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quinta-feira, abril 30, 2020

Meu amigo Francisco Costa



Nunca imaginei que um dia estaria usando esse espaço poético e bem-humorado para fazer necrológio de amigos queridos. A pandemia do covid-19 tem sido uma desgraça sem fim. Na última segunda-feira perdi um amigo mais do que querido, uma amizade de 54 anos sem nunca termos travado uma mísera discussão sequer: o engenheiro civil Francisco Costa.

Das boas lembranças que guardo do sacana, uma manhã de domingo, sol quase a pino, ele passou lá em casa e avisou:

– Êi, seu Simão, eu vou levar o Simãozinho emprestado para me ajudar numa tarefa que só ele tem inteligência pra fazer...

Eu tinha 12 anos, o Chico Costa, uns 16. A tarefa? Afinar cerol de papagaio. Ainda não havia a casa do seu Chico Eletricista. Na época, aquilo era um terreno urbano da Dona Sila, mãe do Almir Português. Havia um poste de concreto no começo do terreno, no cruzamento das ruas Parintins e Borba, e outro poste praticamente em frente da nossa casa.

Chico havia esticado umas 800 jardas de linhas branca enlaçando os dois postes. Parecia um labirinto. Explicou a técnica:

– Eu vou passar o cerol grosso, na mão cheia, você vem atrás com os dedos polegar e indicador feito pinças, afinando o cerol. Não precisa botar muita pressão. Tu não é jumento, tu sabe do que estou falando! A parte mais difícil vai ser na linha que envolve o poste. Aí, você afina com a ponta das unhas, pro cerol passar por outro lado da linha. Se ficar só de um lado, é ali que vão nos cortar! Tu não é jumento, tu sabe do que estou falando!

De repente, estou envolvido sem querer em uma merda que nunca dei valor: empinar papagaios! Cumpri minha tarefa com estoicismo: indo e vindo em torno das linhas esticadas, acho que fizemos umas vinte viagens. Esperamos uma meia hora sentados embaixo de um pé de castanholeira que havia em frente de casa. Daí, ele foi lá e começou a enrolar a linha numa maçaroca.

Aí, voltou em casa e gritou lá pra dentro:

– Êi, seu Simão, estou devolvendo o Simãozinho! Não lhe disse que ele é foda?...

E foi embora com seu famão do Botafogo para infernizar a vida dos outros empinadores.


Muitos anos depois, em 1974, eu fazendo engenharia na Utam, ele se preparando para fazer engenharia civil na FUA, foi se queixar pra mim:

– Porra, Simãozinho, chamei um zé buceta para me ajudar a fazer um muro no quintal de casa e o vagabundo me sacaneou, falou que não era ajudante de pedreiro... Aí, no dia seguinte, me pediu pra pagar uma dose de cana pra ele no Bar do Aristides. Mandei tomar no cu! Não quer ganhar dinheiro trabalhando? Vá se foder... A porra desse nosso bairro só tem murrinhas, caralho!

Aí, ficando mais puto do que de costume:

– Murrinhas do Egito, carálio!... Esses vagabundos estão no planeta desde a construção das pirâmides...

Ri pra carálio. E falei:

– Isso é um bom nome para um time de futebol aqui da Caxuxa!

O resto é história.

Há cinco anos, num livro que estou escrevendo para complementar o “Cowboys Fora-da-Lei”, que nomeei de “Pai Simão & Outras Histórias”, fiz o texto abaixo:


DO lado oposto da Rua Borba, praticamente em frente da casa do Mário Adolfo, ficava a casa de Francisco (aka “Chico Cavalinho”, porque era gentil e atencioso como um quadrúpede com os poucos desafetos), Flávio (aka “Fábio”), Fernando (aka “Linguinha”, porque tinha o hábito de morder a língua quando ficava irritado), Graça e Glória Costa (aka “Gói”), localizada exatamente ao lado do Top Bar.

Dona Otília, mãe da galera, tinha uma loja de confecções no Mercadinho das Novidades, e o seu Zé Costa, pai dos moleques, foi um dos maiores intelectuais que conheci. Aliás, ele criou os cinco filhos vendendo livros espiritualistas e esotéricos de porta em porta e passou a vida inteira tentando catequizar eu e Mário Adolfo para entramos na Maçonaria. O fato de eu já ser filiado à Ordem Rosa Cruz não lhe dizia respeito. Ele queria me ver na Maçonaria, que julgava ser o começo de tudo. Alguns dos melhores livros que li na vida, me foram vendidos ou doados graciosamente por ele. Era um grande espírito de luz.

Chico, Fábio e Fernando eram viciados em papagaios de papel. Como nunca aprendi a “flechar”, jamais me interessei pela brincadeira. Eu gostava de ver as “tranças” no céu e apreciar a confecção dos papagaios – ofício que o Mário Adolfo, inutilmente, tentou me ensinar uma porção de vezes. Também gostava de passar cerol nas linhas, mas a afinação do cerol era sempre feita por algum especialista no assunto. Os três irmãos possuíam técnicas específicas para as tranças.

O Chico Costa era o mais abusado de todos. Ele passava cerol em 800 jardas de “linha um”, usava mais 400 jardas de linha branca, empinava o papagaio no céu até ele se perder de vista e, lá do alto, como se fosse um falcão peregrino procurando uma presa, embicava em direção ao solo, fazia uma rasante pra direita a menos de dois metros do chão e subia novamente em direção ao céu, cortando três, quatro, cinco papagaios de uma só vez, tal a velocidade da manobra. Suas vítimas preferidas eram os empinadores de papagaio da Praça 14.

O Fernando Linguinha gostava mais de “embolada”. Além de usar “linha dois zero”, as rabiolas de seus papagaios possuíam várias lâminas de gilete encastroadas em palitos de fósforos, distribuídas estrategicamente ao longo da mesma. Na época, os papagaios de “famão” gostavam de executar a proeza de “cortar e aparar”.

Exímio flechador, Fernando se aproximava dos papagaios adversários como quem não queria nada e deixava eles avançarem em direção a rabiola do seu papagaio para só então executar uma rápida manobra de evasão que, quase sempre, cortava a linha dos adversários com a rabiola.

Na maioria das vezes, entretanto, Fernando optava por embolar seu papagaio entre o peitoral e a rabiola do adversário. Era quando ele se transformava em uma verdadeira máquina humana de “colher linha”. Suas braçadas vigorosas alcançavam a velocidade de 78 rpm. O papagaio adversário vinha bater em sua mão. Aí, era só quebrar a linha do peitoral e ficar com o troféu.

O Fábio era um empinador de papagaios mais clássico, que gostava de trançar descaindo a sua linha por cima da linha adversária como se seu papagaio já houvesse “quedado”. Enquanto Chico e Fernando utilizavam papagaios de 1 m de altura, Fábio preferia os modelos menores (30 cm), mais velozes e fáceis de se manobrar. Ele também utilizava “linha oito”, mais fina que a “linha um”, que se transformava em uma verdadeira navalha Solingen depois que recebia o cerol.

A fabricação de cerol envolvia uma mão de obra federal. Primeiro, era preciso transformar cacos de vidro em pó, usando um pilão de ferro. Os vidros azuis de leite de magnésia de Philips eram os mais requisitados, só perdendo para as raríssimas lâmpadas fluorescentes e as indefectíveis bolas de árvore de Natal. Depois, o pó era coado em meias de mulher para retirar o xerém, os pedacinhos maiores. Finalmente, era preciso encontrar uma boa cola de madeira em tabletes e derretê-la em banho-maria para só então misturar com o pó de vidro. Os mais afoitos usavam pó de ferro (“linhaça”), mas este tipo de cerol tinha o dom de apodrecer a linha no dia seguinte.

Uma meia dúzia de vezes, eu auxiliei o Fábio nas “passadas de fios com a maçaroca”, porque era um dos melhores moleques da rua nesse quesito. Explico melhor. Antigamente, as linhas de transmissão de energia elétrica residencial ocupavam apenas um lado das ruas. As pessoas que moravam do outro lado da rua precisavam de uma fiação complementar para levar a energia dos postes existentes no lado oposto da rua até as suas residências. Assim, as ruas ficavam coalhadas de fiação aérea, o que dificultava enormemente a mobilidade dos empinadores de papagaio.

Para se deslocar, por exemplo, da Rua Parintins até a Rua Tefé, ou seja, apenas um quarteirão, era necessário passar por cima de mais de 30 fiações, já que cada casa demandava, no mínimo, dois fios (fase e neutro). Daí a importância do “passador de fios”. Enquanto o empinador ficava flechando o papagaio para empiná-lo o mais alto possível, o passador tinha de calcular mentalmente quantos metros de linha teria que descair para efetuar a manobra porque a maçaroca seria presa com um nó falso.

Aí, vinha a parte mais difícil da operação: lançar a maçaroca sobre os fios e pegá-la do outro lado no mesmo momento em que o empinador soltava a linha do papagaio. Às vezes, a maçaroca caía entre dois fios paralelos e a manobra precisava ser refeita ao contrário. Nosso recorde, meu e do Fábio, foi ir da Parintins até a Manicoré e depois voltar, sem que eu errasse uma única “passada”. Coisa de profissional.

quinta-feira, abril 23, 2020

So sorry, mas o mocó está de luto!



Paula e Ivancy Wilkens, no GRES Reino Unido da Liberdade

O falecimento inesperado de dois amigos queridos (o jornalista Robson Franco, dia 20, e o microempresário Ivancy Wilkens, marido da minha secretária Paula, dia 22) adiaram as postagens sobre o livro de folclore. Estou ainda meio sem chão.

Nos últimos nove anos, eu falava com o Ivancy toda quinta-feira, quando ele vinha deixar a Paula aqui em casa para arrumar o mocó. Hoje, ele não vem.

Soube do infausto acontecimento pela própria Paula, por telefone, no início desta quarta-feira. Ivancy começou a sentir falta de ar na tarde de terça-feira. Procurou um SPA, onde foi medicado e mandado de volta pra casa. No início da noite, a falta de ar piorou. Um de seus primos, médico, desconfiou da covid-19 e o levou para um Pronto Socorro. Foi entubado, teve uma parada cardíaca e atravessou o espelho. Os legistas do IML apontaram como causa mortis pneumonia.

Custa crer que um atleta, gozando de uma saúde de ferro, tenha sido vencido por uma simples pneumonia, mas eu não sou médico para contestar o laudo. Ivancy foi velado na Funerária São Francisco, ali na Cachoeirinha, e sepultado ontem à tarde.

Sobre ele, já contei uma de suas histórias aqui no blog. Se quiser reler, acesse aqui:


Botafoguense histórico como seu irmão, João Nogueira postou hoje o seguinte texto no Facebook:

Ontem meu irmão, meu amigo, meu parceiro me abandonou, ainda estou buscando forças pra me reergue POIS O GOLPE FOI MUITO GRANDE, mas o meu conforto é saber que Deus tinha um plano pra ele e agora está melhor que eu, vá em paz meu irmão, porque aki eu ainda estou lutando contra esse vazio que ficou dentro mim, mas tenho certeza que um dia iremos nos encontrar novamente. TE AMO MEU PARCEIRO.

O compositor e sambista Marinho Saúba também postou no FB um texto a respeito:

Tô triste demais pelo passamento do meu querido amigo e irmão do coração Ivanci, pessoa do bem que só transmitia alegria, tinha muito o espírito de liderança, torcedor do Botafogo, Caprichoso e Reino Unido da Liberdade, todos os anos promovia seus passeios de barco ao Festival de Parintins e também as praias turísticas de Manaus, foi atleta da seleção de vôlei estudantil do Amazonas e como amante do futebol, era o goleador da pelada tradicional de fim de tarde de todas as sextas-feiras no Campinho da VM, era hilário quando fazia um gol, pois sempre usava esse bordão em tom de gozação " SÓ UM É LONA", referindo-se que somente um não era suficiente pra marcá-lo kkkk , sempre era um dos que encabeçavam a organização dos times da comunidade. Dr. Ivanci, como era chamado carinhosamente pelos amigos mais chegados, grande referência da Vila Mamão. Descanse em paz meu querido amigo e irmão do coração, que DEUS receba-o de braços abertos em seu Reino.


Eu, Robson Franco e Simas Pessoa, o Careca Selvagem, no Bar da Júlia, em dezembro último. No fundo, o eterno zagueiro Lúcio Preto, que também resolveu atravessar o espelho no início do ano

Do falecimento do jornalista Robson Franco, tomei conhecimento no mesmo dia via whtsapp. Ele era uma das figuras mais queridas do FB, de onde me afastei há alguns meses, mas de vez em quando eu entrava ao vivo na Tucupi Radio Web para conversarmos sobre abobrinhas.

Ele tinha planos de, ainda esse ano, fazer uma série televisiva chamada “De Bar em Bar”, onde eu faria o papel de âncora, contando causos, chistes e piadas nas mesas dos principais botecos da cidade. Chegamos a rascunhar o projeto, que foi adiado agora para as calendas gregas.

O portal BNC Amazonas, em texto assinado pelo jornalista Aguinaldo Rodrigues, assim noticiou a tragédia:

Jornalista Robson Franco, o “Tucupi Radio-Web”, morre em Manaus

O jornalista Robson Franco não resistiu no início da noite desta segunda (20) a um problema de saúde. A causa da morte ainda não foi divulgada.

Há algumas semanas, portanto, ele vinha debilitado por uma infecção, que acreditava ser estomacal. Com receio de se contaminar pelo coronavírus (covid-19), evitava ir a hospitais públicos em busca de socorro.

Como sua saúde ficava a cada dia mais debilitada, chegando a perder 25 quilos de seu peso, conforme informou em post no Facebook, sua esposa decidiu levá-lo no final da madrugada de hoje ao hospital 28 de Agosto.

Contudo, o socorro não chegou a tempo.

Como se definia

“Racional emotivo, aquele que defende suas ideias e ideais com paixão! Solidário e companheiro sempre! Se tu estás bem, eu fico bem! Não sou do contra, sou do fresca!”


Carreira


Egresso do curso de comunicação social da Ufam (Universidade Federal do Amazonas), Robson atuou nos principais veículos de imprensa de Manaus.

Por essa razão, centenas de mensagens nas redes sociais, de amigos e familiares, lamentaram a morte do jornalista, aos 51 anos.

Antenado com a internet, foi dos primeiros jornalistas do Amazonas a usar amplamente as redes sociais, interagindo com centenas de pessoas de todo o mundo.

Com a derrocada dos veículos impressos, Robson criou a radioweb Tucupi, por onde conquistou boa audiência.

quinta-feira, abril 16, 2020

Dabacuri



Faz tempo que não posto nada aqui. Sacanagem minha com meus 25 leitores registrados em cartório. Mas é que perdi tantos amigos nesse começo de ano que resolvi dar um tempo.

Foi na semana passada que uma amiga querida deu o toque: “E se em vez deles, fosse você? A gente ia se privar dos textos que você pesquisou? Isso é sacanagem...”

Pois é. Eu queria fazer uma surpresa. Lançar um puta livro sobre a cultura popular de Manaus. Mas que surpresa é essa, por favor? Não é melhor mostrar logo a porra do livro aqui na web, que dá pra todo mundo acessar?

Foi por causa dela que resolvi mostrar o primeiro livro, “Dabacuri”, e o resto da tropa. São textos longos. Foda-se. Vou começar do começo. Com a apresentação. Vamo que vamo!

Vou começar com um quadro do meu querido e saudoso Roland Stevenson, pintor chileno, meu camarada. Ele era um gênio.


A imagem que ele fazia das Amazonas era exuberante. Visitei algumas vezes seu studio ali na Av. Constantino Nery. Conversávamos muito, ríamos muito, discutíamos muito. Uma das pessoas queridas que se foi, como se vão as coisas boas que a gente ama.


Num lugar que não se sabe bem ao certo onde, talvez nas planícies frias da margem esquerda do rio Danúbio, na Bulgária, numa época que fica entre a mitologia e a história, viveram as mulheres chamadas Amazonas. Eram frias, belas e bárbaras. Não toleravam os homens, a não ser quando os capturavam para se reproduzirem. Amazonas vem de “amazon”, em grego: “as que não têm seio”. Porque, de tão apaixonadas pela guerra, dizem, arrancavam um dos seios para melhor manejar o arco e a lança.

A Grécia mitológica é povoada de histórias dessas mulheres extremadas, descendentes do deus da guerra Ares (Marte, entre os latinos) e da ninfa Harmonia. O incrível herói Hércules esteve nesse reino encantado com a missão de se apoderar do cinto de Hipólita, a rainha. Quase teve êxito. Hipólita apaixonou-se por ele e lhe daria de boa vontade o cinto, não fosse suas guerreiras terem iniciado uma rebelião, fomentada, aliás, pela deusa Hera, uma ciumenta amiga de Hércules. O prodigioso Hércules mata Hipólita para conseguir o cinto e retira-se de Temiscira, capital do reino das guerreiras, combatendo furiosamente. Pelo menos assim é a lenda.

Em 1539, as Américas estavam ainda mal descobertas. E o mito das Amazonas não era muito mais fantástico que as terras para onde se dirigiam aventureiros como Dom Francisco de Orellana, que vinha à misteriosa América, como disse um de seus poetas, realizar “un sueño heroico y brutal”. Orellana era um dos comandantes de Francisco Pizarro, o sombrio e inclemente conquistador do Peru. Este ouvira falar do Eldorado, um país fantástico de cidades de ouro, além dos Andes. E para lá, numa tropa com 4 mil índios escravos, 300 soldados, 150 cavalos, cães e porcos, despachou, no Natal de 1539, alguns de seus homens – entre os quais Orellana – sob o comando de seu irmão Gonzalo.

A viagem deste segundo Pizarro foi um roteiro de misérias. A escalada dos Andes custou à expedição mais que o pior dos combates. Tiveram de comer frutos desconhecidos e raízes, solas de sapatos e arreios. Já na encosta leste dos Andes, Gonzalo Pizarro faz uma parada estratégica e manda cinquenta homens em busca de alimentos. No comando envia Orellana, do qual esperaria socorro, em vão: o cavalheiro foge para a imortalidade. Vai descobrir o rio das Amazonas.

Do rio Coca, onde estava Gonzalo Pizarro, Francisco Orellana chegou ao rio Napo. Após uma jornada de 600 quilômetros pelo rio Napo, sob a ameaça constante dos índios omáguas, ele atingiu um caudal barrento que chamou de rio Orellana. E o seguiu, abandonando Gonzalo à sua própria sorte. O rio barrento era o Solimões, cujo nome é uma referência aos nomes dos povos que originalmente habitavam suas margens, os índios Sorimões (ou ainda Joriman ou Sorimão), termo derivado da palavra latina solimum, referência ao veneno utilizado nas pontas de flechas e dardos destes povos.

Os navegantes seguiram pelo rio Solimões por mais 1.200 quilômetros até a sua confluência com o rio Negro, que alcançaram no dia 3 de junho de 1542. O rio nascido daquele “encontro das águas” foi designado pelos membros da expedição como Grande Río, Mar Dulce e Río de la Canela. Orellana alegou ter encontrado em suas margens grandes caneleiras, árvores das quais se obtem a canela, uma das especiarias mais importantes e desejadas na Europa da época. A árvore, no entanto, não é nativa da América do Sul e só podia ser encontrada, à época, no Oriente. Outras plantas semelhantes, no entanto, como o loureiro e o pau-rosa, são nativas da região, e Orellana poderia estar se referindo a elas. Depois de muito viajar, numa segunda-feira, conta frei Gaspar Carvajal, cronista da viagem, Orellana e seus homens chegaram a um povoado indígena, em cuja praça se erguia um palanque representando uma cidade murada. Perguntando aos índios, “por cual memoria tenían aquello”, responderam que os habitantes da aldeia eram servidores das “icamiabas” (na língua dos índios, “mulheres sem marido”).

Diz frei Carvajal que um índio prisioneiro informou serem elas todas solteiras. Moravam sete dias rio Nhamundá acima, em setenta povoados, com muralhas que se comunicavam por estradas bem guardadas. Diz Carvajal: “El Capitán (Orellana), le preguntó sí estas mujeres parían; el indio dijo que si. El capitán le dijo que, como, no siendo casadas, ni reside hombre entre ellas, se empreñaban. Él dijo que estas indias participan com indios em tiempos, y quando les viene aquela gana (...) por fuerza los traen a sus tierras y los tienem consigo aquele tiempo que se les antoja, y después que las hayan preñadas les tornam a enviar a sua tierra (...); y después, cuando vienne el tiempo que han de parir, que si paren hijo le matan y le envian a sus padres, y si hija la crían com muy gran solemnidade”.

Descendo mais, na foz do rio Nhamundá, Orellana teria travado feroz encontro com essas guerreiras. Não tinha jeito ruim a batalha naquele dia 24 de junho, dia de São João. Dos bergantins, os homens de Francisco Orellana estavam esvaziando de inimigos, com rajadas de arcabuz e de balestra, as brancas canoas vindas da costa. Mas aí, a bruxa deu as caras. Apareceram as mulheres guerreiras, tão belas e ferozes que eram um escândalo, e então as canoas cobriram o rio e os navios saíram correndo, rio abaixo, como porco-espinhos assustados, eriçados de flechas de proa a popa e até no mastro-mor.


As capitãs lutaram rindo. Se puseram à frente dos homens, fêmeas garbosas, e já não houve medo na aldeia de Conlapayara. Lutaram rindo e dançando e cantando, as tetas vibrantes no ar, até que os espanhóis se perderam para lá da boca do rio Tapajós, exaustos de tanto esforço e assombro. Tinham ouvido falar destas mulheres, e agora acreditam. Elas vivem ao sul, em senhorios sem homens, onde afogam os filhos que nascem varões. Quando o corpo pede, dão guerra às tribos da costa e conseguem prisioneiros. Os devolvem na manhã seguinte. Ao cabo de uma noite de amor, o que chegou rapaz regressa velho.

Orellana e seus soldados continuarão percorrendo o rio mais caudaloso do mundo e sairão ao mar sem piloto, nem bússola, nem carta de navegação. Viajam nos bergantins que eles construíram ou inventaram a golpes de machado, em plena selva, fazendo pregos e bisagras com as ferraduras dos cavalos mortos e soprando o carvão com botinas convertidas em foles. Deixam-se ir sem rumo pelo rio das Amazonas, costeando a selva, sem energias para o remo, e vão murmurando orações: rogam a Deus que sejam machos, por mais machos que possam ser, os próximos inimigos.

A história ou o mito maravilhoso das icamiabas dominou o resto da viagem. Orellana rebatizou o grande rio: de rio das Canelas passou a chama-lo de rio das Amazonas. O espanhol voltou à América, em 1550, como governador-geral do território por ele descoberto. Mas morreu de malária, com 44 anos, na costa da atual Guiana Francesa, depois de dois meses no labirinto de ilhas do arquipélago de Marajó, procurando, em vão, a entrada do rio das Amazonas.

Realidade ou ficção, a lenda das amazonas/icamiabas se enraizou de tal forma no imaginário da população nativa que passou a fazer parte do folclore da região. Foi por causa desse folclore que a Província de São José do Rio Negro se transformou em Amazonas, após se desmembrar da Província do Grão-Pará, em 1850, e posteriormente toda a região que abrange a maior floresta tropical do planeta passou a se chamar Amazônia.

Mas afinal de contas o que é folclore? Segundo a Carta do Folclore Brasileiro, aprovada pelo I Congresso Brasileiro de Folclore, em 1951, “constituem fato folclórico as maneiras de pensar, sentir e agir de um povo, preservadas pela tradição popular, ou pela imitação, e que não sejam diretamente influenciadas pelos círculos eruditos e instituições que se dedicam ou à renovação do patrimônio científico e artístico humano ou à fixação de uma orientação religiosa e filosófica”.

Na verdade, todos os povos possuem suas tradições, crendices e superstições, que são transmitidas através de lendas, contos, narrativas, provérbios e canções. Esses veículos de expressão popular são transmitidos de uma geração a outra e passam a pertencer a um determinado povo de tal modo que desconhecemos os seus autores.

As lendas são estórias contadas por pessoas e transmitidas oralmente através dos tempos. Misturam fatos reais e históricos com acontecimentos que são frutos da mais fantástica fantasia. As lendas geralmente fornecem explicações plausíveis e até certo ponto aceitáveis para coisas que não têm explicações científicas comprovadas, como acontecimentos misteriosos ou sobrenaturais. Muitas dessas lendas são derivações de narrativas mitológicas dos povos europeus – e aqui podemos citar o caso da Yara ou Mãe d’Água, uma sereia da Amazônia que parece ter sido inspirada nas sereias da mitologia grega narradas por Homero, na “Odisseia”. Como diz o dito popular que “quem conta um conto aumenta um ponto”, as lendas, pelo fato de serem repassadas oralmente de geração a geração, sofrem alterações à medida que vão sendo recontadas.

Os mitos são narrativas mais bem elaboradas que possuem um forte componente simbólico. Como os povos da antiguidade não conseguiam explicar os fenômenos da natureza através de explicações científicas, criavam mitos com este objetivo: dar sentido às coisas do mundo. Os mitos também serviam como uma forma de transmitir conhecimentos e alertar as pessoas sobre perigos e ameaças, desvios de conduta, ambição, orgulho, inveja e outros defeitos ou qualidades inerentes ao ser humano. Deuses, heróis e personagens sobrenaturais se misturam com fatos da realidade para dar sentido à vida e ao mundo. Ao contrário da explicação filosófica, que se utiliza da argumentação lógica para explicar a realidade, o mito explica a realidade através de suas histórias sagradas, que não possuem nenhum tipo de embasamento científico para serem aceitas como verdadeiras. Todas as culturas possuem seus mitos. Alguns assuntos, como a criação do mundo, deram origem a vários mitos diferentes.

A origem das superstições está na visão mágica, sobrenatural e irracional que se tem do mundo. Segundo Luís da Câmara Cascudo, as crendices populares “participam da própria essência intelectual humana e não há momento na história do mundo sem a sua inevitável presença”. Algumas dessas superstições são sobejamente conhecidas: passar embaixo de escada dá azar. Coceira na palma da mão é sinal de que há dinheiro chegando. A visita chata vai embora se uma vassoura for colocada atrás da porta. Quebrar um espelho dá sete anos de azar. Se a sua orelha estiver quente ou vermelha, alguém está falando mal de você. Não se deve deixar o chinelo virado de ponta-cabeça porque isso traz mau agouro. Pé de coelho, trevo de quatro folhas e ferradura dão sorte. Bater na madeira três vezes espanta o azar. Faça um pedido para uma estrela cadente e ele vai se realizar.

O folclore também se associa frequentemente às tradições religiosas, acrescentando elementos novos aos rituais tradicionais. Grandes festas populares como o carnaval no Brasil, o mardi gras nos EUA e o dia de São Patrício na Irlanda, são alguns exemplos disso. O sincretismo religioso, isto é, as misturas de rituais e crenças religiosas de várias tradições, quase sempre se faz presente na base constitutiva da cultura popular. A prática de se “benzer” um doente, de se “fechar o corpo” contra males por meio de feitiços, de se “rezar” com folhas de arruda ou de pião roxo para tirar o “quebranto” de uma criança e outras variações semelhantes, são resultado deste sincretismo.


Em linhas gerais, as tradições populares são conservadas através do folclore. Por meio de um folguedo, como o do “boi-bumbá”, toda uma herança imaterial – isto é, um estoque de valores e sabedoria tradicionais – é passado de geração em geração. Entre as lendas e mitos mais conhecidos do Brasil podemos citar os seguintes:

Boitatá – Representada por uma cobra de fogo que protege as matas e os animais e tem a capacidade de perseguir e matar aqueles que desrespeitam a natureza. Acredita-se que este mito é de origem indígena e que seja um dos primeiros do folclore brasileiro. Foram encontrados relatos do boitatá em cartas do padre jesuíta José de Anchieta, em 1560. Na região nordeste, o boitatá é conhecido como “fogo que corre”.

Boto – Acredita-se que a lenda do boto tenha surgido na região amazônica. Ele é representado por um homem jovem, bonito e charmoso que encanta mulheres em bailes e festas. Após a conquista, leva as jovens para a beira de um rio e as engravida. Antes de a madrugada chegar, ele mergulha nas águas do rio para transformar-se em um boto novamente. Por este motivo, a população ribeirinha costuma afirmar que o boto é o pai de todos os filhos de origem desconhecida.

Boiaçu – Cobra grande, também conhecida como “boiuçu”. No lendário amazônico há uma enorme variedade de estórias onde a cobra grande é a figura central, que vira canoas, interdita rios e ilumina as águas escuras com seus olhos de fogo. Uma das mais conhecidas é a dos irmãos gêmeos Honorato e Maria Caninana, nascidos na região do rio Trombetas, no Pará. O poema “Cobra Norato”, do poeta modernista Raul Bopp, ajudou a popularizar a lenda.

Curupira – Personagem travesso do folclore brasileiro, o Curupira é a representação de um menino com cabelos vermelhos, dentes verdes e pés virados para trás. A origem do nome é do tupi-guarani que significa “corpo de menino”. Considerado o protetor da fauna e da flora, o Curupira assobia e deixa pegadas com seus pés virados com o objetivo principal de enganar os exploradores e destruidores da natureza. Quando alguém desaparece nas matas, muitos habitantes do interior acreditam que é obra do Curupira.

Lobisomem – De origem europeia, a lenda do Lobisomem retrata um monstro violento com formas humanas e de lobo, que se alimenta de sangue. Acredita-se que quando uma mulher tem sete filhas e o oitavo filho é homem, esse último provavelmente será um Lobisomem. Outra versão sustenta que um homem foi atacado por um lobo numa noite de lua cheia e não morreu, porém desenvolveu a capacidade de transformar-se em lobo e atacar todo mundo que encontra pela frente. Noutras regiões, a lenda apresenta outras características, visto que o Lobisomem sempre se manifesta em crianças não batizadas. A transformação ocorre nas encruzilhadas em noites de lua cheia por volta da meia noite. Entretanto, ao amanhecer, ele torna-se novamente humano. Somente um tiro de bala de prata em seu coração seria capaz de matá-lo. Uma das variantes desta lenda na região Norte dá conta de que homens e mulheres se transformam em porcos nas noites de sexta-feira.

Mãe-D'água – Conhecida como “Yara” ou “Uiara”, a lenda da Mãe-D’água é de origem tupi e o nome significa “Senhora das Águas”. Esta personagem representa uma sereia belíssima que atrai os pescadores com suas doces canções a fim de matá-los. Antes de ser uma sereia, Yara era uma índia extremamente bela e inteligente que despertava muita inveja na tribo, inclusive de seus irmãos. Assim, com o intuito de acabarem com o problema, os irmãos resolveram matá-la, mas no final foi ela que acabau os matando. Como punição, os outros índios da tribo acorrentaram e lançaram Yara no encontro das águas dos rios Negro e Solimões. A partir daí ela se transformou em uma sereia com objetivo de encantar todos os homens que encontrar e leva-los para o seu reino no fundo do rio. Encontramos na mitologia universal um personagem muito parecido com a Mãe-D’água: a sereia. Este personagem tem o corpo metade de mulher e metade de peixe. Com seu canto atraente, ela também consegue encantar os homens e levá-los para o fundo das águas.

Corpo-seco – É uma espécie de assombração que fica assustando as pessoas nas estradas. Em vida, era um homem que foi muito malvado e só pensava em fazer coisas ruins, chegando a prejudicar e maltratar a própria mãe. Após sua morte, foi rejeitado pela terra e teve que viver como uma alma penada.

Pisadeira – É uma velha de chinelos que aparece nas madrugadas para pisar na barriga das pessoas, provocando a falta de ar. Dizem que costuma aparecer quando as pessoas vão dormir de estômago muito cheio.

Cuca – De origem portuguesa, a lenda da Cuca está associada muitas vezes com o “bicho papão”, ou seja, ela é uma personagem muito temida pelas crianças, pois reza a lenda que se trata de uma velha feia e malvada, com cara de jacaré que raramente dorme. Sua personagem está associada ao rapto de crianças desobedientes e que apresentam resistência para dormir. Por isso, a tradicional cantiga de ninar crianças expõe o seguinte trecho: “Nana neném que a Cuca vem pegar”.

Mula-sem-cabeça – Segundo a lenda, a mula sem cabeça é um monstro do folclore brasileiro que se manifesta quando uma mulher namora um padre e, por maldição, é transformada em mula. Bastante conhecida em todo o Brasil, esta personagem folclórica é representada, literalmente, por uma mula sem cabeça, que solta fogo pelo pescoço e tem como finalidade assustar pessoas e animais.

Mãe-de-ouro – Representada por uma bola de fogo que indica os locais onde se encontra jazidas de ouro. Também aparece em alguns mitos como sendo uma mulher luminosa que voa pelos ares. Em alguns locais do Brasil, toma a forma de uma mulher bonita que habita cavernas e, após atrair homens casados, os faz largar suas famílias.

Saci-Pererê – Nome de origem tupi-guarani, o Saci-pererê é uma das lendas brasileiras mais conhecidas. É representada por um menino negro que possui uma perna só, fuma cachimbo e usa um gorro vermelho, que lhe dá poderes mágicos. Muito brincalhão, o Saci se manifesta tal qual um redemoinho, vive aprontando travessuras e se diverte muito com isso. Adora espantar cavalos, queimar comida e acordar pessoas com gargalhadas. Embora o Saci-pererê seja o mais conhecido, existem três tipos de saci: o Pererê, o Trique e o Saçurá.

Comadre Florzinha – É uma fada pequena que vive nas florestas do Brasil. Vaidosa e maliciosa possui cabelos compridos e enfeitados com flores coloridas. Vive para proteger a fauna e a flora. Junto com suas irmãs costumam aplicar sustos e fazer travessuras com os caçadores e pessoas que tentam desmatar a floresta


Negrinho do Pastoreio – De origem afro-cristã e pertencente ao folclore do sul do País, o Negrinho do Pastoreio representa a história de um menino escravo que foi muito castigado pelo seu patrão. Um dia, quando foi pastorear os cavalos, acabou por perder um cavalo baio. Depois de ter sido martirizado violentamente pelo fazendeiro e jogado semimorto num formigueiro, o Negrinho do Pastoreio reapareceu sem marcas nenhuma pelo corpo, ao lado da Virgem Maria e montado no cavalo baio. Curioso notar que muitas vezes, as pessoas que perderam algum objeto, acendem uma vela e pedem para o Negrinho ajudá-los a recuperá-lo.

Além dos mitos e lendas, o folclore brasileiro apresenta uma grande diversidade cultural. Podemos também considerar como legítimas representações do nosso folclore os ritmos e danças folclóricas (quadrilhas, cirandas, carimbó, capoeira, frevo), comidas regionais típicas (canjica, tacacá, caruru, maniçoba, vatapá), músicas regionais (embolada, siriá, baião, xote, forró), encenações (marujada, bumba-meu-boi, congada, maracatu, cavalhada), representações artísticas (artesanato, confecção de rendas e cestas de palha, pinturas näif), brincadeiras e jogos infantis (trinta-e-um-alerta, boca-de-forno, macaca, barra-bandeira, garrafão), ditos populares (“isso é do tempo do Onça”, “aquilo é um caraxué!”), literatura de cordel, crendices e festas populares (carnaval, festa junina, Festa do Divino, Círio de Nazaré e Folia de Reis).

A palavra folclore foi utilizada pela primeira vez num artigo do arqueólogo William John Thoms, publicado no jornal londrino “O Ateneu”, em 22 de agosto de 1846 (por isso 22 de agosto é o dia do folclore). Ela é formada pelos termos de origem saxônica: “folk” que significa “povo” e “lore” que significa “saber”. Portanto o “folklore” é o saber do povo ou a sabedoria popular. No Brasil, a palavra adaptada tornou-se “folclore”.

Como todo mundo já sabe, o nosso folclore foi resultado da miscigenação de três povos (indígena, português e africano) e da influência dos imigrantes de várias partes do mundo. Por isso, nosso país tem uma tradição folclórica variada, rica e muito peculiar. Em cada região brasileira, o folclore apresenta semelhanças e diferenças.

Um grande estudioso do folclore nacional foi o já citado Luís da Câmara Cascudo, nascido em Natal, no Rio Grande do Norte em 1898 e autor de mais de 150 livros. Ainda hoje, a obra de Câmara Cascudo é uma referência imprescindível para se tratar do folclore, até porque diversas expressões folclóricas brasileiras por ele documentadas já desapareceram e não podem mais ser observadas. O folclore, em especial a partir do século 20, serviu de base para a produção da arte culta brasileira. Os exemplos estão presentes em todas as artes. O pintor ítalo-brasileiro Alfredo Volpi fez das bandeiras das festas juninas um elemento frequente de seus quadros e gravuras. O compositor fluminense Heitor Villa-Lobos aproveitou-se de temas do folclore em sua obra musical.

Na literatura, há no mínimo três autores de importância indiscutível que se utilizaram de elementos da cultura popular. O paulista Mário de Andrade, grande estudioso do folclore, escreveu sua obra-prima, “Macunaíma”, reunindo com olhar irônico e crítico inúmeras narrativas do folclore brasileiro. O mineiro João Guimarães Rosa, autor de “Grande Sertão: Veredas” – um clássico da literatura nacional – tematiza a vida do sertanejo e trabalha tanto elementos característicos de narrativas folclóricas, quanto a própria forma sertaneja de uso da língua portuguesa. Da mesma maneira, o paraibano Ariano Suassuna compôs uma ampla obra teatral baseada na tradição folclórica nordestina. Como exemplo, podem-se citar “O Auto da Compadecida” ou “A Pena e a Lei”, sem falar no monumental “Romance da Pedra do Reino”.


Convém lembrar que o folclore brasileiro – ligado ao universo rural, pois a industrialização do país é recente, em termos históricos – chegou a influenciar nossos meios de comunicação de massa. O ator e diretor Amácio Mazzaropi levou o caipira do interior paulista para as telas do cinema. O animador de programas de auditório Abelardo Chacrinha Barbosa fez enorme sucesso na TV utilizando-se elementos de festas populares do Nordeste, como as disputas entre cordões (o encarnado e o azul), que eram mediados por um velho, a quem Chacrinha personificava (O Velho Guerreiro). Nos meios de comunicação de massa, como o cinema, a estética dos circos mambembes que percorriam o interior do país também pode ser encontrada em produções cinematográficas inusitadas como os filmes de terror de José Mojica Marins, conhecido como Zé do Caixão.

A Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura) considera o folclore sinônimo de cultura popular na medida em que “representa a identidade social de uma comunidade por meio de suas criações culturais, coletivas ou individuais, sendo uma parte significativa da vida cultural de cada nação”. Sustenta também que o folclore não é um conhecimento “cristalizado”, embora tenha raízes nas tradições, que podem ser muito antigas, mas que se transforma a partir do contato entre as culturas distintas, oriundas das migrações, e através dos meios de comunicação, nos quais se inclui ultimamente a internet. Parte do trabalho da Unesco é orientar as comunidades para bem administrarem sua herança folclórica, observando que o progresso e as transformações provocam mudanças que tanto podem enriquecer uma cultura como destroçá-la definitivamente.

Foi para resgatar nosso folclore nativo que tive a iniciativa de organizar este livro, sob a orientação do saudoso artista plástico, antropólogo e escritor Moacir Andrade, presidente da Sociedade para a Defesa da História e das Tradições Populares do Amazonas, falecido em julho de 2016, e contando com a imprescindível colaboração dos livreiros Antônio Diniz e Simas Pessoa. Não é um trabalho acadêmico sobre o folclore. É um livro de recordações que tem como mote o folclore amazonense praticado em Manaus. Dito de outra forma, esta simplória antologia é apenas uma contribuição menor sobre o assunto e visa sobretudo resgatar tanto os nomes dos pioneiros na criação de grupos folclóricos em nossa cidade quanto os daqueles dirigentes abnegados que na atualidade continuam pegando o pião na unha para colocar seu grupo folclórico na rua. Espero sinceramente que esse pequeno objetivo tenha sido alcançado.

Mas por que este livro sobre o folclore manauara se chama dabacuri? Bem, o dabacuri é uma cerimônia ritualística milenar dos povos indígenas do Alto Rio Negro que envolve a troca de conhecimentos entre as tribos dessa localidade sobre culinária, danças, frutos, peixes, artefatos, casas ancestrais, alianças matrimoniais, ritos de passagens, criação da humanidade, dos passáros, dos animais, dos seres míticos, dos astros, das estrelas, dos rios e das matas, numa tentativa de preservar essas informações para as futuras gerações. Acredito que transformar a literatura oral de nossos folcloristas manauaras em uma pequena obra literária acessível a um número maior de pessoas está dentro desse espírito comunitário e preservacionista que sempre moveu os povos da floresta. Por essa ótica, dabacuri e literatura oral são os dois lados da mesma moeda.

Simão Pessoa

quinta-feira, abril 02, 2020

Amigos, amigos… Caramba!



Américo Rodrigues, conhecido como Zé Américo - Foto: Arquivo pessoal

Por Mouzar Benedito

Uma vez o cartunista Fortuna foi visitar o Barão de Itararé e o apartamento dele estava cheio de baratas. Fortuna ameaçou pisar numa delas e o Barão não deixou: “Elas são minhas amigas”. E contou por quê.

Segundo ele, que foi preso em consequência da “Intentona Comunista”, na cadeia os presos tentavam se comunicar com outros de outras celas. Tentaram treinar uns ratos para levar mensagens em papel amarrado neles. Na hora H, “eles se comportavam como ratos mesmo”, contou o Barão. Em vez de levar as mensagens para o lugar para o qual tinham sido treinados, iam em direção à polícia, aos carcereiros. Aí experimentaram com baratas. Deu certo. Amarravam nelas papeizinhos com letrinhas minúsculas e elas levavam essas mensagens fielmente. Não sei como treinaram as baratas, mas o Barão garantia que era verdade.

Gosto de animais (nunca prendi nenhum, nem domestiquei), mas não de baratas, e minhas grandes amizades – tenho muitas – são humanas. Mas elas vão diminuindo.

Nos últimos tempos muitos amigos estão indo desta para uma melhor. Antes acontecia também, mas agora é com mais frequência. Tenho me lembrado da música “Canção da América”, interpretada por Milton Nascimento, especialmente do trecho que diz:“Amigo é coisa pra se guardar debaixo de sete chaves”. Uma época ouvi tanto essa música em enterros que pensei em mudar a letra com uma ironia triste: “Amigo é coisa pra se guardar debaixo de sete palmos”.

Ela não é mais cantada em enterros, pelo menos não ouvi.

Aliás, no final de março, perdi mais um amigo e para ele não houve “Canção da América”, nem mesmo despedida de amigos, por causa do confinamento em que estávamos. A morte não foi provocada pelo maldito coronavírus, foi ataque cardíaco. Acho que o clima de obscurantismo que abunda no Brasil atual deve ter influenciado.

Américo Rodrigues, conhecido como Zé Américo, foi meu colega de faculdade na USP nos anos brabos. Inteligente, criativo, ecologista quando esta palavra era praticamente desconhecida, foi ser professor de Geografia em São Luiz do Paraitinga. No começo da recriação do carnaval na cidade, fundamos (ideia dele) o bloco “Peida N’Água”, crítico e divertido. De lá para cá, muitos luizenses me disseram, com orgulho, se sentirem bem informados e críticos: “Fui aluno do professor Américo”.

Foi enterrado em Tremembé, sem a presença de quase ninguém. Só a mulher, Rose, e, acho, alguns poucos parentes.

Bem… Em vez de continuar falando dos meus amigos, o que ficaria parecendo puxação de saco, resolvi selecionar frases sobre amigos e amizade. São tantas (a maioria um tanto melosa) que não daria pra publicar nem um décimo. E não sei se escolhi as “melhores”. Procurei incluir algumas que vão contra o que penso. Aí vão elas:

Marguerite Yourcenar: “A amizade é, acima de tudo, certeza – é isso que a distingue do amor”.

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Carmem Sylva: “O amor pede, a amizade dá”.

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Blaise Pascal: “O amor é cego, a amizade fecha os olhos”.

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Sophie Arnould: “A amizade é irmã do amor, mas não na mesma cama”.

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Ditado popular: “Quem teima em dizer verdades, perde amizades”.

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Albert Camus: “Não ande na minha frente, eu posso não te seguir. Não ande atrás de mim, eu não posso liderar. Apenas ande ao meu lado e seja meu amigo”.

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Ditado típico dos capitalistas: “Amigos, amigos. Negócios, à parte”.

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Atribuída a Getúlio Vargas, mas poderia ser do Bolsonaro e sua turma: “Aos amigos, tudo. Aos inimigos, a lei”.

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Epicuro: “Não é tanto a ajuda de nossos amigos que nos ajuda, como a confiança de sua ajuda”.

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Leoni Kaseff: “A amizade é como a saúde: só depois de a perder se aquilata o seu valor”.

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O cachorrinho (personagem criado pelo Ohi e por mim, no jornal “Brasil Agora”, falando sobre Boris Ieltsin, presidente russo que escancarou o país aos capitalistas e tinha fama de manguaceiro): “Os inimigos me chamam de bêbado, os amigos me chamam para tomar mais uma”.

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Malba Tahan: “A boa amizade é para o homem o que a água pura e límpida é para o beduíno sedento”.

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Eu: “Quando um não quer, dois não são amigos”.

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Ditado popular: “Quem de todos é amigo, ou muito pobre ou muito rico”.

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Marlene Dietrich: “São os amigos que você pode ligar às 4h da manhã que importam”.

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Ditado popular: “Quem é amigo de todos, não o é de ninguém”.

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Francisco de Almeida: “As amizades fundadas em interesses (se as dessa qualidade podem ter esse nome) não duram mais que enquanto dura a ocasião e a esperança do proveito”.

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Ditado popular: “A amizade finda onde a desconfiança começa”.

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Francisco de Bastos Cordeiro: “Para as moléstias do corpo há vários remédios; para as da alma só há um: o amigo”.

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D. Xiquote (pseudônimo do escritor Bastos Tigre): “O verdadeiro amigo não esquece o favor que lhe prestamos; recorda-o para solicitar outros”.

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D. Xiquote, de novo: “Amigos do peito… sim, eles existem e é fácil encontrá-los entre as criancinhas de mama”.

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Capistrano de Abreu: “Sei que um respingo de lama não quebra osso; mas que prazer pode causar-me ver, por perfídia alheia, emporcalhado o rosto de um amigo?”.

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Capistrano de Abreu, de novo: “Uma amizade que se perde é como um vício que se larga; ganha-se com a perda”.

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Capistrano de Abreu, mais uma vez: “Os jesuítas tinham razão: nada de amigos íntimos”.

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Ditado popular: “Quem deixa de ser amigo, não o foi nunca”.

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Kim Hubbard: “Amigo é aquele que sabe tudo a seu respeito e, mesmo assim, ainda gosta de você”.

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Provérbio alemão: “Todo amigo é o sol do outro; ele puxa, ele segue”.

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Ditado popular: “Amigo de genro, sol de inverno”.

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Leonardo da Vinci: “Repreende o amigo em segredo e elogia-o em público”.

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Ditado popular: “Defeitos de meu amigo, lamento, mas não maldigo”.

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Júlio Diniz: “Há corações como a hera, que, onde quer que se encosta, prende-se com raízes”.

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Ditado popular: “Busca a amizade do teu igual, se és honrado e leal”.

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Rui Barbosa: “Amigos e inimigos estão, amiúde, em posições trocadas. Uns nos querem mal, fazem-nos bem. Outros nos almejam o bem, e nos trazem o mal”.

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Cora Coralina: “O amigo não passa a mão / Quando fizemos algo errado. / Está firme do nosso lado / Puxa a orelha, chama a razão”.

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Camilo Castelo Branco: “Em coisas insignificantes é que um verdadeiro amigo se avalia”.

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Ditado popular: “Amigos reconciliados, inimigos disfarçados”.

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Ditado popular: “Amigo remendado, café requentado”.

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Immanuel Kant: “A amizade é semelhante a um bom café; uma vez frio, não se aquece sem perder bastante do primeiro sabor”.

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Ditado popular: “Amigo, vinho e café, o mais antigo melhor é”.

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Leoni Kaseff: “Os parentes são amigos pelo corpo; os amigos são parentes pela alma”.

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Ditado popular: “Amigo velho é parente”.

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George Ade: “Com o tempo, qualquer amigo muito próximo e querido acaba se tornando tão inútil quanto um parente”.

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Ditado popular: “Mais vale amigo próximo do que parente afastado”.

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Donna Roberts: “Um amigo conhece a música do meu coração e canta para mim quando minha memória falha”.

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Ditado popular: “Bom é ter amigos ainda que seja no inferno”.

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Boris Karloff: “Os monstros foram os melhores amigos que já tive”.

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Ditado popular: “Mais vale deixar na morte ao inimigo do que perder na vida ao amigo”.

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Machado de Assis: “Há amigos de oito dias e indiferentes de oito anos”.

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Ditado popular: “Conhecidos muitos, amigos poucos”.

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Walther Waeny: “Um amigo que cala vale tanto quanto um inimigo que fala”.

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Ditado popular: “Amigo que não serve e faca que não corta, que se perca pouco importa”.

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Alfred de Musset: “As coisas mais desagradáveis que os nossos piores inimigos nos dizem pela frente não se comparam com as que nossos amigos dizem de nós por trás”.

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Oscar Wilde: “A melhor maneira de começar uma amizade é com uma boa gargalhada. De terminar com ela, também”.

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Ditado popular: “Mais vale um cachorro amigo do que um amigo cachorro”.

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Elizabeth Bowen: “A intimidade entre as mulheres é sempre ao contrário: começa com a troca de grandes revelações e termina com a troca de abobrinhas”.

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Condessa Marie B. Diane: “Nosso verdadeiro amigo é aquele que não nos desculpa nada e nos perdoa tudo”.

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Sidonie Collete: “Convém tratar a amizade como os vinhos, desconfiando das misturas”.

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Ditado popular: “Mais vale um amigo na praça do que dinheiro no caixa”.

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Florbela Espanca: “A amizade é o maior sentimento que não morre”.

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Tati Bernardi: “Amigo de verdade não é aquele que sempre te atura triste, denso e monotemático. Mas o que fala: mano tu tá mala”.

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Simone Weil: “A amizade não se busca, não se sonha, não se deseja; ela exerce-se (é uma virtude)”.

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Confúcio: “Para conhecermos os amigos é preciso passar pelo sucesso e pela desgraça. No sucesso, verificamos a quantidade; na desgraça, a qualidade”.

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Ditado popular: “Conhece-se o amigo na ocasião incerta”.

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Balzac: “A infelicidade tem isto de bom: faz-nos conhecer os verdadeiros amigos”.

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Cecília Meireles: “Há pessoas que nos falam e nem as escutamos, há pessoas que nos ferem e nem cicatrizes deixam, mas há pessoas que simplesmente aparecem em nossas vidas e nos marcam para sempre”.

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Provérbio inglês: “Não há pior inimigo que um falso amigo”.

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Machado de Assis: “Felizes os cães, que pelo faro descobrem os amigos”,

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Ditado popular: “Com um amigo desses, quem precisa de inimigos?”.

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Mark Twain: “A vida ideal consiste em ter bons amigos, bons livros e uma consciência sonolenta”.

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Elmer C. Leiterman: “Só existe uma coisa melhor do que fazermos novos amigos: conservar os velhos”.

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Linda Grayson: “Não há nada melhor do que um amigo, a não ser um amigo com chocolate”.

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Ditado popular: “Amizade de sogra e nora, só da boca pra fora”.

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Aristóteles: “A amizade é uma alma com dois corpos”.

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Jean Rostand: “Um amigo é a pessoa a quem mais se dá crédito quando fala mal de nós”.

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Ditado popular: “Amigo de meu compadre, porém mais da verdade”.

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Carlos Drummond de Andrade: “Como as plantas, a amizade não deve ser muito nem pouco regada”.

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Drummond, de novo: “A amizade é um meio de nos isolarmos da humanidade cultivando algumas pessoas”.

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Saint Exupéry: “Num mundo que se faz deserto, temos sede de encontrar um amigo”.

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Francis Bacon: “Não há solidão mais triste do que a do homem sem amizades. A falta de amigos faz com que o mundo pareça um deserto”.

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Francis Bacon, de novo: “A amizade duplica as alegrias e divide as tristezas”.

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Provérbio chinês: “Difícil é ganhar um amigo em uma hora; fácil é ofendê-lo em um minuto”.

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Millôr Fernandes: “Pais e filhos não foram feitos para ser amigos. Foram feitos para ser pais e filhos”.

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Millôr, de novo: “A verdadeira amizade é aquela que nos permite falar, ao amigo, de todo os seus defeitos e de todas as nossas qualidades”.

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Mário Quintana: “Não te abras com teu amigo / que ele um outro amigo tem. / E o amigo do teu amigo / possui amigos também”.

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Garth Henrichs: “A gente não faz amigos, reconhece-os”.

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Sócrates: “O amigo deve ser como o dinheiro, cujo valor já conhecemos antes de termos necessidade dele”.

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Ethel Barrimore: “O melhor momento para fazer amigos é antes que você precise deles”.

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Orson Welles: “Nós nascemos sozinhos, vivemos sozinhos e morremos sozinhos. Somente através do amor e da amizade é que podemos criar a ilusão, durante uns momentos, de que não estamos sozinhos”.

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Jô Soares: “Não há amizade que, por mais profunda que seja, resista a uma série de canalhices”.

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Elisabeth Foley: “A descoberta mais bonita que os verdadeiros amigos fazem é que podem crescer separadamente sem se separarem”.

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Oprah Winfrey: “Muitas pessoas querem ir com você na limusine, mas o que você quer é alguém que vá com você quando a limusine quebrar”.