Isaías foi convidado pela turma do Top Bar para participar de uma partida de futebol no campo do Fazendário.

Com aquele tamanho descomunal, 100 kg de puro músculo, ele iria meter medo tanto nos zagueiros adversários, se jogasse de centroavante, quanto nos atacantes adversários, se jogasse de zagueiro.

Antídio Weil escalou Isaías de ponta de lança.

Com cinco minutos de jogo, o ponta direita Ely Cafuringa, um baixinho super gente fina, toca uma bola pra ele na entrada da grande área, sai correndo em direção ao gol e começa a gritar:

– Mete pra mim, Zazá! Mete pra mim, Zazá!

Isaías deu um bico na bola pra fora do campo, encarou o Cafuringa e soltou os cachorros:

– Zazá é nome de filho de lavadeira, ô filho da puta! Me respeita! Meu nome é Isaías, caralho, Isaías! Eu não te conheço, porra, mas Zazá deve ser o nome da puta que te pariu! Entendeu, zé boceta? Meu nome é Isaías, corno manso, Isaías! Já aprendeu ou quer que eu te ensine na base da porrada?...

Tremendo mais do que vara verde, Cafuringa tentou consertar o estrago:

– Me desculpe, seu Isaías, me desculpe. Eu não sabia o seu nome aí perguntei pro doutor Vilson Benayon e ele me disse que era Zazá...

Isaías, mais puto ainda:

– É, zé boceta, continua acertando o teu ponteiro pelo relógio daquele Pacu de Bomba pra ver se eu não quebro vocês dois de porrada...

O destempero verbal do playboy foi crucial para que o novo apelido “pegasse”.

A partir desse dia, Isaías ficou conhecido para sempre como Zazá.

Era um figuraço!

Demonstração da arte suave no Bar Pinguim



Ivancy Wilkens e seu irmão Xireia

Março de 1978. Estudante do Colégio Brasileiro e morador da Vila Mamão, Ivancy Wilkens, primo do advogado Val Wilkens, tinha 15 anos e estava gazetando aula para jogar pinball no anexo do Bar Pinguim, chamado “Pinguinzinho”, ali na Praça do Congresso.

Ele estava jogando em uma máquina Taitorama, que permitia o jogo simultâneo de até quatro moleques porque possuía marcadores individuais.

Quando perdeu a terceira bola e ia dar a vez a outro jogador, a máquina anunciou que ele havia conquistado um bônus extra, que lhe dava direito à nova partida.

Um sujeito grandalhão que aguardava sua vez de jogar cismou que o bônus extra era dele e expulsou Ivancy da máquina, com violência.

Ivancy ficou ali por perto, curtindo sua raiva em silêncio e, de repente, quando o sujeito menos esperava, ele se aproximou sorrateiramente e deu um pisão violento na máquina.

O solavanco obrigou a máquina a fazer “tilt”, ou seja, “the game is over”.

O sujeito ficou furioso por ter perdido a ficha e avançou sobre Ivancy para dar-lhe umas porradas.

Ivancy saiu correndo do anexo e entrou no Bar Pinguim, com o grandalhão em seu encalço.

Foi quando outro sujeito se interpôs entre os dois:

– Deixa o moleque em paz e procura um cara do teu tamanho pra brigar! – disparou o sujeito, que era bastante franzino.

– Tu não te mete, senão quem vai apanhar é você! – devolveu o grandalhão.

– Então vem pra cima! – desafiou o franzino.

O grandalhão deu um soco, o sujeito franzino se desviou, pegou o pulso do oponente e lhe jogou no chão, em uma fração de segundos.

Mais puto ainda, o grandalhão se levantou, deu um novo soco, o franzino fez uma nova esquiva, pegou no pulso do adversário e colocou o sujeito no chão pela segunda vez, em outra fração de segundos.

O grandalhão não se deu por vencido.

– Aguenta aí que eu vou bem ali chamar a minha turma e nós vamos te quebrar de porrada! – avisou, saindo correndo do bar em direção à Praça da Saudade.

Ainda apavorado, Ivancy foi lá com o sujeito que lhe salvara da surra:

– Meu amigo, obrigado por tudo, mas acho bom o senhor se mandar. Aquele cara que o senhor derrubou no chão é um valentão aqui da área conhecido como Short. A turma que ele foi buscar só tem maus elementos: De Ouro, Brecha, Careca, Dodô, Exu, Rai Maraca, Afonsinho...

– Pode deixar que eu sei me cuidar! – avisou o sujeito franzino, enquanto bebia tranquilamente um novo chopinho.

Cada vez mais nervoso, Ivancy foi pra frente do Ideal Club observar a confusão à distância.

Dali a alguns minutos surgiu a turma do invocado De Ouro, disposta a matar ou morrer por um de seus membros.

– Foi aquele filho da puta ali que me bateu! – avisou Short, apontando para o sujeito franzino, que permanecia encostado no balcão da choperia sorvendo tranquilamente seu chopinho.

De Ouro falou alguma coisa com o sujeito e, dali a pouco, os dois estavam encarando alegremente várias tulipas de chope, como velhos amigos.

O resto da turma, incluindo Short, foi embora.

Sem entender nada, Ivancy se aproximou timidamente do balcão do bar.

– Foi esse moleque aí que começou a confusão? – perguntou De Ouro.

O sujeito franzino assentiu com a cabeça.

– Chega aí, moleque! Vem tomar um chopinho com a gente! Esse aqui é o meu professor Reyson Gracie, o cara que introduziu o jiu-jítsu no Amazonas – avisou De Ouro.

Só então a ficha caiu. Aquele sujeito franzino era simplesmente o terceiro filho do lendário Carlos Gracie, considerado o pai do jiu-jitsu brasileiro.

Reyson chegou em Manaus, em 1976, a convite de seu amigo Artur Neto, para difundir o jiu-jitsu.

No ano seguinte, fundou a federação amazonense da modalidade e realizou o primeiro campeonato oficial da arte suave no ginásio do Colégio Militar de Manaus.

Ivancy Wilkens, Simão Pessoa, Simas Careca Selvagem e Xireia

Naquela mesma tarde do entrevero no Bar Pinguim, Reyson Gracie convidou Ivancy para treinar com ele, no próprio quarto de hotel em que estava hospedado, na Rua dos Barés.

Os ensinamentos obtidos com Reyson eram transferidos por Ivancy para seu irmão caçula, Joaquim Nogueira Neto (aka “Xireia”), na época um pivete de oito anos.

Ele ganhou esse apelido jogando futsal no time infantil do ABC porque lembrava muito o líbero Gaetano Scirea, campeão pela seleção italiana de 1982.

Artista plástico, muralista e entalhador, Xireia foi campeão adulto de futsal Norte-Nordeste pelo ABC, mas depois abandonou as quadras para se dedicar ao jiu-jitsu.

Atualmente é trabalhador da Samsung, no Distrito Industrial.

Ivancy, além de se dedicar ao jiu-jitsu, foi campeão amazonense de voleibol pelo Olímpico.

Atualmente, ele mexe com fretamento de barcos para festas regionais.

O irmão mais velho dos dois, João Nogueira (aka “Nogueira”), em parceria com a esposa Ana, mantém estoicamente, e apenas com recursos próprios, a escola de futebol Meninos da Vila Mamão, que ensina os fundamentos do rude esporte bretão para cerca de 70 moleques de 7 a 14 anos, em um campinho de areia localizado na Rua Vasconcelos Chaves, próximo de sua residência.

Líbero do time de másters do Santos, de São Francisco, Nogueira trabalha no setor de logística de uma empresa terceirizada da Gol Transportes Aéreos.

Tudo índio, tudo parente, tudo sangue bom!

Ivan Chibata e a fissura do Dino Sarará



Julho de 1984. O violonista Dino Sarará estava acompanhando o bicheiro Ivan Chibata em mais uma maratona etílica pelos bares da cidade.

Tocando há 12 horas sem parar, seus dedos já estavam começando a minar sangue.

Assim que Dino Sarará encerrou a canção “O Mundo É Um Moinho”, do Cartola (Ivan Chibata no vocal, claro), ele descansou o violão no colo e, olhando sério para o bicheiro, avisou:

– Chefia, eu só vou continuar tocando aqui contigo depois que fumar um charo! Eu tô fissurado por um charo! E se a fissura não passar, eu não acerto tocar uma nota! Se você não fizer uma presença, eu vou embora pra casa agora mesmo! Sem dirijo, eu não toco!

Ivan Chibata não se aperreou. Chamou Vladimir Brother, seu secretário informal, lhe entregou a chave do carro, uma pacoteira de dinheiro e cantou a pedra:

– Vai numa boca de fumo e compra cinco charos pra esse vagabundo!

Brother voltou meia hora depois, de mãos abanando.

Estava faltando maconha na cidade por causa de uma blitz devastadora feita pela Polícia Civil no início da semana.

Metade dos traficantes estava presa, a outra metade tinha fugido pro interior.

Não havia jererê nas bocas de fumo nem pra fazer remédio pra asma.

Ivan Chibata não se aperreou. Pegou a chave do carro, colocou o violonista dentro do veículo e se mandou para a Delegacia de Polícia Civil (1ª DP), que funcionava nas imediações do Restaurante Gato Preto, na Cachoeirinha.

Lá chegando, ele foi conversar com o delegado plantonista, que estava lendo um livro da Agatha Christie:

– Meu querido, esse rapaz aqui é o meu violonista, o Dino Sarará, um músico da melhor qualidade! – explicou o bicheiro ao delegado. – Ocorre que esse cidadão, coitado, é dependente químico e está passando por uma crise de abstinência porque vocês apreenderam toda a maconha da cidade. Ele está tão fissurado, coitado, que pode sofrer um piripaque a qualquer momento e bater as botas. Será que vocês não podiam quebrar o galho dele?...

Sem se levantar da mesa, o delegado chamou um policial:

– Ô Zé Elias! Vai lá dentro, pega um daqueles pacotes de maconha que a gente confiscou ontem na Rua 13 da Colônia e entrega aqui pro Ivan!

Dito isso, voltou a se concentrar na leitura do livro.

Ivan Chibata recebeu o pacote de 5 kg de maconha prensada do tipo “manga rosa” legítima, importada do Maranhão, agradeceu rapidamente, colocou o violonista no carro e os dois voltaram para o bar.

A pacoteira foi colocada em cima da mesa.

O bicheiro tirou da cintura seu Colt 44 com cabo de madrepérola e colocou ao lado da pacoteira.

Aí, em tom paternal, ele deu uma nova dica pro violonista:

– Dino, meu filho, você pode fumar quantos charos quiser, que a firma aguenta! Eu sei que você vai ficar muito doido, vai errar o andamento das músicas, vai esquecer as harmonias, vai fazer merda pra caralho, mas eu não estou nem aí. A única coisa que você não pode fazer, meu filho, é se levantar da mesa e ir embora. Você está sendo pago pra me acompanhar, entendeu?...

Nervosíssimo, o violonista assentiu com a cabeça, pediu licença e começou a enrolar um baseado.

Passou 72 horas seguidas tocando para o bicheiro pelos botecos da cidade, completamente alucinado.

O Ivan Chibata era aloprado!

Lúcio Preto e Cafuringa no Top Bar



Ely Cafuringa e Petroba (de costas), Vilson Benayon, Antídio Weil, Maurílio, 
Zé Paulo e Nego Walter na Quadra dos Ciganos

Junho de 1981. Cheio da manguaça, o baixinho Ely Cafuringa se aboletou em uma das cadeiras do Top Bar e começou a dormir o sono dos justos. Roncava mais do que porco da mão branca.

Extremamente gente fina, cortês e educado, Cafuringa morava na Praça 14, mas não saía da Cachoeirinha, sempre ostentando uma imensa bolsa a tiracolo repleta de papéis velhos, livros de poesia e documentos.

Após perder uma partida de sinuca para Nei Parada Dura, Lúcio Preto ficou cismado de que o ronco do Cafuringa havia atrapalhado a sua concentração e resolveu se vingar.

Primeiro, ele retirou cuidadosamente a bolsa a tiracolo do rapaz, esvaziou seu conteúdo e encheu de pedra jacaré.

A bolsa ficou pesando uns trinta quilos.

Lúcio Preto recolocou a bolsa cuidadosamente no colo do Cafuringa e colocou a alça da sacola no pescoço do dorminhoco.

Aí, se acocorou, desamarrou o tênis do bebum e amarrou um cadarço no outro.

Os dois pés ficaram praticamente colados.

Na sequência, ele retirou do bolso uma bomba catolé, acendeu e colocou embaixo da cadeira do dorminhoco.

O barulho da explosão fez o Cafuringa, assustado, se levantar abruptamente da cadeira.

O peso da bolsa em seu pescoço dobrou seu corpo pra frente.

Ele tentou dar um passo para recuperar o equilíbrio, mas os dois pés estavam amarrados.

Cafuringa embiocou de cara no chão de cimento.

Levou sete pontos na testa.

Nunca mais quis dormir no Top Bar quando o Lúcio Preto estava jogando sinuca.

domingo, dezembro 22, 2019

Ivan Chibata e o violonista Dino Sarará



O atual presidente da Banda da Caxuxa Wladimir Brother

Abril de 1984. Durante uma cachaçada no Bar Popeye, na Estrada dos Franceses, o bicheiro Ivan Chibata conheceu o violonista Dino Sarará. Foi amor à primeira vista.

O exímio violonista conhecia todo tipo de música de seresta. Ivan Chibata queria ser um novo seresteiro.

O bicheiro contratou o violonista a peso de ouro para acompanhá-lo em suas noitadas de boemia pelos bares da cidade.

O violonista, entretanto, era manhoso: quando queria encerrar a esbórnia, ele dava uma lapingochada tão violenta no violão que, invariavelmente, quebrava uma das cordas.

Fingindo consternação, ele dava o bote final:

– Olha, Ivan, você me desculpa, mas não sei tocar violão faltando uma das cordas...

Aí, chamava um táxi e se mandava.

Nas duas primeiras vezes em que aconteceu a presepada, o bicheiro, claro, ficou puto porque a noite estava apenas começando, mas não disse nada.

Na terceira vez, quando o violinista se preparava para ir embora, o bicheiro puxou da cintura um Colt 44 com cabo de madrepérola, apontou pra cabeça do sujeito e pediu pra ele ficar na mesa.

Aí, chamou Wladimir Brother, seu secretário informal, lhe entregou a chave do carro e cantou a pedra:

– Me traz aquele presente que comprei pro Dino!

Brother voltou com uma caixa de papelão. Dentro da caixa, 100 jogos de cordas pra violão: 50 de cordas de aço, 50 de cordas de nylon.

A caixa foi colocada em cima da mesa.

– Dino, meu filho, você pode quebrar quantas cordas quiser que agora nós temos peças de reposição! – avisou Ivan Chibata, em tom paternal, com o revólver ainda apontado pra cabeça do violonista. – Eu sei que a mudança de corda vai modificar a afinação original, mas você pode afinar em ré, em mi, em sol, pode afinar na puta que pariu, que eu não estou nem aí. A única coisa que você não pode fazer, meu filho, é se levantar da mesa e ir embora. Você está sendo pago para me acompanhar, entendeu?...

Nervosíssimo, o violonista assentiu com a cabeça e começou a trocar a corda arrebentada do violão.

Passou 48 horas seguidas tocando para o bicheiro pelos botecos da cidade, sem quebrar uma única corda.

O Ivan Chibata era invocado!

Pandemônio na casa do seu Albino



Albino Filho e Ricardo Pinheiro

Junho de 1978. O Brasil vai disputar o terceiro lugar contra a Itália, no estádio Monumental de Nuñez, em Buenos Aires. Umas 30 pessoas resolvem assistir à partida na casa do seu Albino Maia, pai de Manuel Augusto, Carlos Barriga e Albino Filho, na Rua Itacoatiara, entre as ruas Urucará e Maués, municiados com uma tonelada de morteiros.

Entre os presentes estão Sadok, Amélia, Sici Pirangy, Soraya, Manuel Augusto, Socorrinha Macedo, Carlos Barriga, Fátima, Antídio Weil, Betinha, Ricardo Pinheiro, Cleber Weil, Albino Filho e Maria Angélica.

Sentado na sua cadeira de rodas, o velho Albino cantou a pedra:

– Se forem soltar foguetes, façam isso lá no quintal!

O técnico Cláudio Coutinho coloca em campo a força máxima da seleção brasileira: Leão, Nelinho, Oscar, Amaral, Rodrigues Neto, Batista, Toninho Cerezo, Jorge Mendonça, Gil, Roberto Dinamite e Dirceu.

Aos 37 minutos do primeiro tempo, durante um contra-ataque rápido, a Itália faz 1 a zero, gol de Franco Causio, de cabeça. O ambiente na sala é de funeral.

No intervalo, Cláudio Coutinho resolve ir pro tudo ou nada: substitui Toninho Cerezo por Rivelino e o ponta direita Gil, pelo centroavante Reinaldo. O Brasil vai pra cima dos italianos numa blitzkrieg avassaladora.

Aos 18 minutos, o lateral direito Nelinho empata o jogo com um gol antológico: o goleiro italiano esperava um cruzamento, a bola fez uma curva fechada na marca da pequena área e estufou a rede com violência.

A sala inteira explode no grito de gol e tome foguete sendo solto a partir da própria janela da sala.

Seu Albino Maia quieto.

Dez minutos depois, Rivelino lança uma bola no meio da área, Roberto Dinamite sobe pra matar no peito, mas a bola bate no seu peito e quica pra fora da área.

Dirceu nem deixa a bola tocar no chão: mete um voleio sensacional e estufa a rede pela segunda vez. O ambiente na sala é de hospício.

Socorrinho Macedo se aproxima da janela, acende um morteiro de três tiros, aí, de repente, fica nervosa, começa a tremer, solta o morteiro dentro da sala e se esconde atrás de um estofado.

Pânico no bordel. Metade dos presentes abandona a sala pulando pela janela.

A outra metade sai correndo em direção ao quintal, incluindo seu Albino na sua cadeira de rodas, desenvolvendo uma velocidade supersônica.

A explosão do morteiro quase leva a casa pelos ares.

Se o Brasil não tivesse conquistado o terceiro lugar da Copa do Mundo, a Socorrinha Macedo teria sido excomungada no mesmo dia.

A conversão evangélica do Nego Walter



O empresário Argemiro Carneiro

Dezembro de 1988. O empresário Argemiro Carneiro, irmão do Airton Caju, havia montado um estaleiro na baía do Rio Negro e começou a construir pequenos barcos regionais.

Para ajudar a combater o desemprego entre a moçada da Cachoeirinha, Argemiro priorizou a contratação do operariado entre os moradores do bairro.

Um dos contratados foi o abusado Nego Walter, já celebrado como um dos melhores pintores de parede da cidade. Ele fez uma série de exigências para ir trabalhar no estaleiro.

O empresário concordou com todas, provavelmente porque ambos jogavam futebol pelo mesmo time, o famigerado Estrela do Norte, onde Nego Walter pontificava como centroavante, artilheiro e queridinho da torcida, enquanto Argemiro não passava de um simples ponta-direita fuçador, mas sem muito brilho.

A qualidade dos barcos produzidos por Argemiro fez a demanda aumentar exponencialmente e, de repente, os mais de 50 operários começaram a ser obrigados a trabalhar, de hora-extra, nos sábados, para garantir a entrega das encomendas.

Todo mundo concordou, já que aquele “plus” representava um aumento substancial no salário do mês.

Todo mundo não. O Nego Walter, por exemplo, com uma conversa fiada de que havia “recebido Cristo como seu único e legítimo salvador”, explicou ao empresário que tinha abandonado a Igreja Católica e se convertido à Igreja Adventista do Círculo Quadrado do Cordeiro de Deus, onde era terminantemente proibido fazer qualquer tarefa no sábado.

Argemiro concordou de novo, provavelmente porque ambos jogavam futebol pelo mesmo time, Nego Walter era o queridinho da torcida, aquelas coisas todas.

Na véspera de Natal, um sábado, Argemiro começou a pagar o 13º salário da moçada, em dinheiro vivo, já que, naquela época, depositar a grana em conta corrente de agência bancária era quase um parto sem anestesia, em virtude das exigências dos bancos para abrir uma mísera conta para trabalhadores braçais.

Ele dava o envelope com a grana, o sujeito contava, confirmava que estava tudo OK, assinava um recibo e, aí, Argemiro lhe presenteava com uma garrafa de vinho Raposo, uma pequena cesta de Natal, com embutidos, frutas secas, enlatados, cereais e espumantes, e lhe desejava um Feliz Natal e um Próspero Ano Novo.

Os operários saíam do escritório em estado de graça.

Argemiro estava ali, entretido com aquela tarefa comezinha, quando percebeu a presença do Nego Walter no estaleiro. Ele não deu a mínima.

O cara, segundo a religião que abraçara, não podia fazer porra nenhuma no dia de sábado, que merda estava fazendo ali?...

Argemiro continuou na sua missão. Quando o último operário foi despachado, ele se levantou, falou para o vigia fechar o estabelecimento porque ele estava indo embora, e se dirigiu para o seu carro.

O Nego Walter foi atrás. Ele chegou manhoso:

– Patrãozinho, o senhor se esqueceu desse seu escravo...

– A tua grana está separada, parente! – avisou Argemiro, abrindo a porta do carro. – A tua religião não te permite receber dinheiro hoje. Passa aqui amanhã, que é domingo, pra você receber...

Nego Walter não sabia onde se esconder. Tirou a última carta da manga:

– Eu estou sem um puto no bolso. Dá pra você, pelo menos, me dá uma carona até a Cachoeirinha?

– Entra aí! – limitou-se a dizer Argemiro.

Nego Walter entrou e os dois, sem trocarem uma palavra, foram em direção à Cachoeirinha.

No cruzamento da Rua Parintins com a Rua Urucará, Argemiro parou o carro e foi peremptório:

– Desce aí, Sabará. Amanhã cedo você passa no estaleiro pra receber tua grana!

Nego Walter desceu, abriu a porta do carro e, para evitar que Argemiro fosse embora, se posicionou ao lado da porta aberta, se ajoelhando pateticamente no chão.

Com as duas mãos erguidas para o céu, o olhar posto nas estrelas, detonou:

– Meu Bom Jesus, me desculpe estar transgredindo um de seus ensinamentos, mas o Senhor sabe como eu estou necessitado desse dinheirinho... Me perdoe, Senhor, de receber esse dinheiro num sábado... Eu jurei guardar e santificar os feriados santos e dias de guarda, mas é uma emergência, Senhor, uma emergência... Eu estou fodido, senhor, eu estou fodido... Não tenho um puto em casa, Senhor, e eu e minha família precisamos muito desse dinheirinho, Senhor, para honrar o dia do Seu aniversário! Me perdoe, Senhor, me perdoe!

E começou a chorar, convulsivamente.

Argemiro ficou tão constrangido que abriu o porta-luvas, pegou a pacoteira, fez o pagamento do pintor na mesma hora e lhe entregou a pequena cesta de Natal.

Quando se preparava pra ir embora, Nego Walter meteu a cara na janela:

– E o vinho?...

– Vai tomar no cu, Sabará! – devolveu Argemiro. – Quem bebe vinho é o meu Deus, não é o teu...

E saiu de lá, cantando pneu.

Um mês depois, Nego Walter voltou para a Igreja Católica.

sábado, dezembro 21, 2019

Perfume Bond Street no Boteco da Zeza


Simas Pessoa, Marcileudo Barros, Jeferson Chase e Simão Pessoa, 
em frente ao lendário Boteco da Zeza

Nos anos 70, o Boteco da Zeza, ali no cruzamento das ruas Castelo Branco e Barcelos, era ponto de encontro permanente dos boêmios da Cachoeirinha. Os verdadeiros pés inchados começavam a chegar ao covil assim que ele abria as portas, por volta das 6h da manhã.

E haja Brandicana, Cocal, Correinha, Januária, Oncinha, Praianinha, Serra Grande, Tatuzinho, Pitu, Kokinho, Lobatinha, Chora Rita e Jurubeba Leão do Norte pra fazer frente à demanda, que o boteco era bem sortido.

Um dia, por volta das 9h da manhã, o Márcio entra no boteco – então, sob os cuidados do seu irmão Marcileudo Barros – reclamando da vida.

Trazia um pequeno embrulho na mão. Supostamente ele teria de ir ao Centro trocar um presente dado para sua irmã Leonor (nossa querida Lió, atual administradora do botequim), que recebera de bom grado, mas não gostara.

Um dos pés inchados, de nome Ney, se interessou pela história.

– O que foi que você deu de presente pra sua irmã? – questionou.

– Um vidro de perfume Bond Street... – respondeu Márcio.

– E ela não gostou? – espantou-se o bebum, que era especialista em perfumaria francesa.

– Gostou não! – avisou Márcio. – Ela disse que prefere Lancaster...

– Ah, mas não dá pra comparar o Bond Street com o Lancaster. O Bond Street é muito melhor...

– Eu também acho, mas fazer o quê? – explicou ele, sem esconder a decepção.

O bebum ficou em silêncio. Aí criou coragem:

– Escuta aqui, meu amigo. Já que você vai trocar o perfume na loja, será que não dava pra mim dar uma cheiradinha antes. Faz tempo que não sinto o cheiro de perfume Bond Street...

– Olha, eu vou desembrulhar o presente, mas você só pode dar uma cheiradinha rápida porque se gastar muito a balconista da loja vai desconfiar que o perfume já foi usado.

– Tudo bem! – assentiu o bebum.

Márcio abriu discretamente o presente e levou o invólucro ao nariz do bebum, que deu uma aspirada forte, daquelas de tomar prize de lança-perfumes.

Daí a pouco, ele mudou de cor e saiu do boteco colocando os bofes pra fora.

Rindo estrepitosamente, Márcio foi embora levando sua coleta de exames de fezes para entregar no Laboratório Costa Curta.

Antônio Diniz e o Karmann Ghia do Douglas



O livreiro Antônio Diniz nunca foi bom de Geografia

Morador da Rua Barcelos, nas proximidades do Boteco da Zeza, na Cachoeirinha, Douglas Mascarenhas possuía um velho Karmann Ghia, que vivia parado por falta de peças.

Douglas vivia fuçando os ferros-velhos da cidade em busca das peças faltantes, mas sem sucesso. Já havia colocado anúncios em jornais. Nada.

Ele então resolveu apelar para os amigos: quem soubesse da existência de algum sujeito querendo se desfazer de qualquer tipo de Karmann Ghia, sucateado ou não, que o comunicasse, que ele compraria na mesma hora.

Uns seis meses depois, o livreiro Antônio Diniz telefona para Douglas:

– Parceiro, eu descobri uma verdadeira galinha morta pra você. É um Karmann Ghia todo detonado, que está pegando sol e chuva em frente de uma residência, ali pro rumo da Praça 14. Acho até que o dono não vai te cobrar nada pra se desfazer do bagaço. O carro está tão lascado, que só falta mesmo ir pro ferro-velho. Mas ainda dá pra salvar algumas peças.

Douglas ficou mais alegre do que pinto no lixo.

– Me dá o endereço do dono do carro, que eu vou lá agora mesmo! – avisou.

– Eu não sei o nome da rua, não. Mas você vem aqui na livraria, que eu te levo lá...

Em menos de meia hora, Douglas estava entrando na livraria Sebão da Cidade. Mais quinze minutos, e os dois estavam aboletados no carro do Antônio, se dirigindo para o local onde estava o Karmann Ghia.

Douglas estava eufórico:

– Bicho, tu achas que o cara vai querer mais de mil paus pela carcaça? – perguntou.

– Mil paus? – espantou-se Antônio Diniz. – Aquela sucata não vale 200 reais. O Karmann Ghia está tão detonado que não tem mais nem pneus. Está montado em cima de quatro torres de tijolos. A tinta já descascou, as portas estão comidas pela ferrugem, os para-lamas estão cheio de buracos. O dono vai dar graças a Deus você tirar aquele monte de ferro velho de frente da casa dele...

Douglas ria, divertido.
Os dois desceram a Avenida Sete de Setembro, dobraram à esquerda depois da Escola Técnica e seguiram pela Rua Duque de Caxias em direção à Praça 14.
Depois do antigo depósito do DER-Am, o carro dobrou à direita. Mais alguns minutos e Antônio parou o carro.

– O Karmann Ghia é aquele ali! – avisou.

Douglas tomou um susto.

– Porra, Antônio, mas esse aí é o MEU Karmann Ghia...

O livreiro não sabia onde esconder a cara. Também, quem mandou confundir o bairro da Praça 14 com o território livre da Cachoeirinha.

Arlindo Jorge e o tecladista do Bar Maresia



Julho de 1996. Mortos de doidos, Arlindo Jorge, Vladimir Brother, João Cachorro e mais dois amigos entram no Bar Maresia, localizado em frente da Igreja de Santa Rita, para tomar a saideira e forrar o bucho.

O dia está quase amanhecendo e, no boteco, apenas alguns boêmios retardatários estão dançando animadamente ao som de uma orquestra de um homem só, o pianista Zé Bonitinho e seu vistoso teclado eletrônico.

Eles ocupam duas mesas e chamam a garçonete.

  Vocês têm isca de que? – indaga Arlindo Jorge.

  Infelizmente, já acabou tudo! – devolve a garçonete, passando um pano imundo nas mesas.

  Então me traz duas cervejas geladas, cinco copos e cinco carteiras de Carlton!

– Cinco carteiras de Carlton?! – estranhou a garçonete.

– Sim, minha filha, uma carteira pra cada um! Aqui ninguém pede cigarro um do outro... – devolveu Arlindo Jorge.

A garçonete providenciou a presepada.

Dali a pouco, tirando gosto com cigarro, os boêmios começaram a detonar uma nova grade de cerveja.

Lá pelas tantas, impressionado com o malabarismo que Zé Bonitinho fazia no teclado eletrônico, Arlindo Jorge, como se fosse um zumbi, se aproximou do pianista, ficou observando em silêncio e, de repente, segurou e levantou pelos pulsos as duas mãos do pianista do teclado.

O som continuou rolando do mesmo jeito.

Ainda segurando o pianista pelos pulsos, Arlindo Jorge se virou para os companheiros de mesa e contou o truque:

  Esse zé ruela não toca porra nenhuma não! As músicas são pré-gravadas. Ele fica aqui só fazendo o agarol do agamenon...

Zé Bonitinho, ainda com as duas mãos imobilizadas, ficou puto:

  Qualé, mermão, está querendo me desempregar?... Está querendo me desempregar?...

Se a garçonete não tivesse intervido e levado Arlindo Jorge de volta pra mesa, o falso pianista teria entrado na porrada pra aprender a não enganar zumbies embriagados em estado terminal.

sexta-feira, dezembro 20, 2019

Duelo de Titãs: Gabarito e Pernambuco



Uma versão aproximada da entrada do antigo Top Bar

Nos anos 60, o Top Bar, do seu Aristides Rodrigues, se transformou em um covil de biriteiros de carteirinha. Todos eles se reuniam lá para beber cachaça, conversar em voz alta, discutir sobre futebol e depois brigar. Simples assim.

Entre os que batiam o ponto diariamente estavam Mestre Carlos e seu filho Camisinha (ambos estofadores da melhor qualidade), Pedro Bala (que jurava ter dado porrada no Otinha), Pernambuco, Chico Popopô, Gabarito (extremamente obeso, mas sempre de paletó e com uma surrada valise 007 na mão), seu Boneco (ex-investigador da Polícia Civil), Mariola, Toinho, Zé da Voz, Bazam, Bobby Nelson, Nóia, Camões, Nazareno, Preto Joia, Pirarucu, etc.

O boteco tinha portas de saloon – uma mini porta de madeira entre as paredes, na altura do peito do cidadão, que vai e vem de acordo com a ferocidade do pistoleiro –, um balcão interno e meia dúzia de mesas, espalhadas pela calçada.

Numa determinada tarde de sábado, Gabarito entrou no bar meio apreensivo.

Ele procurou seu compadre Chico Popopô, que estava bebendo no balcão, e explicou a situação:

– Ontem eu paguei geral pro Pernambuco lá no bar do seu Luiz e ele falou que vai me matar. O filho da puta está bebendo cachaça ali fora para criar coragem!

– Porra, compadre, mas você tem duas vezes o tamanho do Pernambuco. Está com medo de que? – devolveu Chico Popopô.

– Compadre, ele está armado! No mano a mano, eu quebro ele todinho! Mas ele está armado! – explicou Gabarito, enquanto entornava a primeira dose de branquinha.

– Ora, compadre, só faltava essa: você esfriar pro Pernambuco... – reclamou Chico Popopô. – Se o Pernambuco frescar contigo, vá pra cima, compadre, vá pra cima, que você arrebenta com ele...

Uns dez minutos depois, o franzino Pernambuco, morto de doido, abre a porta do saloon e vocifera:

– Gabarito, filho da puta, te prepara pra morrer!

Dito isso, avançou em direção ao inimigo, com uma das mãos no bolso da calça.

Pensando tratar-se de um revólver, Gabarito soltou a valise 007 no chão e saiu correndo por uma porta lateral do bar. Pernambuco saiu correndo atrás.

Eles deram uma, duas, três voltas, entrando e saindo pelas portas do boteco, no maior escarcéu, até que um dos biriteiros presentes no pedaço resolveu melar a presepada e estendeu a perna na frente do Gabarito.

Ele desabou no chão.

Pernambuco aproveitou a oportunidade para tirar a arma do bolso e enfiar uma, duas, três vezes, no corpo do Gabarito, antes que a turma do “deixa disso” interferisse na confusão e separasse os dois brigões.

Gemendo, sem se mexer do lugar e implorando para que chegasse logo a equipe de paramédicos, Gabarito se limitava a admoestar Chico Popopô:

– Eu não te falei que ele estava armado, compadre? Eu não te falei? Ele agora me matou... Eu estou morrendo, compadre, eu estou morrendo...

Enquanto entornava mais uma dose de branquinha e tirava gosto com uma banda de limão, Chico Popopô foi direto na jugular:

– Te levanta daí, compadre, e deixa de frescura. A arma do Pernambuco era um garfo. O máximo que ele fez foi meia dúzia de furos nesse teu bundão cheio de banha! Não carece nem tomar injeção antitetânica...

Gabarito obedeceu ao compadre.

Meia hora depois, ele, Chico Popopô e Pernambuco haviam voltado a ser amigos de infância, apesar de o Gabarito ficar sem se sentar durante três dias.

Manguaça é foda!

Ivan Chibata e os “berros” do João Aragão



Uma réplica do famoso Trovão Azul, o carango favorito do bicheiro

Dezembro de 1985. O bicheiro Ivan Chibata ia passando em frente da Discoteca Brilho (no seu local foi construído o Amazonas Shopping) quando Afonsinho, um dos seguranças do empresário João Aragão, sócio-proprietário da boate, fez sinal com a mão para que ele parasse.

Ivan Chibata estacionou seu “Trovão Azul” (o apelido que ele dera ao seu novíssimo Opala Diplomata Cupê 85) e foi saber o que o sujeito queria:

– Recebemos um novo carregamento de “berros” da melhor qualidade! – avisou Afonsinho, visivelmente excitado. – Vamos lá dentro, que eu te mostro!

Ivan Chibata entrou na boate.

Em cima de uma mesa com tampo de mármore, dezenas de armas de todos os tipos: carabinas, escopetas, submetralhadoras, revólveres, fuzis, granadas, lança-morteiros, o diabo a quatro.

O bicheiro pediu para examinar um Colt 44 com cabo de madrepérola.

Pegou a arma, alisou o cabo, examinou o tambor, testou o gatilho, fez três vezes seguidas o gesto de sacar a arma da cintura e mirar em um inimigo imaginário, tal como havia aprendido nos filmes de faroeste, e aí perguntou do Afonsinho:

– Tem bala dum dum?...

Afonsinho lhe deu seis balas dum dum.

Ivan Chibata colocou pacientemente as balas no tambor, fechou o tambor, apontou a arma pra cima e apertou o gatilho.

Além do barulho ensurdecedor, a bala dum dum fez um buraco de meio metro no teto de zinco da boate.

– Bom, muito bom! – avisou o bicheiro, devolvendo a arma a Afonsinho. – Leva amanhã lá na banca, que eu compro!

Aí, entrou no “Trovão Azul” e caiu fora.

O João Aragão que depois desse um jeito de consertar o telhado da boate.

O bicheiro era marrento.

Nei Parada Dura e a princesinha de Mônaco



Setembro de 1980. Frank Cavalcante, Lourival Magalhães e Nei Parada Dura estavam indo para uma festa de aniversário do Dejanir Cavalcante, irmão do Frank e dono da Orobó Veículos, no Balneário Paxiúba, quando, próximo da Estrada do Aeroporto, avistaram uma preguiça atravessando a pista.

Nei Parada Dura, que tinha o estranho hábito de coçar a orelha direita com o braço esquerdo passando por trás da nuca semelhante aos macacos, se escalou para pegar o animal.

Foi amor à primeira vista. A preguiça se encantou com o novo dono e ele com ela.

Em uma das vendinhas de beira de estrada, Nei Parada Dura comprou uma penca de bananas-najá e começou a alimentar a preguiça.

– Essa aqui é a princesinha Caroline de Mônaco, o meu mais novo amor! – dizia Nei Parada Dura, com a preguiça sentada em seu colo. – Fala aqui com o tio Frank e diz como você é bonitinha!

Aí, segurando as patas do animal com uma das mãos, esticava as garras afiadas da preguiça em direção ao motorista, que só faltava perder a direção, assustado com o tamanho das unhas da princesa.

Quando eles chegaram no Paxiúba, uma surpresa: o vigia explicou que a festa de aniversário seria no dia seguinte, domingo, e não naquele sábado.

Eram quase 15h e não havia absolutamente nenhum tipo de comida no lugar.

Como os três já estavam com o estômago roncando, resolveram deliberar sobre o que fazer.

Prevaleceu a lógica, apesar dos protestos histéricos do Nei Parada Dura, e a preguiça foi para o sacrifício.

Eles comeram a princesinha Caroline de Mônaco assada na brasa.

Nei Parada Dura nunca mais se recuperou do trauma emocional.

Eu, Luluca e Monga, a mulher gorila



Marlon, Petroba, Luluca, Sadok, Afonso, Ricardão, Edlúcio, Antídio e Sici

Setembro de 1972. Uma atração circense estava tirando o sono dos adolescentes da Cachoeirinha. Intitulada “Monga, a mulher gorila”, o quadro apavorante estava sendo exibido em uma pequena barraca montada na Avenida Eduardo Ribeiro, nas proximidades do Cine Odeon.

Uma tarde, eu e Luiz Carlos, o “Luluca”, criamos coragem e fomos conferir a presepada.

Havia uma fila imensa diante da barraca, onde um homem de paletó xadrez e camisa roxa gritava a pleno pulmões, procurando atrair os curiosos, sobre a ferocidade do animal.

Ao seu lado, uma bonita morena, de coxas grossas, lábios vermelhos, cabelos longos e negros, clichê da sensualidade. Verdadeiro tesão.

Por que será que o medo atrai tanto?

Pagamos o ingresso, nos enfiamos na fila e nos preparamos mentalmente para sofrer um choque.

A Monga era o maior sucesso da época.

Ela antecipou os filmes de horror de Jason, do Freddie Krueger, do Brian de Palma, da longa série de dráculas e vampiros que povoaram o cinema no começo dos anos 80.

Ao entrarmos, escuridão total. Uma luz débil, amarelada, mostrava a morena sensual da entrada, fazendo pose de inocente e desamparada.

Súbito, a luz tremia, piscava, ouviam-se trovões. Música de órgão, música agressiva, a luz caía outra vez, uma grade surgia com estrondo, fechava o palco.

Nesse momento, tudo se tornava nebuloso, imagens indistintas. Como se estivesse passando um filme desfocado.

Algo semelhante a uma penugem cobria o corpo da linda morena que, nessa altura, imitava, com a boca e os olhos, esgares de pavor.

Um arrepio corria a plateia, composta por velhos, crianças, colegiais, casais de namorados ou garotões metidos a macho, como nós dois.

Era também um modo de se tirar uma “casquinha” (gíria da época) das gurias.

Ficávamos estrategicamente por perto de alguma menina, porque na hora agá elas se agarravam no primeiro macho que estivesse à mão.

A penugem sobre a morena ia aumentando. Nessa altura, não se enxergava quase nada porque a luz era bastante baixa.

Um estrondo, relâmpagos, luz total e eis, por trás das grades, a temível Monga, a mulher gorila.


Ao contrário da dócil morena, Monga era a fúria em pessoa.

Agarrava-se às grades, pulava, rugia, esturrava, mugia, estrebuchava, dava saltos acrobáticos.

As pessoas riam nervosamente. Até que, de repente, a Monga arrebentava as grades e avançava em cima do público.

Boa parte da plateia saía correndo pela porta de saída.

O sujeito de paletó xadrez e camisa roxa fingia um nervosismo calculado:

– Calma, meu gorila!... Calma, meu gorila!...

Depois de mais um acesso de fúria, Monga se recolhia lentamente de volta ao palco. O sujeito de paletó xadrez e camisa roxa trancava a grade.

A iluminação baixava, a penugem começava a desaparecer e, de repente, em meio a trovões e relâmpagos, eis a morena de volta.

Ela abria a grade e, sendo segura pela mão do sujeito de paletó xadrez e camisa roxa, se dirigia até a plateia onde agradecia os aplausos. O espetáculo estava acabado.

Assistimos ao mesmo show umas quatro vezes seguidas. A gente saía e ficava se perguntando como o truque era feito.

Diziam que eram espelhos, mas como? Nunca se descobriu de que modo a transformação se dava.

Mas não vamos ser pentelhos! Tem maior chato do que aquele que descobre o truque do mágico?

A mágica não está em não descobrir o truque, a jogada, o lance de dados?

Em ser ludibriado e se divertir, porque houve prazer, tensão, nervosismo, se desfrutou e foi bom demais?...

Anos mais tarde, já presidente do GRES Andanças de Ciganos, Luluca costumava encerrar os previsíveis bate-boca entre os diretores de ala durante a avaliação do desfile da escola recitando um mantra inesquecível:

– Calma, meu gorila!... Calma, meu gorila!...

Quem tivesse assistido ao espetáculo da Monga, obviamente, se esbaldava de rir.

O bem-humorado Luluca morreu precocemente nos anos 90, vítima de infarto.

Tenho (temos) saudade.