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quarta-feira, julho 31, 2019

Pasquim está digitalizado no site da Biblioteca Nacional



A hemeroteca digital da Biblioteca Nacional, na Cinelândia, coração boêmio político do Rio de Janeiro, guarda um imenso acervo de periódicos publicados no Brasil e fora do país desde o século 18. São mais de 20 milhões de páginas disponíveis gratuitamente para pesquisa, um conjunto precioso que serve de fonte de pesquisa, mas também de curiosidades para quem gosta de história. 

Dentre as preciosidades, encontram-se os jornais amazonenses O Capital, os republicanos “A Epocha” (1899-1890) e “A Federação: Orgam [sic] do Partido Republicano Federal (1895-1902), e o impagável “A Marreta” que tinha em seu quadro de editores dois jornalistas que assinavam pelos pseudônimos de Chico Piaba e Zé Peroba, os dois simulavam brigas com temas políticos polêmicos na região, no melhor estilo de telecatch jornalístico. Dentre os mais recentes que fizeram a história do jornalismo brasileiro, estão as revistas Manchete, Realidade e Cruzeiro.

Mas nada se compara ao que está para sair das fornalhas das digitalizadoras da BN. Agora, um importantíssimo jornal, passa a fazer parte da coleção digitalizada. Trata-se do Pasquim, um símbolo da chamada imprensa nanica da época da ditadura.   
O Pasquim foi uma das publicações mais importantes do jornalismo brasileiro, criado em plena  ditadura militar, o semanário mais irreverente do país representou um período de forte censura, contrastante com a efervescência cultural e artística brasileira. Por suas colunas passaram nomes da pesada da nata do humor como Millôr Fernandes, Jaguar, Luiz Carlos Maciel, Ivan Lessa, Henfil, Paulo Francis, Fausto Wolff e Sérgio Augusto. Além disso, teve colaborações de Glauber Rocha, Vinicius de Moraes, Caetano Veloso, Chico Buarque, entre outros.

No dia 26 de junho de 1969, há exatos 50 anos, começava a circular este semanário que se tornaria símbolo do jornalismo irreverente e contestador ao regime militar. Agora, todas as 1.072 edições do “Pasquim” acabam de ser digitalizadas pela Biblioteca Nacional (BN). O material estará disponível para o público na página da Hemeroteca da BN a partir de agosto.

O processo de digitalização gerou um total 35 mil páginas do jornal, que encerrou as atividades em 1991. A BN já tinha em seu acervo 602 edições do “Pasquim” — o restante foi cedido ao instituto pelo cartunista Ziraldo e pela Associação Brasileira de Imprensa (ABI). Um total de 37 mil páginas foi transformado em arquivos digitais e agora passa por indexação, o que permitirá aos internautas fazer pesquisas refinadas por palavras, inclusive para as imagens, já que boa parte do jornal trazia charges, quadrinhos e ilustrações.

Pedido a São Longuinho



Por Luiz Antonio Simas

Adoro o cristianismo popular brasileiro, de fundamento ibérico, que gosto de chamar de “cristianismo do fantástico” e mora nas encruzilhadas afro-indígenas temperando a nossa maneira de viver o arrebatamento do mistério. Sendo assim, é evidente que sou devoto de São Longuinho.

A hagiografia diz que São Longuinho se chamava Cássio e foi um soldado romano presente na cena da crucificação de Cristo. Algumas versões sobre a paixão indicam que teria sido ele o centurião que perfurou o nazareno com uma lança (relíquia que teria sido encontrada nos tempos da primeira cruzada e está exposta em Viena, na Áustria). O sangue de Cristo respingou nos olhos do centurião, que naquele momento foi tocado pela graça e se converteu. Cássio passou a ser conhecido como Longinus – latinização do grego lonke; lança.

Por ter aderido ao cristianismo e renegado o poder de Roma, Longinus foi torturado, teve os dentes e língua arrancados, e foi decapitado em Jerusalém.

São Longinus foi canonizado pelo Papa Silvestre II, no ano de 999. A tradição popular afirma que parte importante da documentação do processo, em dado momento, se perdeu. O Papa teria, então, rogado ao próprio santo para que os documentos fossem encontrados; o que acabou ocorrendo. Viria daí a fama que o santo tem de atender aos pedidos dos fiéis que querem encontrar objetos perdidos.

Na cultura popular brasileira, Longinus (muito venerado na Espanha) virou mesmo Longuinho, ou Lancinha, que eu acho extremamente simpático. É tradicional ainda o hábito de se fazer uma promessa ao santo para se encontrar o que foi perdido. A promessa deve ser feita mediante os seguintes dizeres: São Longuinho, São Longuinho, se eu achar o que está perdido, dou três pulinhos e três gritos.

São Longuinho é representado como um centurião com uma lança, a que ele teria usado para furar o corpo de Cristo, e é representado com uma lanterna acesa, símbolo de seu poder de encontrar objetos perdidos.

Existem duas imagens do santo no Brasil: na Capela de Nossa Senhora da Escada, em Guararema (SP), esculpida em madeira por índios das missões, e na Igreja de Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas (MG).

Eu gostaria muito, depois dessa breve descrição sobre o santinho querido, de pedir a São Longuinho para que ele me ajudasse a encontrar o Brasil. Aquele que eu não sei se existiu algum dia – acho que não – ou se viveu apenas nos meus afetos e afeições de menino e projeções de moleque; o país que navegava o Rio Doce, dobrava o rumo para Ossain dramatizar o encantamento das folhas, se banhava na volta grande do XIngu, arreliava o tempo no ronco do fole de Gonzaga, adormecia João Valentão no manto da noite e comemorava o gol na geral do maior do mundo.

Eu continuo procurando, doido para dar três pulos – discretos, para não ficar travado – saudando o santinho querido do povo.

terça-feira, julho 30, 2019

Quadrilha de Duelo: uma invenção 100% manauara



No dia 22 de fevereiro de 1987, no Bairro da Paz, os irmãos Francisca e Klingerlander Cascaes de Souza criaram uma quadrilha caipira tradicional chamada Os Matutos na Roça, que durou três anos. Foi quando os dois irmãos, em concordância com a maioria dos brincantes, resolveram mudar o nome da quadrilha para Os Pistoleiros na Roça e, em vez de encenar um casamento caipira, resolveram encenar um duelo entre mocinho e bandido, tal como acontecia nos filmes de faroeste. Estava criada a primeira quadrilha de duelo do país, já que, aparentemente, esse formato criativo só existe em Manaus.

Com coreografias ousadas que deixavam o público surpreso com tudo que estava acontecendo no tablado e um enredo diferente em que bandidos e mocinhos pareciam estar sempre lutando por terras, poder ou pelo amor de uma mulher, Os Pistoleiro na Roça recriavam o Velho Oeste no coração da floresta amazônica e injetavam adrenalina de verdade no nosso folclore baré.

“Nossa principal inspiração foram os filmes western spaghetti do Sergio Leone, que a gente assistia em fitas de videocassete alugadas nas locadoras do centro”, recorda Klingerlander. “Nós assistimos mais de 20 vezes ‘Era Uma Vez no Oeste’, ‘Por um Punhado de Dólares’, ‘Por uns Dólares a Mais’ e ‘Três Homens em Conflito’. Também assistimos inúmeras vezes os filmes ‘O Último Grande Duelo’, ‘Se Encontrar Sartana, Reze pela Sua Morte’, ‘Django’, ‘Uma Pistola para Ringo’, ‘O Dólar Furado’, ‘Três Homens em Conflito’, ‘A Morte Anda a Cavalo’, ‘Réquiem Para Matar’, ‘Trinity é o Meu Nome’ e ‘Sabata – o Homem que Veio Para Matar’. Ficamos especialistas em pistoleiros do velho oeste, daí o nome da quadrilha”.

“Era Uma Vez no Oeste”, de Sergio Leone, é o ápice do faroeste, um monumento cinematográfico que consagra as expressões artísticas mais belas de um diretor na sua melhor forma.

Mas não foi apenas na escolha dos figurinos dos cowboys – aquela espécie de sobretudo que vai até quase o tornozelo, marca registrada dos filmes de Sergio Leone – que Os Pistoleiros na Roça se apropriaram e fizeram um bom uso do spaghetti western. Havia outras coisas. O western italiano subverteu os valores e o estilo dos westerns clássicos para se adequar a uma nova geração. Foram adicionadas maiores doses de violência e sangue na tela. Os diálogos eram sarcásticos e escassos. Todo o filme era dublado posteriormente, ou seja, não era gravado som direto do set, deixando as filmagens mais rápidas e baratas. Os irmãos Cascaes levaram isso para as apresentações da nova quadrilha.

“Era como se fosse uma peça teatral. A gente ensaiava os diálogos, fazia as marcações das cenas e depois gravava e editava tudo em um estúdio caseiro, acrescentando as vozes dos personagens, os barulhos de tiros, os gritos, as músicas do Ennio Morricone, enfim, era quase como se fosse uma novela radiofônica dos anos 60”, diverte-se Klingerlander. “Ninguém sabia como o público ia reagir a uma quadrilha caipira encenada com trilha sonora, mas quando nos exibimos pela primeira vez a reação foi a mais positiva possível. Muitas pessoas se emocionaram, dizendo que haviam feito um retorno à infância, quando assistiam filmes de bangue-bangue no cinema Guarany”.

Não demorou muito para que novos grupos se irmanassem na brincadeira: Os Justiceiros na Roça, Os Intocáveis na Roça, Os Anjos do Faroeste, Os Renegados na Roça, Os Reis do Faroeste, Os Mexicanos na Roça, Anjos Bandidos Show, Em Busca da Paz e Rápido no Gatilho.

Mas quem é rei nunca perde a majestade: depois de conquistar 15 títulos em diversos festivais da cidade, incluindo o Festival Folclórico do Amazonas, Os Pistoleiros na Roça participaram, em 2008, do Festival Folclórico da América Latina, na Venezuela, e se sagraram campeões sul-americanos na categoria “quadrilha”. Os caboquinhos manauaras são mesmo bons de tiro!

sexta-feira, julho 26, 2019

Banda Os Originais no Hotel Da Vinci



Uma festa onde os hits atuais estão “barrados do baile” é o foco da “Festa de Arromba”, que acontecerá no Hotel Da Vinci, neste sábado, 27, a partir das 23h. Segundo o radialista e cantor Ronaldo Tiradentes, um dos organizadores da fuzarca, os ingressos já estão esgotados desde a semana passada.

Quem estará no comando da tertúlia musical serão os integrantes da banda Os Originais (José Chain, Ananias Goés, Carlos, Jander Rubens e Leonardo, ex-fundadores das antológicas bandas The Blue Birds e Os Embaixadores), que se reúnem anualmente há 20 anos, para fazer um evento que já se tornou parte do calendário festeiro da cidade.

“Além de nós (Os Originais), teremos também no palco dois tecladistas, mais um guitarrista, um saxofonista e a participação especial de Ronaldo Tiradentes cantando antigos sucessos do rei Roberto Carlos”, explicou Chain, um dos vocalistas do grupo.

Mas quem pensa que o baile é exclusivo para quem viveu as décadas de 1960 ou 1970 está enganado. A festa, que leva cerca de mil pessoas para o salão, tem fãs da nova geração, que dançam e cantam ao som dos hits que os pais curtiam, como Roberto Carlos, Leno $ Lílian, Os Vips, The Fevers, Renato e seus Blue Capas, Beatles, Rolling Stones, Frank Sinatra, Bee Gees, The Golden Boys, Pholhas e velhos hits italianos.

“Nós temos nos reunido há cerca de 20 anos. Cada um tem sua profissão, e a cobrança é muito grande para rolar esse comeback. Apesar de ser uma festa estilo anos 1960 e 1970, tem muita gente jovem dançando até umas 5h. Há essa mistura de idade, isso que é gostoso”, disse Chain.

“Gosto de música atual e antiga. Quando a canção é boa, o público gosta. É uma questão de qualidade musical. Quem é que não gosta de Beatles e de Roberto Carlos? A Festa de Arromba é um encontro que não tem confusão. É para quem gosta de dançar e brincar”, explicou.

Ao citar canções que não podem faltar, Chain elegeu “Era um Garoto que Como Eu”, dos Incríveis, “My Way”, de Frank Sinatra, e “Help” dos Beatles. “Não tem porque fazer diferente, o pessoal chega para ouvir esse tipo de música. Caso eles não ouçam, começam a cobrar as canções que tocaram na festa do ano passado”, contou.

Apesar do repertório vintage, o evento possui uma estrutura supermoderna com jogos de luzes, dois telões, uma mega aparelhagem de som, canhões de luzes e de fumaça. “A ideia é emular os antigos bailinhos realizados nas pistas de dança do Bancrévea, Cheik Clube e Ideal Clube, que eram o grande must da cidade em priscas eras”, resume o vocalista.

Dona Onete é atração nacional da Virada Sustentável Manaus



Duas novidades marcam a programação cultural da Virada Sustentável Manaus neste ano. Pela primeira vez, em cinco anos consecutivos, a abertura sairá do Teatro Amazonas para o Largo São Sebastião, com a apresentação da Amazonas Jazz Band. A edição marca também a primeira atração nacional do festival, que recebe a cantora paraense Dona Onete.

Realizada de hoje, 26, a domingo, 28, a Virada Sustentável Manaus é considerada o maior festival de sustentabilidade da América Latina. Serão três dias com mais de 160 atividades gratuitas em diferentes zonas da capital. Com sua concepção temática baseada nos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Organização das Nações Unidas (ONU), a programação inclui ainda ações relacionadas ao meio ambiente, serviços e promoção social.

“Vamos alcançar todas as zonas da cidade, principalmente os espaços com grande circulação de pessoas, levando cultura, conscientização e lazer para a população de forma dinâmica, divertida e totalmente gratuita”, explica a coordenadora da mobilização, Paula Gabriel.

Para ampliar o acesso ao público, a pré-abertura foi realizada nesta quinta-feira, às 20h, ao ar livre, no Largo São Sebastião, Centro de Manaus. Uma megaestrutura foi montada para a apresentação da Amazonas Jazz Band.

Dona Onete

O local também será palco da diva do carimbó “chamegado”, Dona Onete, que se apresenta gratuitamente neste sábado, 27, às 20h. A cantora e compositora fará o lançamento do terceiro álbum da carreira dela, chamado “Rebujo”. Com 11 músicas, o disco reforça os discursos que exaltam as belezas amazônicas, a explosão de cores e sabores paraenses e o amor com seus encantos e desencantos. Por isso, e não à toa, o novo trabalho é batizado de rebujo. A palavra significa movimento da maré, uma correnteza que vem do fundo do rio, trazendo tudo aquilo que está escondido. Para Dona Onete, ele renova a vida com alegria e sedução. E, se algo der errado, ela sentencia: “Se você não é feliz, felicidade a gente inventa” (trecho da música “Festa do Tubarão”).




Nessa energia, com quase 80 anos, Ionete da Silveira Gama promete para o público amazonense uma apresentação do jeitinho “chamegado” que só ela sabe cantar e encantar. Claro, bem acompanhada por sua banda, formada pelo pesquisador e produtor Pio Lobato, JP Cavalcante nas percussões amazônicas, Breno Oliveira no baixo, Vovô na Bateria e Marcos Sarrazin nos teclados e sopros. “Rebujo” é um dos projetos selecionados pelo Natura Musical, por meio do edital 2018, com o apoio da Lei Semear.

Shows

O Largo São Sebastião será palco também de outros shows gratuitos. Nesta sexta, 26, a banda NTG abre a noite da Virada Sustentável Manaus, às 19h, seguida da Will Rock Band, às 20h, e encerra com Marcello Ipanema & o Izuomê, às 21h.

No sábado, 27, a cantora Márcia Novo abre a programação musical, às 18h, com um passeio pelos gêneros e influências que são parte da identidade musical do Amazonas, expressada como um mix caribenho, brega pop e tribal. Na sequência, às 19h, a banda Alaídenegão esquenta o público antes do show de Dona Odete, às 20h.

A programação musical da Virada Sustentável Manaus no Largo finalizará no domingo, 28, com apresentações mais cedo, a partir das 13h, com os sets do DJ Makka. Ele, que é venezuelano, traz para cidade a primeira edição do “Manaus Room – Sensitive Experiences”, show no conceito Boiler Room – estilo criado em Londres, onde DJs tocam ao vivo com transmissão pela internet.

Às 19h, a banda Mady e Seus Namorados coloca o público para dançar ao som de lambada. O hip hop dos Manauaras em Extinção terá início às 20h. O encerramento será ao som regional experimental do grupo Os Tucumanus. Outros espaços terão espetáculos musicais gratuitos, como Monte das Oliveiras, Redenção, Bosque da Ciência e Shopping Manaus Via Norte.

A programação completa está disponível no site oficial. (https://www.viradasustentavel.org.br/manaus/virada-sustentavel-manaus-2019/programacao.html)

Programação para todos os gostos

Exposições artísticas e fotográficas, performances, intervenções de grafite, espetáculos de dança, circo e teatro também estão na programação no Largo São Sebastião e em outros espaços públicos, como Bosque da Ciência, Biblioteca Pública do Amazonas, Casa das Artes, Centro de Medicina Indígena, Bairro Colônia Antonio Aleixo, Escola Estadual Professora Myrthes Marques Trigueiro, Feira do São José, Flutuante Abaré, Marina do Davi, Bairro Monte das Oliveiras, Museu da Amazônia (MUSA), Parque Sumaúma, Parque do Mindu, Praça da Polícia, Praça da Matriz, Praia da Ponta Negra, Reusa – Rip Rap da Redenção, Shopping Manaus Via Norte e Terminais de ônibus 4 e 5.

Além das atividades culturais, estes locais terão oficinas, rodas de conversas, doação de mudas frutíferas, limpeza de igarapés e outras ações relacionadas à questões como igualdade de gênero, saúde e bem-estar, consumo e produção responsáveis, educação de qualidade, redução das desigualdades, cidades e comunidades sustentáveis e erradicação da pobreza. Todos esses pontos correspondem aos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Organização das Nações Unidas (ONU).

Acessibilidade

Para garantir a inclusão do público com deficiência auditiva, a Virada Sustentável Manaus terá a presença de tradutores e intérpretes da Língua Brasileira de Sinais (Libras) cobrindo atividades como shows, rodas de conversa, contação de histórias e espetáculos teatrais que acontecerão no Largo São Sebastião, no Terminal 5 e no Parque Sumaúma.

Virada

Com mais de 300 voluntários, a quinta edição da Virada Sustentável Manaus tem patrocínio, via Lei de Incentivo à Cultura, da Uber Eats, Bemol e CMPC, copatrocínio da Liberty Seguros e parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD).

Além disso, possui colaboração da Whirlpool, Honda, Votorantim, Grupo Martins/IAMAR, World Animal Protection, Instituto Sabin, Shopping Manaus Via Norte, ARMOR Brasil, Local Hostel Manaus, Local Hostel Figueiredo, Secretaria de Estado de Cultura (SEC), Secretaria de Estado do Meio Ambiente (SEMA), Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Sustentabilidade (SEMMAS), Agência Oto e Up Comunicação Inteligente.

É uma correalização do Instituto Virada Sustentável e Fundação Amazonas Sustentável (FAS), e realização da Secretaria Especial da Cultura, Ministério da Cidadania e Pátria Amada Brasil Governo Federal.

quinta-feira, julho 25, 2019

Bloco do eu-sozinho



Por Ivan Lessa

E lá se vai embora de novo minha filha para esquiar. Desta vez, vai com a mãe, via Club Mediterranée, não é tão caro quanto possam pensar, fico eu cá, mais uma vez, “de cigarra”, conforme se dizia no meu tempo, sozinhão em casa por oito dias, neste abril que já começa a fazer olhinhos, brincando de primavera.

Volta e meia eu venho e escrevo esta crônica de solidão. Gozado. Em português do Brasil, solidão sempre foi meio sinônimo de fossa, depressão, beirando sambas tristes da Nora Ney ou Dolores Duran. Independente da óbvia preocupação – eu sou o “óbvio preocupador” –, solidão pra mim sempre foi sinônimo de contentamento, quase mesmo, queria dizê-lo, de força. Ouvi alguém algum dia dizer que o homem só é o homem forte. Se é verdade, eu estou rachando tijolo ao meio com peteleco. Manjo de solidão. Passei algumas das melhores horas, dias, meses e anos de minha vida na base daquele velho bloco do eu-sozinho.

Começou cedo. Lembro-me de mim mesmo, muito garoto, mamando cada segundo do dia em que não tinha ninguém em casa para o almoço, a não ser eu e aquela instituição que se foi, chamada “empregada”. Vinha o bife a cavalo, bem malpassado, com fritas, e um copão de limonada na frente – copão onde eu apoiava o gibi e tome Capitão Marvel, Ferdinando, comer de boca cheia e mastigar menos do que o recomendado pelos pais. Lá fora, de quebra, a praiona de Copacabana, onde, como tudo mais em minhas lembranças, havia menos gente, as ondas eram mais gentis, a água mais limpa, o sol mais luminoso.

Depois, então, pegar um cinema do lado. Cine Rian, sessão das duas. Os filmes eram melhores e, de minha posição, esparramado na terceira fila, comendo caramelos Busi, não vinham fora de foco, e até mesmo o jornal cinematográfico brasileiro, exibição obrigatória e com certificado de “boa qualidade”, tinha sua graça, quando mostrava algum parente do Luis Severiano Ribeiro sendo agraciado com esta ou aquela outra condecoração.

Depois do Rian, eu, jovem cigarra, ou voava para outro cinema, para pegar a sessão das quatro, ou então, mais provável, dava uma subida em casa – casa era em décimo andar –, botava o calção, pegava a bola de vôlei, que era a oficial para futebol de praia, e me mandava para as areias cálidas da princesinha do mar. Uso o clichê deliberadamente: eram cálidas, era princesinha do mar.

Aí entrava, entravam, os outros: futebol é esporte de equipe, claro. Mesmo para a linha de passe, que era, pra ser franco, de que eu mais gostava. Mas tinha um jogo que eu jogava comigo mesmo, ali na praia, Copacabana, Posto Quatro e Meio. Seguinte: eu ia pra beirinha do mar e, dependendo da condição das ondas, que tinham que estar meio por sobre as fortes, chutava a bola bem no meio da arrebentação – isto é, onde as ondas poeticamente se quebravam. E vinha a bola branca, número cinco, como se pegando jacaré na onda. Eu tinha que pegar a bola, como um goleiro defendendo um pênalti. Claro que eu era um goleiro do Botafogo, talvez o Oswaldo Baliza, que era o da época, e a bola vinha chutada pelos grandes inimigos de então dos outros times: Lelé, do Vasco; Perácio, do Flamengo; Rodrigues, do Fluminense – todos donos de petardos violentíssimos. Em geral, eu ganhava. Afinal, era equipe, juiz e torcida ao mesmo tempo. Depois – depois o quê? Assobiar e cantarolar baixinho letra de fox, lançar olhar longo e cobiçoso sobre as balzaquianas de 16 ou 18 anos.

Hoje, um pouquinho mais velho, sozinhão, bato uma bola diferente: essa de ficar no gol defendendo os pontapés do passado. Frase que, por falar nisso, tem todo ar, cheiro e gosto de coisa de antes dos anos 50.

sábado, julho 20, 2019

O Rio encontra São Paulo e juntos fazem um país melhor



Por Joaquim Ferreira dos Santos

Querido Moacyr Luz, compositor da pesada, cronista de responsa do que vai ao derredor do ovo cor-de-rosa nos bares cariocas. Você vai me desculpar essa pamparra abstêmia mas é o seguinte: dezenove nunca foi vinte. Aperte os ossos, teu culto é nosso. (Só não te pergunto que time é teu porque te sei rubro-negro macho.) Sente o drama, Môa: sou brasileiro, estatura mediana, me gustan las ninfas nos afrescos do Milton Bravo, me gusta el “Perfume de gardênia” no jukebox, me gustan os tempos em que se chamava cerveja preta de barriguda. Tirante tal, não leve a mal.

Não posso aceitar seu convite para escrever sobre os bares do Rio. Botequim é coisa séria. Me falta Jurubeba nos canos, percebe? Sou um Tarzan depois da gripe, nem a Caracu com ovo deu jeito no raquitismo físico e intelectual. Um garoto bokomoko do guaraná Antarctica que das pingas não entende abacate. Quem me dera traçar um quinado, mandar descer aquela que matou o guarda e jogar o primeiro gole ao santo no canto de tamanha complexidade.

Deus que te livre do ridículo de um Zé Mané desses aqui, mais para Steinberg do que Steinhager, mais para Spielberg do que Underberg, doutorar qualquer linguiça frita e linha mal ajambrada no livro que tão bem costuras sobre nossos Cafés de Viena, os botequins. Estou mais por fora que o “Bunda de Fora”, aquele bar na Ponte das Tábuas, tão pequeno que você entra e, foi a Leila Diniz quem percebeu, o buzanfã fica lá na calçada. Podes crer, grande Môa. Erro de pessoa.

Não bebo, não fumo, não cheiro e só minto por obrigação, por saber que é ofício dos que vendem cachaça em palavras, quando escrevo crônicas ligeiras sobre os costumes nacionais. Valeu a intenção. Anexo com orgulho teu convite aos itens primeiros do meu magro currículo de gemada com vinho do Porto. Te benzo em agradecimento com a serragem dos bares da Central, te acendo uma vela aos pés do São Jorge de azulejo que comprei do espólio do Penafiel da Saúde, te bafejo nas fuças a fumaça de um Caporal Amarelinho, te meto em louvação uma ficha na jukebox que me vai sempre nas internas e te ofereço Jorge Veiga cantando “Garota (com o umbiguinho de fora) de Saint-Tropez”. Peço a Deus que te mantenha conservado em neve como se saído da serpentina do Adónis, de São Cristóvão.

Seguinte. Pode parecer papo de bêbado, mas vou repetir os tremoços. Botequim é coisa séria e é só por isso que me calo. Me falta para professorar o calo no cotovelo dos que tomam chope em pé no balcão. O Jaguar tem. Pega só. Sou um ignorante e qualquer um já notou isso naqueles segundos a mais que levo para responder se na pressão, se com colarinho. Mínima idéia. Grego. No máximo aprendi, em meio a uma saraivada de croquete de carne com Malzbier no Petisco da Vila, ouvindo o Perna, teu vizinho aí da Muda, que “barata não atravessa galinheiro”. Parecia frase de Confúcio bêbado, mas tinha mais inteligência que o Lula sóbrio.




Acho que você está de acordo. O Bar Brasil fechou. Não o da Mem de Sá, com seu schiniti e lentilha garni sempre no capricho. O Bar Brasil do Dirceu. Do Genoíno. Havia barata demais atravessando o galinheiro, todas carregando sardinhas e capilés. Fechou o Bar Brasil em que o garçom Lula, para esconder o sujinho diante do freguês que chegava, sacudia a toalha e a virava pelo avesso na frente do comensal, achando que bastava o expediente para ganhar o ISO-9000 de mó limpeza.

Que ressaca, hein, Môa?! A administração do boteco petista começou com uma garrafa de Romanée Conti, acabou em Praianinha. Perdeu o perfil e isso, pergunta para a dona Maria aí no bar da tua rua, é mortal pro negócio. Não tenho receita anti-ressaca para oferecer, não sei o papo certo que se leva para trocar um cheque com o português, não desconfio da função da azeitona na coroa do dry martini. Mas antes que tamanha patetice fique ao exagero e não haja catuaba que me levante o moral, te bato o seguinte piá. Tenho ouvido esses sabichões de plantão vaticinando o diabo diante da crise política e acho que a mensagem está na garrafa. Calma, te explico. Não dá mais pra ficar espantando a mosca do balcão para diminuir o número de bactérias no torresmo. É preciso construir novo bar.

Andei de férias, andei por buracos que você nem imagina e num desses bons momentos eu estava com o Marcelo Rubens Paiva dando um rolé pelos bares paulistas que se inspiram nos bares do Rio. Eu não bebi nada, juro, mas mesmo assim concluí o seguinte. Se o governo JK fosse um bar, teria sido o Pardellas, da Santa Luzia, com seus funcionários públicos chorando a ida para a Novacap. Fechou. Se a ditadura dos militares fosse outro bar, teria sido o Antonio’s, com a esquerda festiva do Leblon romantizando a revolução. Fechou.

O Tangará, na Cinelândia, seria uma catedral PT, com suas batidas de frutas nordestinas – mas, como se sabe, o Tangará, não à toa, está sendo reformado. Dá para contar a História do Brasil através de nossos bares, percebeu? Esse bar paulista inspirado nos clássicos do Rio, e que o Rio agora importa, com mais conforto para os bebuns, melhores comidinhas e banheiro limpo para o mulherio, é o projeto possível para um novo país. É um sonho de administração.

Fui no São Cristóvão, no Astor, Pirajá, Posto 6, Filial, quase todos ali na área da Vila Madalena. É um projeto de Brasil que te ofereço em despedida, Môa, e para limpar minha barra com o amigo. Esses bares pegaram a bagunça carioca, a santa maldade escondida nos quitutes do Braca, o barrigudo de sunga contando piada suja no meio do salão idem. Juntaram esse jeito de corpo que é a alma do balneário com o bom serviço paulista, aquele trem das onze saindo sempre na hora.

É o único Brasil que está dando certo. Eficiência e manemolência, a salvação do país são. O resto é a moela à milanesa de ontem, nossos políticos estragados pela corrupção. Nossos pensadores, quando as garrafas começam a voar pelo salão, escondem suas idéias embaixo da mesa. O porre é geral. Todo mundo tonto com a caninha da roça servida pelo PT. Um país inteiro fechando e só os bares paulistas com cara de carioca abrindo.

Aí tem. Tem um projeto de Brasil dentro dessa idéia de casco escuro e estupidamente gelada. Decifre-se. Como eu não bebo, embora minhas palavras sim, deixo a garrafa na mesa e puxo o bonde. Vai que é tua, grande Môa. Saudações.


NOTA DO EDITOR DO MOCÓ:

O livro do Moacyr Luz pode ser lido na íntegra, em meu portal, na seção Vida Boemia. Confira o prefácio feito pelo Martinho da Vila clicando aqui.

Festival Folclórico do Amazonas começa em agosto no Sambódromo



O 63º Festival Folclórico do Amazonas será realizado de 20 de agosto a 1º de setembro, no Centro de Convenções Professor Gilberto Mestrinho (Sambódromo). Em 13 noites de apresentação, 74 grupos da Categoria Ouro passarão pelo local. O evento terá entrada gratuita e classificação livre.

Bumbás Regionais e Tradicionais, Cacetinhos, Cirandas, Danças Alternativas, Danças Nacionais, Nordestinas, Regionais e Internacionais, Garrotes Regionais e Tradicionais, Quadrilhas (Cômicas, de Duelo e Tradicionais) e Tribos integram a programação, que inicia às 20h, de segunda a sexta-feira, e às 19h aos sábados e domingos.

O sorteio que definiu a ordem de apresentações foi realizado no início do mês, no Palacete Provincial, com representantes dos grupos.  Veja como ficou a programação: 

20/8 (terça-feira)

Garrote Estrelinha (Garrote Regional)

Sensação da Raiz (Ciranda)

Manaú (Tribo)

Clamor de Um Povo (Bumbá Regional)

Maravilha (Ciranda)

21/8 (quarta-feira)  

Brilho do Campo (Garrote Tradicional)

Tira Prosa (Bumbá Tradicional)

Pidá Djapá (Cacetinho)

Olinda na Roça (Quadrilha Tradicional)

Curió (Dança Regional)

Caxemira (Dança Internacional)

22/8 (quinta-feira)

Kayapós (Tribo)

Justiceiros do Sertão (Dança Nordestina)

Café do Ajuricaba (Dança Nacional)

Baniwa (Cacetinho)

Em Busca da Paz (Quadrilha de Duelo)

Furacão Mistura de Ritmos (Dança Alternativa)

23/8 (sexta-feira) 

Gaúcha Rancho Manauara (Dança Nacional)

Odalik (Dança Internacional)

Lendas e Povos da Amazônia (Dança Regional)

João e Maria (Quadrilha Cômica)

Boi Bumbá Galante (Boi Bumbá Master A)

24/8 (sábado) 

Descendentes de Lampião (Dança Nordestina)

Revolução na Roça (Quadrilha Tradicional)

Cabras de Lampião (Dança Nordestina)

Caipiras da Betânia (Quadrilha Tradicional)

Boi Bumbá Corre Campo (Boi Bumbá Master A)

25/8 (domingo)

Gaviões na Roça (Quadrilha Tradicional)

Café XV de Outubro (Dança Nacional)

Funk na Roça (Dança Alternativa)

Faz Raiva na Roça (Quadrilha Tradicional)

Boi Bumbá Garanhão (Boi Bumbá Master A)

26/8 (segunda-feira)

Cuxi Miraiba (Tribo)

Caipira na Roça (Quadrilha Tradicional)

Folia e Fuleragem (Quadrilha Cômica)

Waimiri Atroari (Cacetinho)

Pistoleiros na Roça (Quadrilha de Duelo)

27/8 (terça-feira)

Cia. Artes Caracalla (Dança Internacional)

Pedro e Pedrita (Quadrilha Cômica)

Nordeste Sangrento (Dança Nordestina)

Explode Coração (Ciranda)

Mosketeiros na Roça (Quadrilha de Duelo)

Sete Quedas na Roça (Quadrilha Tradicional)

28/8 (quarta-feira)

Manaós (Cacetinho)

Barés (Tribo)

Al-Karak (Dança Internacional)

Independente do Coroado (Ciranda)

Xote Noda de Caju (Dança Nacional)

Império do Norte (Ciranda)

29/8 (quinta-feira)

Cangaceiros de Lampião (Dança Nordestina)

Marupiaras do Amazonas (Quadrilha Tradicional)

Emoção do Aramando Mendes (Ciranda)

Candomblé Afro (Dança Nacional)

Juventude na Roça (Quadrilha Tradicional)

Rosas de Ouro (Ciranda)

30/8 (sexta-feira)

Maués (Tribo)

Manaú (Cacetinho)

Cabras do Capitão Cabeleira (Dança Nordestina)

Tradição da Ciranda (Ciranda)

Cangaceiros do Vale Perdido (Dança Nordestina)

Binha (Ciranda)

Café da Redenção (Dança Nacional)

31/8 (sábado)

Brotinhos de Petrópolis (Quadrilha Tradicional)

Cabras do Capitão Silvino (Dança Nordestina)

Força Jovem (Ciranda)

JAQ na Roça (Quadrilha Tradicional)

Boi Bumbá Carinhoso (Boi Bumbá Master B)

Boi Bumbá Brilhante (Boi Bumbá Master B)

Boi Bumbá Nativa Tribal (Boi Bumbá Master B)

1/9 (domingo)

Sonho de Cirandeiro (Ciranda)

Cangaceiros de Aparício (Dança Nordestina)

Brotinhos do Coroado (Ciranda)

Diva na Roça (Quadrilha Tradicional)

Visconde (Ciranda)

quinta-feira, julho 18, 2019

Vai te entender, sua maluca, minha linda



Por Joaquim Ferreira dos Santos

Copacabana, agora que a pérgula do teu hotel genial faz 80 anos, agora que atendendo a pedidos a bailarina Angel volta ao elenco das stripers do peep-show da Serzedelo Correa, agora que se juntam todos esses ganchos quentes para dar temperatura de verão a uma crônica fria – agora, depois de todas essas vírgulas, eu venho discretamente, com toda a pobreza dos meus advérbios de modo, me juntar aos que te cantaram, cantam e cantarão os favores e dizer: és muy lôka, princesinha.

Ninguém reparou, foram só alguns meses, mas eu te morei na quitinete 1215 da Prado Júnior, 48, aquela que tem um corredor com a Princesa Isabel, 7, e se eu te fui invisível pela minha insignificância, não me sai dos miolos uma voz noturna de mulher gritando “me mata, me mata” num cubículo vizinho. Covarde sei que me podes chamar, mas voltei a dormir. Não sei se a dona morreu, não sei se era uma mentirosa, não sei se ela viveu a noite mais inesquecível da sua vida. Não sei de nada o suficiente para te louvar os mistérios, aprendiz que sou dos mestres que tiram sereias de tuas areias. Mas sigo em frente.

Dou um abraço no Antônio Maria na Fernando Mendes, e sigo em frente na maior cara-de-pau, como esses garotos que ficam nas tuas esquinas colocando panfleto de sex shop, cheios de pênis de plástico, na mão das madames.

Eu como do teu miolo à milanesa nas noites do Cervantes e talvez seja por isso, só pode, pelo assoberbo de miolos fritos no pâncreas, que entrei nesse lance braguiano, esse ridículo ai-de-ti-Copacabana cravado no meu DNA, de te louvar na segunda pessoa, como se você fosse uma gaúcha em férias ouvindo o violinista tocar “O sole mio” pela milésima vez essa noite na cantina Don Camilo, na Atlântica.

Mereces tratamento de primeira, embora tua graça seja a mistura de pessoas. Eu vi Gina Lollobrigida ajeitando de leve a calcinha no Golden Room. Vejo sempre suas novas mulheres, todas atochadas, como diz Fausto Fawcett, o poeta na mesa do El Cid, em saborosos jeans da grife japonesa Mikome.

Copacabana-me-engana foi história do Caetano na musiquinha superbacana dos 60, aquela em que ele te acusava de esconder o superamendoim e o espinafre biotônico, no velho papo manjado de colocarem tudo, como se não bastassem o crime da Toneleros, a Aída Curi e o show da Ângela Rô Rô na La Girl, na tua conta de dama poluta. Mas, fica fria, Copacabana. Tu não enganas mais ninguém e isso não te vai acusatório. Isso é bom, é tão bom quanto misturar o quarteirão art déco no Lido com o quarteirão GLS na Raul Pompéia. É tão bom quanto misturar o funghi e o camarão no espaguete da Tratoria. Fica fria, mi querida. Fica fria feito a vaca-preta que o Ivan Lessa tomou aí nas tetas do Bob’s da Domingos Ferreira, o primeiro do Brasil.

Parece que me deliro, como se a qualquer momento me fosse chegar o farmacêutico cheio de colares da farmácia da Viveiros de Castro e aplicar no cano dos meus verbos uma injeção de correção pronominal, pacificadora, uma injeção feita com o sumo daqueles caranguejos presos na gaiola do bar Barata Ribeiro, 771, esquina com sua multidão de 171 anônimos. Gosto do delírio caótico de Copa, gosto da lenda urbana que fez da tua loja de objetos eróticos um imóvel alugado pela igreja de Nossa Senhora de Copacabana, sua vizinha de parede. Tudo mentira. Orson Welles jogou os móveis dentro da piscina do Copa enquanto filmava “É tudo verdade”, mas eu desconfio. Tudo mentira.

Quem sou eu para decifrar teus mistérios, copanita velha de guerra, se até nas pedrinhas portuguesas desenhaste todas aquelas linhas sinuosas, nunca uma linha reta, clara, indo ao ponto. És como todas as outras da tua laia. Turva. Dúbia. Tergiversas, eis o charme feminino da tua espécie. A sopa de beterraba da Polonesa é fria, as neopolacas do Barbarella, quentes, e a vedete Flávia Tarcitano, que ainda há pouco fazia striptease nos inferninhos do Lido, afixava na lateral do palco o exame do IML lhe atestando virgindade. Muy volátil és. Miro-te no perfil mas pareces a Mística, aquela bandida do “X-Men” que não fica mais de alguns segundos com a mesma cara. Já incorporaste o capeta nas boates gays da Galeria Alaska. Voltei lá outro dia. Nos mesmos lugares em que, ao som de “It’s raining man”, botavas o coisa ruim pra dentro, agora uma multidão de templos evangélicos, aleluia!, vive de botar o satanás pra fora. Vai te entender, sua maluca!

Como te confiar, se espalhas para o mundo as delícias do Posto 6, o mais mítico de todos os postos da tua orla, um prédio que deveria ser a torre Eiffel de nossas vergonhas saradas – e ele, ao contrário do 3, do 4, simplesmente não existe!! Onde está, que não te prende por alardear falsas delícias, o delegado Padilha, terror dos teus bandidos nos 50? Ele jogava um limão dentro da calça do suspeito. Se o limão não parasse, preso na boca apertada, consubstanciava-se que o elemento era di malandro – e punha-se recolhido aos costumes. Foram-se os costumes e junto sua agregada, a turma dos cafajestes. Foram-se os tais anos dourados, mas suspeita-se que eram falsos como os seios dos teus travestis do Posto 2.
Onde está, que não te prende por fascínio malsão, o delegado Espinosa, o titular dos romances do Garcia-Roza na 12ª DP, da Hilário de Gouveia, aquela que tem em frente um bar chamado Pavão Azul sinalizando liberdade para os otários presos? Não adianta. Na tua horta do Parque da Chacrinha chove homem, chove delegado, chove síndico pedindo silêncio depois das dez. Tá pra nascer, no entanto, quem tenha autoridade suficiente para te encaretar, enquadrar e levar em cana, mi hermosa e baranga Copacabana.

Boi-Bumbá – Auto amazônico da ressurreição



Por Luis Pellegrini

Todos os anos, no final de junho, o Festival do Boi-Bumbá sacode a cidade amazonense de Parintins. Programado este ano para os dias 29 e 30 de junho e 1º de julho, o espetáculo transcende os limites de festa popular para se constituir num grande rito coletivo de resgate da alma primitiva brasileira que o boi, na verdade, representa.

Ninguém imagina o que o espera quando ainda está no interior do jato que sobrevoa as águas do grande rio e se dirige à ilha fluvial de Tupinambarana, onde fica a cidade ribeirinha de Parintins. Momentos depois, quando o avião aterrissa e sua porta se abre, o ar quente e úmido, carregado de odor de mata virgem, traz um abraço de boas-vindas. Aos lados da pista de asfalto duas muralhas de um verde intenso não deixam margem a dúvidas: estamos no coração da floresta, e atrás das árvores os mil olhinhos curiosos dos seres da mata parecem nos espreitar. Sinto-me em casa.

A casa, para os que chegam, é flutuante. Somos instalados em cabinas de confortáveis barcos transformados em hotéis, vindos de Manaus e Belém, atracados às margens do Amazonas. Nem de longe os poucos hotéis da cidade poderiam hospedar os milhares de visitantes que, nos dias do festival, acorrem a Parintins, vindos de todo o Brasil e do mundo, transformando o pacato vilarejo numa grande praça ruidosa e colorida.

Motivo para tanto agito? A paixão regional: o duelo entre os bumbás Caprichoso e Garantido que, nesses dias se defrontam na arena do Centro Cultural e Desportivo Amazonino Mendes, o popular Bumbódromo de Parintins. Durante três noites consecutivas, mais de 50 mil espectadores se distribuem na tribuna de honra, camarotes, cadeiras numeradas, arquibancada especial e arquibancada do povo, sem arredar pé até alta madrugada.

Delírio puro. Tanto na plateia – rigorosamente dividida entre os partidários do Boi Caprichoso, de cor azul e branco, e o Boi Garantido, de cor vermelho e branco –, quanto sobre a arena onde ambos, alternadamente, realizam sua festa-ritual. Tudo tem tamanho gigante: cada bumbá é formado por cerca de três mil componentes, chamados brincantes.

Cada grupo desfila durante três horas, sempre ao som da Marujada de Guerra (a bateria do Caprichoso) ou da Batucada (a do Garantido), com cerca de 600 músicos cada. Sebastião Júnior é o atual puxador das toadas do Boi Garantido, e David Assayag é o puxador do Caprichoso. Vale notar que, diferente dos sambas das escolas, a base rítmica das toadas do boi-bumbá não é africana, e sim indígena.

As “galeras”, como são conhecidas as torcidas organizadas dos dois bois, ornamentam seus redutos no Bumbódromo com muita criatividade, usando bandeirinhas, balões, fitas, painéis luminosos, lanternas e tudo que a imaginação permitir. Ao entrar na arena cada boi-bumbá é recebido com estrondosa salva de fogos de artifício, e o grito de guerra da plateia ecoa diante do silêncio sepulcral da “galera” contrária. E, à medida que o desfile evolui, com a entrada de milhares de personagens índios, brancos e negros, a dançar e a cantar ao som da música hipnótica das toadas, em meio a cenografias de tirar o fôlego, vive-se momentos de verdadeiro frenesi.

O enredo básico dos dois bumbás é sempre o mesmo, interpretado em todas as suas variações possíveis e imagináveis. Ele veio do Maranhão no início do século 20, com a migração nordestina para a Amazônia durante o ciclo da borracha. A história relata a saga de um peão, o negro Pai Francisco, que matou o boi favorito do seu patrão para atender o desejo de sua mulher grávida, a Mãe Catirina, que queria comer a língua do boi. O patrão descobre e manda prender Pai Francisco com a ajuda dos índios.

Depois de muito sofrimento, Pai Francisco é salvo pelo Padre e pelo Pajé que juntos – um com a força da sua fé, o outro com o poder da sua magia – conseguem a façanha de ressuscitar o boi. Do enredo fazem parte dezenas de outros personagens, como Dona Maria e a Sinhazinha (a mulher e a filha do fazendeiro), os negros Cazumbá e Mãe Guiomá (amigos de Francisco e Catirina), o Feitor, o Diretor dos Índios, os Doutores Curador, Cachaça, Palma Nego e Curabem, o Tuxaua (cacique), a Cunhã Poranga (moça bonita), a Rainha do Folclore.

Na Amazônia o mito do boi foi enriquecido com lendas do folclore e da mitologia indígena. Agora participam e interferem na história um sem-número de criaturas fantásticas como a Boiúna (cobra-grande), o Boto (golfinho mítico), o Boitatá (cobra de fogo), Anhangá (espectro do mundo subterrâneo), Mapinguari (animal fabuloso, semelhante a um homem gigante, mas com uma enorme boca na barriga), bem como divindades do panteão amazônico como Guaracy (o Sol), Jaci (a Lua), Tupana (o deus do raio) ou a Iara (sereia de água-doce).

Todos esses elementos interagem no rito popular do boi-bumbá de Parintins, transformando por três noites a arena do Bumbódromo num imenso teatro-laboratório alquímico onde se processa, em forma de espetáculo-ritual, uma evolução da alma sincrética brasileira.

Como nasceu o Boi-Bumbá? No Brasil, ele apareceu na cultura agrária do Nordeste colonial, onde existe até hoje com o nome genérico de Bumba-meu-Boi, e é interpretado por alguns autores como a expressão de uma busca de afirmação de identidade dos grupos que sobreviviam na sociedade de então na condição de dominados (índios e negros).

Luiz da Câmara Cascudo, mestre do folclore brasileiro, diz que seu criador é o negro que “desejava reviver as folganças que trouxera de sua terra distante, para distender os músculos e afogar as mágoas do cativeiro... Os indígenas logo simpatizaram com a brincadeira, foram conquistados por ela e passaram a representá-la, incorporando-lhe também suas características”.

O amazonense Simão Assayag desenvolve, por seu lado, uma ideia interessante. Para ele, o Auto do Boi, nome primitivo do Bumba-meu-Boi, fazia parte de uma estratégia dos missionários católicos europeus com vistas à conversão dos negros e dos índios.

Diz Assayag: “Duas preocupações são evidentes no auto do boi: a conversão e a ressurreição. Dois conceitos eminentemente trazidos para o Brasil-Colônia pelos missionários jesuítas no bojo de sua catequese. A península ibérica – Portugal e Espanha – havia repelido os mouros (de religião muçulmana), povos oriundos do Oriente Médio e norte da África após vários séculos de ocupação. Havia um temor generalizado a tudo que não fosse cristão, e nesse raciocínio, se enquadravam ‘os politeístas negros africanos’, e ‘os idólatras indígenas brasileiros’ – ambos pagãos. Tudo era válido para que aceitassem o batismo, se convertessem, se ‘salvassem’ e abandonassem as práticas não-cristãs”.

Nessa linha de raciocínio, com vistas à catequese, a cultura branca cristã pôs em ato um artifício didático altamente eficiente: o teatro, como forma de aprendizado associativo. Um teatro alegre, musical e dançante, e convincente por se basear em histórias fáceis do próprio cotidiano daquela gente simples. Foi transplantado para cá o teatro religioso europeu - o Teatro dos Milagres, os Autos dos Mistérios e os Autos da Paixão, como eram chamados na Europa medieval. Um teatro religioso que, na Europa, começou dentro das catedrais, representado por monges e padres. E que depois ganhou as ruas com pessoas do povo participando das encenações. Dramas sacros que aconteciam na forma de festivais ou de procissões, como aquelas que até hoje se realizam nas ruas de Sevilha, na Semana Santa, ou em muitas cidades do sul da Itália e do interior da França e Portugal.

No Brasil colonial, esses teatros foram adaptados para as línguas locais dos negros e dos índios, e pouco a pouco deram origem a exuberantes tradições folclóricas análogas ao Bumba-meu-Boi, como a Congada (bailado praticado principalmente em Minas Gerais e Goiás, cujo enredo é uma verdadeira guerra santa entre os cristãos comandados por Carlos Magno, colocado como o Rei Congo, e os mouros, liderados pelo gigante sarraceno Ferrabrás); o Reisado (festa popular que assinala o ciclo do Natal e do Dia de Reis); o Moçambique (bailado do centro, sudeste e sul brasileiro que, embora de nome africano, tem origem europeia. O Moçambique é dançado em louvor a São Benedito, e termina com a sua ascensão ao céu, num exemplo de santificação.

Como diz Assayag, “São Benedito, preto na cor e nome, era italiano da Ilha da Sicília. Como ele, não poderia haver melhor exemplo para os escravos. Franciscano, chamado por seus colegas de santo mouro, era humilde, piedoso e prudente - a própria dedicação em pessoa. Analfabeto, filho de negros escravos etíopes, era a prova viva de que os pagãos negros poderiam ser alçados ao céu, desde que se convertessem ao catolicismo”.

De tal forma, a conversão ao catolicismo aparece em quase todos os folguedos introduzidos na época e dançados essencialmente por negros, índios e mamelucos. O enredo era sempre o mesmo: a luta do bem contra o mal. O bem era representado pela nova ordem religiosa, e o mal, por tudo que não se enquadrasse nesse conceito. A conquista final era o batismo do nativo, que acabava (ao menos à vista dos missionários) por aceitar a conversão.

Certo, é muito possível que a história do boi tenha servido aos propósitos de catequese dos jesuítas coloniais. Mas, imerso na vibração quente do boi-bumbá de Parintins, capaz de arrastar toda aquela massa de gente a um fenômeno catártico parecido, creio eu, aos grandes espetáculos do teatro grego antigo, eu me perguntava se seria só isso. Essa paixão pelo boi não estaria, talvez, relacionada a algo ainda mais profundo, diretamente emanada do inconsciente individual e coletivo daquelas pessoas? 

Na madrugada da segunda noite do festival de Parintins, após a apresentação do Boi Garantido, saí do Bumbódromo literalmente tomado por uma carga de energia vital que, devo confessar, há muito tempo não me assaltava. A emoção do espetáculo foi num crescendo. Começou com a entrada dos percussionistas da Batucada e o puxador de toada conclamando a torcida do boi vermelho para a festa: Quero ver meu povo / balançando no calor / Quero ver meu boi / dançando ao som desse tambor. A multidão atende ao chamado e canta em uníssono. E logo, lá do fundo da arena, filas e mais filas de índios com seus grandes cocares de plumas entram com um pé de dança que só quem tem sangue ou alma de índio pode dançar.

A emoção cresce, o coração aperta e, de repente, aparece o boi Garantido, todo branco, surgido do fundo de uma caverna escura montada no centro da arena. E desta vez, na hora de o boi morrer, quem morre em seu lugar é uma inteira nação indígena, a dos incas, na representação de um tremendo combate com as tropas conquistadoras espanholas encenado na cidade andina de Machu Pichu. Morre o boi-inca, mas não importa. Ele há de logo renascer. Sabem onde? Bem no meio da torcida vermelho e branca que vibra e grita sobre a arquibancada popular.

Nem é preciso qualquer explicação para se entender a simbologia profunda dessa ressurreição: o boi, arquétipo-símbolo da alma primitiva desse povo mestiço, pode morrer de mil formas, mas também de mil formas renascerá, pois a ele está ligado o princípio da imortalidade. Não à toa, nos momentos de maior vibração, a galera toda, inclusive os vips dos camarotes, põe-se a gritar, sem conseguir conter um berro de entusiasmo que vem lá do fundo da garganta.

Apesar do cansaço, não consegui dormir logo aquela noite. O caleidoscópio de imagens do boi-bumbá insistia em dançar na minha memória visual, e os refrões hipnóticos das toadas persistiam em meus ouvidos. No barco-hotel, em vez de ir para a cabina, fui para o tombadilho onde, à luz do dia, toma-se banho de sol. Joguei-me sobre uma espreguiçadeira, fitei o céu cortado pela Via Láctea, e depois olhei o Amazonas a rebrilhar, correndo lento qual outra líquida Via Láctea a cortar a floresta. Essas coisas têm uma força imemorial capaz de mexer com a alma da gente. Relaxei. E então, lá do meu fundo, um boi começou a surgir.

O boi dos bois, que se esconde atrás dos folguedos do boi dos bumbás, do boi dos negros, dos índios, dos jesuítas da catequese. O boi primordial, pintado nas cavernas pré-históricas de Altamira. Aquele que apareceu depois no Egito com o nome de Ápis, símbolo da fecundidade, e que trazia entre os chifres ora o Sol, ora a Lua, e cujo funeral era celebrado em Mênfis com grande pompa e alegria por que, logo depois de sua morte, Ápis renasce dentro de um outro invólucro mortal e é reconhecido, no meio das manadas, pela mancha negra na testa a ressaltar de seu pêlo branco, conforme narram os textos sagrados egípcios.

Que apareceu a seguir na Grécia como animal consagrado a Possêidon, deus dos oceanos e das tempestades, e a Dionísio, deus da virilidade fecunda. E que antes surgira na Índia como o feroz Rudra, que muge sem parar e cujo sêmen abundante fertiliza a terra. E que depois, sempre na Índia, apareceu como emblema de Indra, deus do Ardor Cósmico - o calor que anima todo ser vivo -, e ainda como montaria de Shiva, o deus criador. Ele representa a energia sexual do deus; mas montar o boi, como faz Shiva, é dominar e transmutar essa energia em força espiritual.

Índios de verdade saem da floresta e vêm a Parintins nesses dias de festa. São tupinambás, maués, sapupés, uai-uais lá da fronteira com as Guianas, e trazem seus artesanatos de contas, plumas e palhas para vender aos turistas. Salvo pelo olhar tímido e o comportamento reservado, sua fisionomia pouco ou nada difere da maioria dos moradores de Parintins. Aproximei-me de um uai-uai com intenção de negociar o preço de esplêndidas sacolas de palha que ele oferecia. Mas desisti de qualquer contenda quando ele, mostrando todos os dedos da mão direita, disse: “cinco Reais”. Sacolas como aquelas, até menos bonitas, são vendidas nas lojas de São Paulo por um preço no mínimo vinte vezes superior...    

Também esses índios, de um modo ou de outro, chegam a Parintins atraídos pelo boi. O boi que atravessou todas as eras da história até chegar à Amazônia. Até tornar-se a estrela de Parintins. Até encarnar-se no coração das galeras e dos brincantes, mugindo, cantando, dançando e gritando durante três noites seguidas, a demonstrar que é mais forte que qualquer catequese e que só se submete aos arreios da alegria. Esse boi ressuscitado de Parintins, livre e vital. Boi, pela jovialidade e mansidão. Touro, sem dúvida, pela força que carrega. Touro-boi-bumbá da Amazônia e do Brasil.

terça-feira, julho 16, 2019

Parati e Paiaiá



Por Mouzar Benedito

Está rolando mais uma edição da Flip, a famosa Festa Literária Internacional de Parati, este ano homenageando Euclides da Cunha, autor de “Os Sertões”. Canudos, certamente, é um tema recorrente das conversas na Flip deste ano. Poucos dias depois, outra festa literária se inicia, bem longe da charmosa Parati, mas tem algo a ver.

São José do Paiaiá, no município de Nova Soure (Bahia), será a sede da II Festa Literária da Biblioteca do Paiaiá. A primeira ocorreu há dois anos, e eu participei dela. Participaria desta que vai acontecer de 24 a 26 de julho, mas não posso por problemas pessoais.

Então, o que tem a ver com a Flip? É que foi de Nova Soure que Antônio Conselheiro partiu para fundar o arraial de Belo Monte, na fazenda Canudos.

Walnice Nogueira Galvão, grande entendedora da obra de Euclides da Cunha, deu a palestra inicial na Flip. E ela esteve no Paiaiá. Lá, conheceu a biblioteca fundada por uma espécie de Dom Quixote do Sertão, Geraldo Moreira Prado, mais conhecido como Alagoinhas (o apelido, ganhado em São Paulo, se deve à proximidade da sua terra com esta que é a maior cidade da região).

É uma biblioteca simples, onde crianças e adultos percorrem os corredores, retirando das estantes os livros que lhes interessam e leem em algumas mesas ali. O detalhe é que o Paiaiá tem 600 habitantes, e a biblioteca tem 120 mil volumes! Segundo a própria Walnice Nogueira Galvão pesquisou e concluiu, é a maior biblioteca em comunidade rural do mundo. E segundo meus cálculos, nela há 200 livros por morador, incluindo recém-nascidos. Onde mais tem uma biblioteca dessas?

Alagoinhas, o responsável




Geraldo saiu do Paiaiá nos anos 1960, com apenas o curso primário concluído. Veio para São Paulo, trabalhou, entre outras coisas, como porteiro de um prédio na Boca do Lixo. Com tempo ocioso na portaria e curiosidade, leu muito. Sonhava ser médico. Fez o exame de madureza (supletivo que dava diploma equivalente ao segundo grau de hoje) e acabou estudando mesmo foi História, na USP. Morou no Crusp, o Conjunto Residencial da USP, que foi ocupado pelos militares em 17 de dezembro de 1968, quatro dias depois da edição do famigerado AI-5.

Eu morava lá também, estudava Geografia, e fomos todos para o presídio Tiradentes. Alguns de nós (eu inclusive) fomos levados para o Dops em seguida. Ele escapou dessa.

Havia um bando de desgarrados com uma militância política, etílica e musical e nós fazíamos parte desse bando. Continuamos amigos e militando nessas coisas todas e na literatura também.

O Alagoinhas fez mestrado e doutorado, tornou-se pesquisador, professor universitário, um monte de coisas. Em 2002, morando no Rio de Janeiro, separou da mulher e teve que mudar para uma casa menor. O que fazer com os mais de 50 mil livros que tinha? Não cabia tudo na nova moradia. Tinha que “dispensar” pelo menos 12 mil livros. Vender para sebos, de jeito nenhum!

Ari, um sobrinho dele, sugeriu: por que não manda para o Paiaiá e abre uma biblioteca aqui? Topou. Foi o início da biblioteca. Muitos amigos ficaram sabendo e foram doando livros. Até o Antônio Cândido mandou para lá algumas obras preciosas. O próprio Ari virou um militante da literatura, estudou letras na Universidade Federal de Sergipe e, quando o conheci, estudava biblioteconomia.

Mas e daí? O que adianta ter 200 livros por habitante, se ninguém ler? Uma grande preocupação do Alagoinhas é esta, que a biblioteca não seja um mero depósito de livros. Então, promove regularmente atividades para formar leitores, não só com moradores locais, mas de toda a região.

Pinga inflacionada

Antes de “falar” do evento que vem aí, umas lembranças, do evento anterior, em 2017, a I Festa Literária da Biblioteca do Paiaiá.

Fui um dos palestrantes, e meu tema era o que rola de imaginário nas cabeças de nós brasileiros, principalmente dos sertões. Saci, Lobisomem… Tinha gente que entendia disso no Paiaiá, e o papo foi muito bom. E ouvi palestras de gente das universidades federais de Sergipe e da Bahia, da Universidade de Feira de Santana, de gente do Museu do Índio do Rio de Janeiro, e de alguns outros órgãos, até de Brasília. E houve também teatro infantil, música etc.

O que mais me chamava a atenção era o fascínio de crianças que mal tinham acesso a algum livro e naquele momento, com toda a liberdade, vasculhavam tudo, com curiosidade, os olhos brilhando. Para cada atividade chegavam uns quatro ou cinco ônibus lotados, vindos de várias cidades.

Passei quatro dias lá. No dia em que cheguei, fui direto para a biblioteca, com outros participantes e de lá fomos tomar umas cervejas numa birosca do outro lado da rua. Uma árvore grande, dava sombra às mesas embaixo, e a conversa rolou solta. Depois de mais de duas horas conversando e bebendo, falei: “Gente… Isso aqui me lembra a minha terra no início dos anos 1950, quando eu era criancinha. Nesse tempo todo em que estamos aqui não passou nenhum carro, nenhum veículo motorizado”.

Olhamos para os dois lados e não havia sequer um automóvel ou caminhão estacionado. E estávamos no meio da rua considerada principal, na verdade, pode-se dizer, única rua, porque as outras são travessas dela. É uma rua bem larga, com casas baixas. A mais alta é a da biblioteca, pois o Geraldo construiu em cima dela uma sala para palestras, debates e apresentações artísticas, e em cima dessa sala, o apartamento dele. Com esses três andares, a casa é conhecida como o Empire State do Paiaiá. E com a certeza de que não haveria trânsito, uma boa tenda foi erguida para atividades no meio da rua.

Depois de algumas cervejas me bateu a vontade de tomar uma cachacinha. Não tinha nesse bar. Mas recomendaram: uns duzentos metros mais à frente tinha a vendinha do Pedro Puro, que vendia cachaça, e mais: ele, com 93 anos de idade e sarando de uma chikungunya, era conhecedor dos efeitos medicinais das garrafadas de cachaça com pinga e ervas ou raízes. Fomos lá. Um rapaz que já tinha ido ao Paiaiá antes me avisou: “Tem um problema. A pinga aumentou muito de preço. No ano passado custava dez centavos a dose, agora tá custando 25 centavos”.

Éramos seis pessoas. Pedi uma com umburana, outros escolheram sabores diferentes ou pinga pura e eu paguei a rodada: R$ 1,50. Resolvemos experimentar outros sabores e acabei pagando no total quatro rodadas para seis pessoas. Gastei, nas 24 doses, R$ 6,00!

Na mensagem que o Alagoinhas me mandou perguntando se ainda dava pra eu ir lá, me deu a notícia, transmitida pelo celular: “Estou na venda do Pedro Puro. A pinga não aumentou nestes dois anos, continua a 25 centavos a dose”.

O que vai ter este ano




Com mais apoio de algumas instituições, apesar da crise, a Festa deste ano vai ter muito mais atividades. Terá circo, apresentações de teatro, banda de pífano, feira de produtos agroecológicos e artesanato rural, orquestra, bumba-meu-boi, projeção de filmes e cavalgada, além, é claro, das atividades literárias, que incluem venda, troca e doação de livros e revistas.

Muita gente boa estará lá, palestrando, inclusive, Juca Ferreira, ex-ministro da Cultura, culminando, no encerramento, com um baile na rua, em frente ao prédio da biblioteca.

A Festa é também o IV Encontro sobre Livro e Leitura do Semiárido Baiano, que tem como tema “A importância de ler”. Literatura de cordel, políticas culturais, contação de histórias, oficinas, jogos educativos, bioética e outros temas da atualidade estarão no cardápio.

Como chegar lá

São José do Paiaiá fica a 231 km de Salvador, indo pela BR-110, que liga a capital baiana a Paulo Afonso, passando pela região de Canudos. Tem ônibus de Salvador para lá, mas o povoado não tem pousadas, hotéis ou restaurantes, quem for deve se hospedar em Nova Soure, que é pertinho.

Mas pode ocorrer também de alguém oferecer quartos ou casas inteiras. Na minha ida, todos nós que preferimos ficar ali, fomos hospedados assim, de graça! E para comer, afora sanduíches ou eventuais pratos feitos, um sobrinho do Alagoinhas, craque na cozinha, oferecia pratos saborosíssimos por R$ 10,00. Quem sabe este ano terá também! Falem com os organizadores pelo e-mail bibliotecadopaiaia@gmail.com.

Algumas curiosidades




Não sei se em Parati algumas coisas ligadas a Canudos serão conversadas, e lembro-me de duas delas aqui.

O nome do arraial que chamamos de Canudos era na verdade Belo Monte. O nome Canudos era da fazenda onde ele se localizava. E a palavra canudos, no caso, se deve à planta chamada popularmente de canudo-de-pito, um arbusto abundante ali, cujas hastes, fininhas, são ocas e eram usadas como canudos para cachimbos de barro. Na minha terra, em Minas Gerais também usava-se canudo-de-pito.

Outra planta que deu nome a uma área do local acabou virando “celebridade” num certo sentido. É a favela, uma árvore que dá favas. Um morro ao lado de Belo Monte tinha muito dessa planta e por isso era conhecido como Morro da Favela. O exército que conseguiu exterminar o arraial se instalou ali, com canhões inclusive. De lá, bombardearam Belo Monte, sem piedade, até que as forças do exército invadiram o que restava do arraial. Uma mortandade sem limites: os militares encontraram lá (claro que houve fugitivos que escaparam), no meio dos cadáveres, um velho, uma criança e dois feridos.

Os soldados que participaram dessa chacina foram para o Rio de Janeiro achando que seriam recebidos com glória, mas não lhes ofereceram nem casas para morar. Montaram barracos no Morro da Previdência e ironizavam comparando com o Morro da Favela. Daí, favela ficou sendo o nome daquele morro também, em seguida se estendeu para outros morros com moradias precárias e por fim para todos os conjuntos de barracos, precários. Virou tudo favela.

Agora, algo que não tem nada com a Flip: quando o Alagoinhas mandou os primeiros 12 mil livros para lá, num caminhão cedido por uma transportadora, no momento em que o caminhão era descarregado ante a curiosidade geral, a TV Globo dava a notícia de um roubo de livros da Biblioteca Nacional. Uma fofoqueira local saiu esparramando que os livros que o Geraldo mandou para lá eram os roubados da Biblioteca. Ajudou na divulgação…

Outra coisa: Domingos Jorge Velho um, dos bandeirantes mais cruéis, contratado para destruir o Quilombo de Palmares no final do século XVII, antes disso já dizimava povos indígenas no Nordeste. O Payayá, de língua gê, foi um desses povos. O bandeirante comandou os primeiros brancos (embora tivesse indígenas também na sua horda) a aparecerem na região. Os descendentes dos que sobreviveram se espalharam e hoje se encontram em alguns municípios baianos. Cerca de 40 famílias vivem em Cabeceira do Rio, povoado do município de Utinga, na Chapada Diamantina, onde criaram o MAIP (Movimento Associativo Indígena Payayá) que, entre outras coisas, dedica-se à recuperação do rio Utinga e ao reflorestamento da área.

Tentei descobrir o significado da palavra paiaiá (ou payayá) e não consegui.