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sexta-feira, setembro 28, 2018

O Andar do Bêbado: como o acaso determina nossa vida



Por Fernando Nogueira da Costa

Nas últimas décadas, surgiu novo campo de investigação acadêmica que pesquisa o modo como as pessoas fazem julgamentos e tomam decisões quando defrontadas com informações imperfeitas ou incompletas. Em situações que envolvem o acaso, nossos processos cerebrais costumam ser deficientes. É área que reúne muitas disciplinas, não só a matemática e as ciências tradicionais, como também a psicologia cognitiva, a economia comportamental e a neurociência moderna. Embora um de seus principais autores, Daniel Kahneman, tenha ganhado Prêmio Nobel de Economia, em 2002, suas lições, em grande parte, ainda não são conhecidos do grande público.

Este livro, O Andar do Bêbado: como o acaso determina nossa vida (Rio de Janeiro, Jorge Zahar Educação., 2009, 249 páginas), está na lista dos mais vendidos de Não Ficção, no Brasil. Ele é uma tentativa de popularizar a Teoria da Aleatoriedade. Trata dos princípios que governam o acaso, do desenvolvimento dessas idéias e da maneira pela qual elas atuam em política, negócios, medicina, economia, esportes, lazer e outras áreas da atividade humana. Também trata do modo como tomamos decisões e dos processos que nos levam a julgamentos equivocados e decisões ruins quando confrontados com a aleatoriedade ou a incerteza.

Doutor em Física pela Universidade da Califórnia, Berkeley, Leonard Mlodinow hoje ensina as Teorias da Aleatoriedade no Instituto de Tecnologia da Califórnia. Por puro acaso, ele estava no World Trade Center na hora dos ataques terroristas do 11 de setembro de 2001, e, também por puro acaso, sobreviveu. Antes, já tinha escrito livros de sucesso, inclusive com Stephen Hawking, Uma Nova História do Tempo.

O título O Andar do Bêbado vem da analogia que descreve o movimento aleatório e serve como metáfora para a nossa vida. Podemos empregar as ferramentas usadas na compreensão do andar do bêbado para entendermos os acontecimentos da vida diária.

Outro autor de prestígio em Finanças Comportamentais, Richard Thaler, tinha dito o seguinte. “Um bêbado andando em um campo pode criar um caminho aleatório, embora ninguém possa chamar sua escolha de direção racional. Se os preços dos ativos dependem do trajeto que o bêbado adotou, seria boa idéia estudar como bêbados se orientam”…

Essa afirmação, ironicamente, faz referência ao “caminho aleatório” da Hipótese do Mercado Eficiente. Como os investidores não adivinham se o conteúdo da nova notícia será positivo, isto é, favorável à alta, ou negativa, levando à baixa das cotações, esse “caminho aleatório” recomenda que a melhor atitude é acompanhar o mercado e não tentar superá-lo. Nenhum investidor conseguiria isso de maneira sistemática, ao longo de vários anos. Esse “caminho aleatório”, paradoxalmente, é seguido pelas Finanças Racionais…

O objetivo do livro de Mlodinow é ilustrar o papel do acaso no mundo que nos cerca e mostrar de que modo podemos reconhecer sua atuação nas questões humanas. Gostei mais do décimo e último capítulo, justamente, o intitulado O Andar do Bêbado.

Nele, Mlodinow começa criticando a doutrina do determinismo: a idéia de que o estado do mundo no momento presente determina precisamente a maneira como o futuro se desenrolará. Na vida cotidiana, o determinismo pressupõe que nossas qualidades pessoais e as propriedades de qualquer situação ou ambiente levam direta e inequivocamente a consequências precisas. Nesse suposto mundo ordenado, tudo pode ser antecipado, computado, previsto. Mlodinow se pergunta, pelo contrário, sobre o quanto a aleatoriedade contribui para a situação em que nos encontramos na vida, e com que precisão somos capazes de prever para onde nos dirigimos.

Os cientistas, geralmente, pressupunham que se as condições iniciais de algum sistema fossem ligeiramente alteradas, sua evolução também se alteraria apenas ligeiramente. Lorenz descobriu que pequenas diferenças levavam a alterações grandes no resultado. O fenômeno conhecido como “Efeito Borboleta”, com base na idéia de que ínfimas alterações atmosféricas, como as causadas pelo bater das asas de uma borboleta, poderiam ter grande efeito nos subsequentes padrões atmosféricos globais.

Uma sequência cinematográfica fantástica para ilustrar como eventos aleatórios, aparentemente inconsequentes, podem levar a grandes mudanças pessoais está no filme “O Curioso Caso de Benjamin Button”. Envolve a cena quando a personagem Daisy, a bailarina interpretada por Cate Blanchett, é atropelada em Paris.

Na verdade, o determinismo se mostra incapaz de satisfazer as condições de previsibilidade nas questões humanas às quais aludiu Laplace. Além de ser imprevisível, o comportamento humano é, frequentemente, irracional, agindo inclusive de modo contrário aos próprios interesses, como demonstrado por Kahneman e Tversky.

Mesmo que conseguíssemos descobrir as leis dos assuntos humanos, é impossível conhecermos ou controlarmos precisamente as circunstâncias de nossas vidas. As questões humanas são tão complexas que, mesmo que compreendêssemos as leis e possuíssemos todas as informações, dificilmente conseguiríamos realizar os cálculos necessários. Por isso, o determinismo é modelo fraco para descrever a experiência humana. Como o ganhador de Prêmio Nobel, Max Born, disse, “o acaso é conceito mais fundamental que a causalidade”.

Nos estudos científicos dos processos aleatórios, o “andar do bêbado” é o arquétipo. Os eventos aleatórios nos empurram, continuamente, em uma direção e, depois, em outra. O futuro de cada indivíduo é impossível de prever. Todos devemos muito mais ao acaso do que somos capazes de perceber. Não temos como evitar certas forças inesperadas e imprevisíveis. Essas forças aleatórias e nossas reações a elas são responsáveis por muito do que constitui o trajeto particular que seguimos na vida.

Entretanto, na vida cotidiana, o passado parece óbvio, mesmo que não tivéssemos a possibilidade de haver previsto. Em qualquer série complexa de eventos na qual cada evento se desenrola com algum elemento de incerteza, existe assimetria fundamental entre o passado e o futuro. O movimento sem rumo prossegue em alguma direção. Até que atinge alguma posição significativa que, finalmente, chama nossa atenção. Então, investigamos o motivo da ocorrência desse acontecimento inesperado.

Em retrospecto, conseguimos explicar, claramente, porque o passado ocorreu de determinada forma, embora não tenhamos previsto de antemão o trajeto. Isso teria envolvido número quase inimaginável de cálculos matemáticos, série muito maior, em escopo e dificuldade, que a lista de eventos necessária para entendermos o passado. Essa assimetria fundamental pode ser expressa por ditado como “depois da onça morta, todo o mundo é caçador”.  Aparecem os “engenheiros de obra feita”.

Há processo probabilístico cujo futuro é difícil de prever, mas cujo passado é fácil de entender. A sucessão lógica de eventos, deduzida a posteriori, é o modo como vemos a coisa em retrospecto, tendo pouca relevância na previsão de eventos futuros. A ordem do passado se dissolve quando extrapolada para o futuro.

Sistematicamente, deixamos de enxergar o papel do acaso no sucesso de empreendimentos e de pessoas. Acreditamos, irracionalmente, que os erros do passado devem ser consequências da ignorância ou da incompetência. Confiamos demais nas previsões excessivamente precisas de pessoas, desde comentaristas políticos ou esportivos até especialistas em Finanças, passando por consultores de negócios, cujo histórico supostamente demonstra serem grandes conhecedores desses assuntos. Os palpites se transformam em fórmulas que alegam possuir precisão de várias casas decimais, mas os resultados esperados são, na verdade, grandes chutes!

Os historiadores, cuja profissão consiste em estudar o passado, sabem que não é possível prever a maneira como decorrerão as coisas. É a ilusão de inevitabilidade.

Pior, após qualquer tragédia, surge sempre o jogo de culpas no qual pessoas, geralmente do governo, são acusadas por não terem previsto o que estava por acontecer. Os eventos, vistos em retrospecto, certamente parecem apontar em direção óbvia. Se começarmos a analisar bem antes do fato e acompanharmos os eventos progressivamente, a sensação de inevitabilidade se dissolve rapidamente. Afirma Mlodinow: “o estudo da aleatoriedade nos mostra que enxergar os eventos por bola de cristal é possível, mas, infelizmente, apenas depois que eles já aconteceram”.

O conhecimento de por que aconteceu algo é vazio, ou seja, tem pouca utilidade se quisermos saber o que acontecerá no futuro. É fácil construir histórias para explicar o passado ou convencer de algum desdobramento futuro duvidoso. Para nos imunizarmos contra os erros da intuição, temos de enxergar tanto as explicações ex-post como as profecias com ceticismo. Em vez de confiarmos em nossa capacidade de prever os acontecimentos futuros, com base em nosso arcabouço determinístico automático, devemos nos concentrar na capacidade de reagir a eles.

A nova Teoria dos Acidentes codifica o argumento central de Mlodinow: em sistemas complexos, entre os quais a nossa vida, devemos esperar que fatores menores, que geralmente ignoramos, possam causar grandes acidentes em função do acaso. Os sistemas modernos são formados por milhares de partes, incluindo seres humanos falíveis e as decisões tomadas por eles, que se inter-relacionam de maneiras impossíveis de rastrear e prever individualmente. Os acidentes acabarão por ocorrer, sem causas claras, sem a presença de erros evidentes e vilões irresponsáveis, tão perseguidos por Comissões Parlamentares de Inquéritos na busca de “bodes expiatórios”.

Há também a visão determinística do mercado, segundo a qual o sucesso é governado principalmente pelas qualidades intrínsecas da pessoa ou do produto. Porém, há a visão não determinística, segundo a qual há muitos livros, cantores e atores de alta qualidade, porém desconhecidos, e o que faz com que um deles se destaque é, em grande parte, conspiração de fatores pequenos e aleatórios, isto é, a sorte. Talvez a explicação do sucesso de “O Andar do Bêbado” seja apenas isso: sorte.

Nossa sociedade se apressa em transformar os ricos em heróis e os pobres em bodes expiatórios. Obviamente, pode ser erro julgarmos o brilhantismo das pessoas em proporção à sua riqueza. Não enxergamos o potencial individual, apenas os resultados, pensando que estes devem refletir o interior. A Teoria do Acidente Normal não nos mostra que, na vida, a conexão entre ações e resultados é aleatória, mas sim que influências aleatórias são tão importantes quanto nossas qualidades e ações. As pessoas superestimam a capacidade de inferir a habilidade de determinada pessoa em função de seu sucesso.

As classificações de popularidade não concordam com a qualidade intrínseca determinada por avaliadores isolados. A aparente popularidade influencia os futuros compradores. Depois de ouvirem alguns elogios, os futuros consumidores/expectadores tendem a gostar mais daquele produto. Pequenas influências casuais criam “bola de neve”, gerando o “efeito borboleta” para seu sucesso. Daí, a maioria das pessoas não consegue evitar o julgamento intuitivo de que o que ganha o produtor se correlaciona ao valor pessoal.

Por exemplo, os autores devem ser julgados por seu modo de escrever e não pelas vendas de seus livros, ou seja, a pessoas devem ser julgadas mais por suas habilidades que por seus êxitos. A linha que une a habilidade e o sucesso é tênue. A habilidade não garante conquistas, e as conquistas não são proporcionais à habilidade. Não se pode esquecer o papel do acaso.

Quando desistimos de algum projeto por acreditarmos no julgamento dos outros, ou do mercado, em vez de acreditarmos em nós mesmos, trata-se realmente de uma tragédia. O que Mlodinow aconselha é “seguir em frente, pois a grande idéia é a de que, como o acaso efetivamente participa de nosso destino, um dos mais importantes fatores que levam ao sucesso está sob o nosso controle: o número de vezes que nos arriscamos, ou seja, o número de oportunidades que aproveitamos”.

Devemos identificar e agradecer a sorte que temos e reconhecer os eventos aleatórios que contribuem para nosso sucesso. Temos de aprender a aceitar também os eventos fortuitos que nos causam sofrimento. Mas, acima de tudo, é importante apreciar a ausência de azar, a ausência de eventos que poderiam ter nos derrubado e a ausência das doenças, das guerras, da fome e dos acidentes que não, ou ainda não, nos acometeram.

quinta-feira, setembro 27, 2018

Ricardo Arnt analisa a complexidade e o anedotário de Jânio Quadros



Por Eduardo Graeff

Se você quer saber mais do que o trivial sobre Jânio Quadros (1917-1992) sem ter que mergulhar em análises acadêmicas e depoimentos maçudos, uma razão para escolher este livro de Ricardo Arnt é que ele é muito bem escrito. São 128 páginas de prosa leve, agradável, misturando nas doses certas narrativa histórica e o inevitável anedotário. Junte a isso a pesquisa cuidadosa e um senso de perspectiva histórica incomum, tratando-se de um personagem tão controvertido, e o resultado é uma leitura interessante mesmo para quem se considera razoavelmente informado sobre Jânio e o período que ele protagonizou na política brasileira.

Se o estilo faz o homem, Jânio, para muitos críticos, foi puro estilo, pura forma sem conteúdo autêntico algum por baixo. Arnt introduz seu biografado com cinco fragmentos de discurso escolhidos para remeter diretamente ao enigma do janismo como fenômeno de comunicação de massa: a linguagem rebuscada, cheia de mesóclises e palavras difíceis, que fascinava até e principalmente quem não a entendia direito.

Daí evoca a dicção professoral, os gestos e esgares de possuído, o rosto magro emoldurado pela cabeleira desgrenhada, os óculos, o colarinho e a gravata sempre desalinhados, o terno amarrotado sobre o corpo franzino. Boa parte da sabedoria convencional sobre Jânio gira em torno dessa imagem e de como ela impulsionou a ascensão meteórica do vereador em 1947 a presidente da República em 1961, com 44 anos de idade, desconcertando as elites e atropelando partidos e lideranças políticas tradicionais.

Caso extremo de mistificação das massas por um demagogo travestido de “homem providencial”? Não exatamente. “Jânio foi um prestidigitador, mas não uma fraude. Só uma crítica ressentida pode atribuir sua complexa popularidade à manipulação demagógica ou à vitória da forma sobre o conteúdo”, diz Arnt. Tentando decifrar essa complexidade, ele mostra como as idéias do personagem principal, as aspirações do eleitorado e as voltas do jogo político-partidário se combinaram para definir e redefinir o significado político do janismo a cada etapa de sua trajetória.

Constatação surpreendente para quem só o conheceu à luz do estereótipo do ilusionista sem limites: Jânio teve, sim, um ideário político, ambíguo, mas definido. E tentou levá-lo à prática! Professava uma crença apaixonada no ideal democrático-liberal do primado da igualdade perante a lei.

Ao mesmo tempo, na contramão do liberalismo, apostava mais no Estado do que no mercado como instrumento do bem comum. Pensava que um Estado submetido ao rigor impessoal da lei, liberto de toda influência particularista, bastaria para alavancar o progresso e promover o que hoje chamamos de “inclusão” das maiorias destituídas. O ícone moralista da vassoura brandida contra a “bandalheira” dos políticos tradicionais, da burocracia, dos tubarões, exprimia essa crença.

Com essas idéias, os dotes de comunicador e a imensa ambição, Jânio mudou a cara política de São Paulo na década de 1950.


Como vereador e depois prefeito da capital, abriu as portas para a massa de migrantes recém-chegados em busca de emprego, lugar na malha urbana em expansão e acesso aos serviços públicos deficitários. Tinha, além de tudo, uma capacidade de trabalho impressionante. Despachava das 6h30 às 20h, aguilhoando a burocracia com os famosos bilhetinhos e visitas-surpresa.

Foi, a seu modo, um modernizador da administração pública. E um precursor da responsabilidade fiscal, respaldando o “professor” Carvalho Pinto no árduo trabalho de saneamento das contas do município e depois do Estado. Também teve seu lado desenvolvimentista: como governador, fez investimentos em infraestrutura fundamentais para que São Paulo mantivesse a dianteira da industrialização nos anos JK.

Sua chegada à Presidência foi o ápice de uma “revolução pelo voto” que marca a estréia das massas populares urbanas como presença determinante na cena da incipiente democracia brasileira. O grande enigma é como a onda de participação e modernização estagnou e refluiu nos meros sete meses entre a posse e a renúncia de Jânio, em 25 de agosto de 1961.

Olhando mais o contexto geral do que os detalhes da trama política, três explicações sobressaem. Primeiro, o personalismo extremado da liderança de Jânio, junção do temperamento autoritário com uma concepção plebiscitária de democracia, avessa ao jogo de concessões e cooptações com o Congresso que viria a ser reconhecido, mas só bem mais tarde, como lei de ferro do “presidencialismo de coalizão” brasileiro.

Segundo, a dificuldade de lidar com a escala de complexidade da máquina federal e dos problemas do país usando o mesmo hipercentralismo que compusera a mística de competência do janismo na esfera municipal e funcionara precariamente, mas em todo caso funcionara, no governo do Estado. Terceiro, o contágio do ambiente político doméstico pela polarização ideológica da Guerra Fria, pouco propícia a um reformismo moderado como o que Jânio ensaiara em São Paulo, admirava nos não-alinhados Nasser, Nehru e Tito e se propunha a pôr em prática no Brasil.

Impossível resumir em poucas linhas o cipoal de equívocos que leva desse contexto problemático ao desfecho da renúncia, de todo modo inesperado. Nesse ponto a narrativa de Arnt ganha vibração de um bom thriller político.

Seguem-se anos de ostracismo, prolongados pela ditadura militar, para a qual ele próprio abriu caminho com a crise da renúncia. A reentrada decepcionante como prefeito de São Paulo, em 1985, traz o Jânio Quadros que eu conheci diretamente. Uma caricatura de si mesmo, desfigurado, trêmulo, os reflexos autoritários abafando qualquer eco distante do passado transformador. Ainda assim capaz de empolgar a Vila Maria e ganhar a eleição, não por maioria absoluta, é verdade, mas graças à divisão do voto reformista entre Fernando Henrique Cardoso e Eduardo Suplicy.

Ao resgatar o perfil do estadista que ele poderia ter sido, Arnt não redime Jânio do vexame de haver deixado escapar a oportunidade histórica que representou. Mas cumpre a promessa de fazer justiça à complexidade do janismo como momento da constituição de uma democracia de massas no Brasil. E ajuda a entender com mais profundidade e humildade o desafio que as reformas com democracia continuam a representar para o país.

Eduardo Graeff é sociólogo, foi assessor parlamentar e secretário-geral da Presidência da República no governo Fernando Henrique Cardoso

quinta-feira, setembro 20, 2018

A década que não existiu



Topo Gigio e sua criadora Maria Perego

Por Ruy Castro

Tenho uma tese de difícil defesa e baixa possibilidade de aceitação, e que só revelo aos mais chegados quando eles prometem não rir: a de que os místicos anos 60, que apaixonam todo mundo – tanto os que os viveram como os que só os conheceram de livro, disco ou filme –, não existiam.

Com isso quero dizer que, até 1965, ainda não tínhamos saído completamente dos anos 50. E, a partir de 1966, já estávamos nos anos 70 e não sabíamos. Donde os anos 60 não existiam. Tudo bem, é um enunciado ousado, talvez antipático. Mas, somente para argumentar, eis alguns dos motivos que me levaram a tal conclusão.

Até 1965, os homens ainda usavam ternos e gravata. Cuidavam para não desfazer o vinco da calça e aplicavam Glostora ao topete. Os rapazes dobravam as manguinhas da camisa esporte ao estilo James Dean. As mulheres usavam anáguas, armavam o cabelo com Bombril e só saíam à rua de frasqueira. Ia-se a Paris. Ainda não havia a pílula, donde os casais tinham de, literalmente, se virar para fazer amor sem risco de gravidez. Fumava-se Minister e se tomava Old Parr. Tudo como nos anos 50. E, como nestes, lia-se Sartre, Faulkner e Pearl S. Buck.

A partir de 1966, tudo acima foi abandonado, exceto Sartre, premiado com alguma sobrevida. Os homens aderiram aos mocassins, às camisas de malha e às calças jeans, bem justas na perna. Muitos nunca mais foram ao barbeiro. As mulheres converteram-se à minissaia, passaram para a maxissaia e acabaram na midissaia. A Meca passou a ser Londres. Veio a pílula e nos locupletamos todos. Fumava-se maconha e se tomava LSD. Como nos anos 70. E, como nestes, já se lia Marcuse, McLuhan e Mao Tsé-Tung.

Quer saber o que sobrou e que se pode considerar exclusivo dos anos 60? Godard. Barbarella. Twiggy. Ravi Shankar. Geraldo Vandré. Leno & Lilian. Vladimir Palmeira. Ted Boy. Marino. Topo Giggio.

terça-feira, setembro 18, 2018

A impostura booktuber



Por Paulo Roberto Pires

Vamos combinar que é preciso uma generosa suspensão do espírito crítico para levar a sério, cultural ou intelectualmente, os chamados booktubers. Trata-se, como se sabe, de uma subespécie dos digital influencers, criaturas do reino digital que, devido à notoriedade adquirida na web ou fora dela, têm a propriedade de direcionar de alguma forma comportamento, gostos e, claro, consumo de seus “seguidores” nas redes sociais.

Como não existe almoço grátis, os influenciadores estão aí, na vida, sujeitos a ser influenciados por um presente ou um dinheirinho para, em retribuição, influenciar quem por eles é influenciável. O booktuber, como diz o próprio nome – assim mesmo, em português –, busca influenciar leitores falando sobre livros que em tese o influenciaram e que na prática podem influenciar as vendas.

Pois lá estavam eles, falando pelos cotovelos, influenciando geral, quando o escritor e jornalista Ronaldo Bressane resolveu postar em suas redes sociais a tabela de uma booktuber para o que ela chama de “leitura/divulgação/resenha em vídeo”.

Se o autor – ou, como é mais comum, a editora – desembolsar R$ 2 mil, pode ver seu livro ser mencionado com dois outros num vídeo em que a influenciadora expõe suas “impressões de leitura”. Como ela ressalva, não se trata de um comentário qualquer, mas de impressões “pessoais, sem interferência do autor/editora”.

Por R$ 3.500, a influência fica mais forte: pode-se ter um vídeo inteirinho para o livro. Com R$ 5 mil, além da atenção exclusiva, a capa do livro é postada por aí e aparece em vídeo dos outros.

O que parece um documento de barbárie foi, no entanto, defendido nas redes como evidência de cultura, de uma nova cultura.

Na chusma de comentários que se seguiu ao post, lê-se claramente a tese de que crítica literária e mídia são instituições falidas, que não se comunicam com um número expressivo de pessoas, ou seja, que não influenciam ninguém – e que, portanto, não têm mais relevância. Ou só a teria num desprezível círculo de “intelectuais”, caricaturados como elitistas de um Antigo Regime intimidado pela estridente choldra digital.

Nos tempos que se querem novos, opinião e orientação de consumo dão no mesmo e a mediação cultural profissional é substituída pelo princípio “uma webcam na mão e nenhuma ideia na cabeça”.

Os vídeos obedecem a uma fórmula simplória. Informações de orelha e Wikipédia sobre os autores são papagaiadas a título de “contexto” e introdução aos comentários, na prática um resumo da trama com obsessivos alertas sobre spoilers. Depois vem o momento impressionista do “gostei” disso, “não gostei” daquilo, “me emocionei”.

Boa parte dos livros comentados enquadra-se no lucrativo nicho do “jovem adulto”, o que quase sempre nivela crítica e criticado. Mais dramáticas são as resenhas de clássicos – eu vi, ninguém me contou, o elogio a uma tradução por “não ter erros de digitação” e ressalvas ao Diário de Anne Frank por causa das “vibrações ruins” do Holocausto.

Como se pôde ver claramente no episódio da tabela das “impressões de leitura”, os booktubers e seus apologistas orgulham-se de sua ignorância e defendem o amadorismo num reiterado elogio do desconhecimento de causa.

Respondem a qualquer crítica no modelito consagrado pelas redes: quem diverge, diverge porque se sente pessoalmente ofendido por aquilo que critica e, ao divergir, passa recibo da importância de seu suposto inimigo, uma ameaça em potencial a seu lugar no mundo.

Não se poderia mesmo esperar outra coisa de uma cultura centrada em monólogos e umbigos, na qual é inconcebível que se possa querer discutir questões que digam respeito ao coletivo, e não apenas ao sagrado direito à “monetização”.

Cevados pelas editoras com pagamentos ou, mais frequentemente, simples remessas de livros, os booktubers celebram a vitória dos critérios de mercado sobre quaisquer outros.

Democratizar leitura é vender muito – não importando a qualidade do que se vende. Mistura de populismo de mercado com anti-intelectualismo, a filosofia booktuber atualiza o princípio de Monteiro Lobato de que “um país se faz com homens e livros”. É só olhar em volta e ver em que Brasil vivemos hoje.

Custa falar mal?



Por Ruan de Sousa Gabriel

Nos últimos dois fins de semana, discussões sobre crítica literária tomaram os rincões do Twitter. No domingo da semana passada, dia 12, discutiu-se o ensaio que Camila von Holdefer publicou na Ilustríssima em defesa da “crítica hostil”. Camila criticou a suposição de que a crítica negativa seria “um exercício vazio, nocivo ou datado”.

Como sempre, houve quem aplaudisse a defesa de uma crítica literária que não teme ferir os sentimentos de escritores sensíveis e quem argumentasse que crítico literário não é jurado rabugento de reality show. O que animou esse último fim de semana foi a “treta dos booktubers”. O escritor Ronaldo Bressane divulgou um e-mail trocado com um booktuber que só resenharia o livro dele “após aprovação de orçamento”.

Esse booktuber cobra entre R$ 2 mil e R$ 5 mil para divulgar um livro. Alguns comentários sobre o livro em um “vídeo coletivo [com outros dois livros]” custam R$ 2 mil. Por R$ 3 mil, o escritor ainda descola divulgação da capa e da sinopse do livro no Facebook, no Instagram e no Twitter – o booktuber tem mais de 60 mil seguidores no Facebook, mais de 74 mil no Instagram e quase 20 mil no Twitter. Além de quase 288 mil inscritos em seu canal no YouTube. Os R$ 5 mil compram um vídeo individual, de cinco a dez minutos, e divulgação completa nas redes sociais. No e-mail, o booktuber garantia que seus comentários seriam “pessoais, sem interferência do autor/editora”.

Como sempre, houve quem se escandalizasse com a capacidade de cobrar por uns comentários literários. O prazer da leitura já não é recompensa suficiente? Não é meio indecente – um pecado, talvez – misturar poemas e moedas? Ninguém pode servir a dois senhores. Não podeis servir à literatura e ao dinheiro. E houve quem se lembrasse de que ninguém paga boletos com versos de Fernando Pessoa ou ensaios criativos sobre os contos de Borges.

O escândalo com a gula dos vídeo-resenhistas repetia aquela antiga crítica ao próprio ofício dos booktubers: quem são eles para falar de literatura? E ainda mais num formato tão baixo como um vídeo no YouTube? Ok, quem poderia então falar de literatura – e onde? Todos sabemos a resposta. Críticos sisudos naqueles suplementos literários que acompanham os jornais aos sábados (e que não existem mais). Esses críticos, sim, sabem que o prazer do texto vale mais do que dinheiro.

Mas os resenhistas dos jornais também não escrevem de graça. É claro, eles não são pagos pelos próprios escritores ou pelas editoras, mas pelo dono do jornal, o que (a princípio) lhes dá mais independência. O resenhista de jornal colabora para uma empresa e às vezes tem até um patrão. O booktuber é um empreendedor que presta um serviço. O escritor é seu cliente. Será que ele pode desagradá-lo?

A “treta dos booktubers” foi um pouco sobre qual é a exata definição do serviço que eles prestam (se publicidade ou crítica) e um pouco sobre as dificuldades de manter a independência intelectual quando há dependência financeira. É tranquilo para um booktuber falar mal do livro de um escritor que acabou de transferir R$ 5 mil para a conta dele? Não existe a tentação de agradar o cliente, aquele papo “servir bem para servir sempre”?

Destroçar os livros de seus escritores-clientes pode ser ruim para os negócios. Mas elogiar todo mundo que paga não pega bem com o público, que pode trocar esse booktuber por um improvável resenhista de jornal. Talvez haverá sempre algo de nebuloso no negócio dos booktubers: eles fazem divulgação ou uma nova modalidade de crítica literária, mais em sintonia com os novos tempos?

No fim desse domingo literário, os tuiteiros tinham chegado a um acordo: o booktuber pode cobrar por resenha, mas deve deixar isso claro para seus seguidores. A “treta dos booktubers” me levou a reler o texto da Camila von Holdefer na Folha de S. Paulo, assunto do domingo anterior. Suspeito que as discussões dos dois fins de semana sejam sobre a mesma coisa: custa falar mal? E mais: precisa falar mal?

A crítica mais corajosa é mesmo aquela que puxa a orelha dos autores que erram na regência dos verbos ou no destino dos personagens? O ensaio da Camila é uma boa declaração de princípios: um crítico não deve ter medo de criticar, de apontar inconsciências, de afrontar. Mas será que a crítica hostil também não é um pouco problemática – e talvez ultrapassada?

O louvor à “crítica hostil” me parece entronizar o crítico num lugar de “juiz do gosto”. A literatura se torna um lugar a ser atingido. Para merecer uma boa resenha – um “excelente”, um “muito bom”, quatro ou cinco estrelas –, um escritor deve saber usar bem as vírgulas, não abusar dos advérbios terminados em “mente” e tomar cuidado com as metáforas.

Ou seja: para ser boa literatura, a literatura deve se submeter a algumas regras, se esforçar para atingir determinados padrões. Mas a boa literatura não é muitas vezes aquela que subverte as regras e tortura as palavras para que elas digam algo de novo? Dostoiévski e Roberto Arlt foram repetidas vezes acusados de praticar uma escrita rude e sem brilho, mas alguém ainda duvida que eles foram escritores fantásticos?

O crítico hostil é um pouco defensivo, pratica uma leitura rancorosa e lê romances com um lápis afiado à mão, pronto para corrigir os erros de escritores indolentes. Ele sabe todas as respostas. Mas o que acontece quando a literatura inventa novas perguntas?

Não acho que a boa crítica precisa ser implacável, como o pai de Kafka. Em vez de lutar com o texto, o crítico pode brincar com ele – um pouco de promiscuidade também vale. Uma briga só serve para medir a força ou o preparo técnico de alguém. Quem entende de criatividade é a brincadeira.

Um bom crítico dialoga com o texto, formula perguntas à medida que a leitura avança e, sobretudo, permite que o texto também o questione, o escandalize, o irrite. Como disse um amigo meu, “boa crítica talvez seja aquela que prolonga e recoloca a obra em outros termos – para o bem ou para o mal”.

Fiquei pensando se recolocar uma obra em outros termos também não é permitir ser recolocado, ou seja, concordar que a literatura nos deixa desconfortáveis, sem resposta, com raiva. Aceitar essa posição desconfortável e abandonar as luvas de boxe na hora da leitura não significa se contentar com uma crítica pouco rigorosa ou condescende, mas entender que o crítico não é nenhum juiz.

Um crítico menos interessado em argumentar contra ou a favor de um livro e mais curioso quanto à qualidade e à inteligência das perguntas que um texto é capaz de formular me parece ser um crítico mais corajoso e capaz de instigar outras pessoas à prática da leitura – não importa se ele exercita essa curiosidade no papel ou num vídeo no YouTube.

Zygmunt Bauman: o pensamento do sociólogo da “modernidade líquida”



Por Carolina Cunha

“Vivemos em tempos líquidos. Nada foi feito para durar”. Essa é uma das frases mais famosas do sociólogo polonês Zygmunt Bauman, falecido em janeiro de 2017, aos 91 anos. Ele deixou uma obra volumosa, com mais de 50 livros, e é considerado um dos pensadores mais importantes e populares do fim do século 20.

Bauman é um dos expoentes da chamada “sociologia humanística” e dedicou a vida a estudar a condição humana. Ele é visto por muitos como um teórico perspicaz e por outros como um ingênuo pessimista. Suas ideias refletem sobre a era contemporânea em temas como a sociedade de consumo, ética e valores humanos, as relações afetivas, a globalização e o papel da política.

Nascido na Polônia em 1925, Bauman serviu como militar durante a Segunda Guerra Mundial, foi militante do Partido Comunista polonês e professor da Universidade de Varsóvia. Filho de judeus, ele foi expulso da Polônia em 1968 por causa do crescente antissemitismo do Leste Europeu. Emigrou para Israel e se instalou na Inglaterra, onde desenvolveu a maior parte de sua carreira. Desde 1971 atuava como professor emérito de sociologia da Universidade de Leeds.

A modernidade sólida e a modernidade líquida

O tempo em que vivemos é chamado por muitos pensadores como “pós-modernidade”. O termo foi popularizado em 1979 pelo pensador francês Jean-François Lyotard (1924-1998).  Para Lyotard, esse é o período em que todas as grandes narrativas (visões de mundo) entram em crise e os indivíduos estão livres para criar tudo novo.

Bauman não utiliza o termo pós-modernidade. Ele cunhou o conceito de “modernidade líquida” para definir o tempo presente. Escolheu a metáfora do “líquido” ou da fluidez como o principal aspecto do estado dessas mudanças. Um líquido sofre constante mudança e não conserva sua forma por muito tempo.

As formas de vida contemporânea, segundo o sociólogo polonês, se assemelham pela vulnerabilidade e fluidez, incapazes de manter a mesma identidade por muito tempo, o que reforça um estado temporário e frágil das relações sociais e dos laços humanos. Essas mudanças de perspectivas aconteceram em um ritmo intenso e vertiginoso a partir da segunda metade do século XX. Com as tecnologias, o tempo se sobrepõe ao espaço. Podemos nos movimentar sem sair do lugar. O tempo líquido permite o instantâneo e o temporário.


Em seu primeiro livro, “Mal-estar da pós-modernidade”, Bauman parodia Sigmund Freud (1856-1939), autor de “O Mal-estar da civilização”. A tese freudiana é de que na idade moderna os seres humanos trocaram liberdade por segurança. O excesso de ordem, repressão e a regulação do prazer gerou um mal-estar, um sentimento de culpa.

Para Bauman, “a modernidade sólida tinha um aspecto medonho: o espectro das botas dos soldados esmagando as faces humanas". Pela estabilidade do Estado, da família, do emprego ou de outras instituições, aceitava-se um determinado grau de autoritarismo. Segundo o sociólogo, a marca da pós-modernidade é a própria vontade de liberdade individual, princípio que se opõe diretamente à segurança projetada em torno de uma vida estável.

Bauman entende que na modernidade sólida os conceitos, ideias e estruturas sociais eram mais rígidos e inflexíveis. O mundo tinha mais certezas. A passagem de uma modernidade a outra acarretou mudanças em todos os aspectos da vida humana. A modernidade líquida seria “um mundo repleto de sinais confusos, propenso a mudar com rapidez e de forma imprevisível”.

Bauman entende que a nossa sociedade teve uma maior emancipação em relação às gerações anteriores. A sensação de liberdade individual foi atingida e todos podem se considerar mais livres para agir conforme seus desejos. Mas essa liberdade não garante necessariamente um estado de satisfação. Ela também exige uma responsabilidade por esses atos e joga aos indivíduos a responsabilidade pelos seus problemas.

Na sociedade contemporânea emergem o individualismo, a fluidez e a efemeridade das relações. Se a busca da felicidade se torna estritamente individual, criamos uma ansiedade para tê-la, pois acreditamos que ela só depende de nós mesmos. Para Bauman, somos impulsionados pelo desejo, um querer constante que busca novas formas de realizações, experiências e valores. O prazer é algo desejado e como ele é uma sensação passageira, requer um estímulo contínuo.

À medida em que o futuro se torna incerto, o sentimento coletivo dominante é que se deve viver o momento presente e exclusivamente para si. Dessa instabilidade e ausência de perspectiva também nasce uma angústia. A incerteza diante do futuro pode explicar o aumento do uso de antidepressivos e a intensa busca por entretenimento como formas de afastar essa sensação.

Em muitos casos, essa angústia resulta na paralisia da ação, na incapacidade de agir. Ao lidar com uma insegurança, muitas vezes o indivíduo se recusa a assumir responsabilidades ou assume o discurso do “eu não gosto de tomar decisões”. Somos livres, mas não conseguimos transformar o mundo – temos um sentimento de impotência. Em outros casos, essa frustração pode gerar um ódio intenso a tudo e a todos.

Em entrevista ao jornal argentino Clarín, Bauman declarou: “escolhi chamar de ‘modernidade líquida’ a crescente convicção de que a mudança é a única coisa permanente e a incerteza a única certeza”. Bauman entende a crise como sendo um tempo em que o velho já se foi, mas o novo não tem forma ainda. Em entrevista ao jornal italiano Il Messaggero, o sociólogo sinaliza que buscamos um estado de maior solidez. “Ainda estamos em uma sociedade líquida, mas em que nascem sonhos de uma sociedade menos líquida”, afirmou.


A sociedade do consumo

Bauman observa que o século 20 sofreu uma passagem da sociedade de produção para a sociedade de consumo.  Isso não significa que não exista uma produção, mas que o sentido do ato de consumir ganhou outro patamar.

Se as grandes ideologias, alicerces e instituições se tornaram instáveis, o consumo se tornou um elemento central na formação da identidade. Muito além da satisfação de necessidades, consumir passa a ter um peso primordial na construção das personalidades.  O ter se torna mais importante que o “ser”.

Temos inúmeras possibilidades de escolha e consumimos produtos que identifiquem um determinado estilo de vida e comportamento. Ao transformar tudo em mercadoria, nossa identidade também se constitui a partir da satisfação do prazer pelo consumo. Marcas e grifes se tornam um símbolo de quem somos. Sua compra também significa um status social, o desejo de um reconhecimento perante os outros.

Satisfazer por completo os consumidores, na realidade, significaria não ter mais nada para vender. Consumir também significa descartar. Temos acesso a tudo o que queremos e ao mesmo tempo as coisas se tornam rapidamente obsoletas. “O problema não é consumir; é o desejo insaciável de continuar consumindo”, diz Bauman. Tanto que o descarte do lixo é um grande problema na sociedade.

Bauman escreve: “Rockefeller pode ter desejado construir suas fábricas, estradas de ferro e torres de petróleo altas e volumosas e ser dono delas por um longo tempo [...], Bill Gates, no entanto, não sente remorsos quando abandona posses de que se orgulhava ontem; é a velocidade atordoante da circulação, da reciclagem, do envelhecimento, do entulho e da substituição que traz o lucro hoje – não a durabilidade e a confiabilidade do produto”.

As pessoas também precisam se reinventar para que não se tornem obsoletas. Elas precisam ter identidades fluidas.  Segundo Bauman, “na sociedade de consumidores, ninguém pode se tornar sujeito sem primeiro virar mercadoria, e ninguém pode manter segura sua subjetividade sem reanimar, ressuscitar e recarregar de maneira perpétua as capacidades esperadas e exigidas de uma mercadoria vendável”.

As relações líquidas

Na modernidade líquida, os vínculos humanos têm a chance de serem rompidos a qualquer momento, causando uma disposição ao isolamento social, onde um grande número de pessoas escolhe vivenciar uma rotina solitária. Isso também enfraquece a solidariedade e estimula a insensibilidade em relação ao sofrimento do outro.

Esse tipo de isolamento parece ser uma contradição da globalização, que aproxima as pessoas com a tecnologia e novas formas de comunicação. Mas se tudo ocorre com intensa velocidade, isso também se reflete nas relações pessoais. As relações se tornam mais flexíveis, gerando níveis de insegurança maiores. Ao mesmo tempo em que buscam o afeto, as pessoas têm medo de desenvolver relacionamentos mais profundos que as imobilizem em um mundo em permanente movimento.

Bauman reflete sobre as relações humanas e acredita que os laços de uma sociedade agora se dão em rede, não mais em comunidade. Dessa forma, os relacionamentos passam a ser chamados de conexões, que podem ser feitas, desfeitas e refeitas – os indivíduos estão sempre aptos a se conectarem e desconectarem conforme vontade, o que faz com que tenhamos dificuldade de manter laços a longo prazo.

O sociólogo acredita que as redes sociais significam uma nova forma de estabelecer contatos e formar vínculos. Mas que elas não proporcionam um diálogo real, pois é muito fácil se fechar em círculos de pessoas pensam igual a você e evitar controvérsias.

Para Bauman, a rede é mantida viva por duas atividades: conectar e desconectar. O contato no meio virtual pode ser desfeito ao primeiro sinal de descontentamento, o que denota uma das características da sociedade líquida. “O atrativo da ‘amizade Facebook’ é que é fácil conectar, mas a grande atração é a facilidade de desconectar”, diz Bauman.


Política, segurança e economia

Na modernidade líquida, existe uma maior separação do poder e a política. O Estado perde força, os serviços públicos se deterioram e muitas funções que eram do Estado são deixadas para a iniciativa privada e se tornam responsabilidade dos indivíduos. É o caso do fim do modelo do Estado de Bem-Estar Social na Europa.

Bauman identifica uma crise da democracia e o colapso da confiança na política. “As pessoas já não acreditam no sistema democrático porque ele não cumpre suas promessas”, diz o sociólogo. Para ele, a vitória eleitoral de candidatos como Donald Trump nos EUA é um sintoma de que a retórica populista e autoritária ganha espaço como solução para preencher esses vazios.

No campo econômico, Bauman cita a fluidez dos mercados e o comportamento do consumo a crédito, que evita o retardamento da satisfação. “Vivemos a crédito: nenhuma geração passada foi tão endividada quanto a nossa – individual e coletivamente (a tarefa dos orçamentos públicos era o equilíbrio entre receita e despesa; hoje em dia, os “bons orçamentos” são os que mantêm o excesso de despesas em relação a receitas no nível do ano anterior)”.

Para ele, as desigualdades sociais aumentaram. Ao mesmo tempo em que se aumentam as incertezas, os indivíduos devem lutar para se inserir numa sociedade cada vez mais desigual econômica e socialmente. Os empregos estão mais instáveis e a maioria das pessoas não pode planejar seu futuro muito tempo adiante.

Para o sociólogo, não existe mais o conceito tradicional de proletariado. Emerge o “precariado”, termo que Bauman usou para se referir a pessoas cada vez mais escolarizadas, mas com empregos precários e instáveis. Agora a luta não é de classes, mas de cada pessoa com a sociedade.

No mundo líquido, a sensação de segurança também é fluida. “O medo é o demônio mais sinistro do nosso tempo”, alerta Bauman. O medo do terrorismo e da violência que pode vir de qualquer parte do globo (inclusive virtualmente, como os hackers e haters das redes) cria uma vigilância constante, a qual aceitamos nos submeter para ter mais segurança.

“Essa obsessão deriva do desejo, consciente ou não, de recortar para nós mesmos um lugarzinho suficientemente confortável, acolhedor, seguro, num mundo que se mostra selvagem, imprevisível, ameaçador”, escreve Bauman no livro “Confiança e Medo na Cidade”. No mundo off-line, a arquitetura das cidades está sendo cada vez mais projetada para promover o afastamento: muros, condomínios fechados e sistemas de vigilância estão em alta.

No livro “Estranhos à Nossa Porta”, Bauman escreve: “a ignorância quanto a como proceder, como enfrentar uma situação que não produzimos nem controlamos é uma importante causa de ansiedade e medo”. Ele relaciona a situação de desemprego dos europeus ao aumento do ódio contra os imigrantes. Ao mesmo tempo, manter esse medo aceso seria uma estratégia de poder para determinados grupos, como políticos de discursos nacionalistas e xenófobos.

Para saber mais:

O mal-estar da pós-modernidade, Zygmunt Bauman. Ed. Zahar, 1998.
Modernidade Líquida, Zygmunt Bauman. Ed. Zahar, 2001.
A condição pós-moderna, Jean-François Lyotard. Ed. José Olympio, 2002.
Amor Líquido: Sobre a fragilidade dos laços humanos, Zygmunt Bauman. Ed. Zahar, 2004.
Confiança e Medo na Cidade, Zygmunt Bauman. Ed. Zahar, 2009.
Estranhos à Nossa Porta, Zygmunt Bauman. Ed. Zahar, 2017.

segunda-feira, setembro 17, 2018

Timothy Snyder apresenta 20 lições sobre a vilania



Por Jonatan Silva

“Não somos mais sábios do que os europeus que viram a democracia dar lugar ao fascismo, ao nazismo ou ao comunismo no século XX. Nossa única vantagem é poder aprender com a experiência deles”, disse o historiador norte-americano Timothy Synder em sua conta no Facebook, dias após Donald Trump ser eleito presidente dos Estados Unidos. O texto foi compartilhado à exaustão e deu origem a Sobre a tirania, livro-manifesto publicado recentemente no Brasil pela Companhia das Letras.

Os vinte capítulos curtos que formam a obra, e são chamados de lições pelo autor, esmiuçam a história do século XX, principalmente os anos precedentes à eclosão da Segunda Guerra (1939 – 1945), para traçar paralelos com o cenário atual. Snyder afirma que a chegada de Trump ao poder – que teria recebido uma mãozinha russa – muito se parece com a ascensão do Terceiro Reich. Como George Orwell (1903 – 1950) explicaria em 1944 no ensaio O que é o fascismo?, a política totalitária assume duas faces muito claras: o determinismo puro e a democracia pura – ambas responsáveis pelo caráter excludente e pela formação de castas de uma nação.

Segundo o historiador, a criação da política de exceção – dos judeus, no caso de Hitler; e dos imigrantes, para o governante americano – é uma das principais convergências ideológicas entre os dois líderes. “Quando os políticos de hoje invocam o terrorismo, estão falando, é claro, de um perigo real. Mas, quando tentam nos acostumar a abrir mão da nossa liberdade em nome da segurança, devemos levantar a nossa guarda”, comenta e completa: “não há nenhum conflito de escolha entre os dois valores”.

Sobre a tirania não se propõe a postular axiomas, entretanto, é um alerta contra o cinismo e contra o conformismo que acredita não haver diferença entre o ideário dos políticos. Snyder coloca em xeque certezas e convida à reflexão, usando as armas do dia a dia: como a arte, a mídia e, claro, a própria consciência.

O segredo, detalha o autor, está na narrativa e no discurso sobre o palanque. “Aqueles que matam a linguagem não são puros”, diria Albert Camus (1913 – 1960) logo nas primeiras páginas de A Queda. Snyder dedica uma de suas lições ao cuidado que devemos ter com o idioma e com a língua. É preciso se afastar dos lugares-comuns e das ideias pré-concebidas. “Afasta-se da internet. Leia livros”, indica.


É impossível não pensar na tríade distópica que ainda ecoa em nossos dias: 1984, de Orwell, Admirável mundo novo, de Aldous Huxley (1894 – 1963), e Fahrenheit 451, de Ray Bradbury (1920 – 2012). O que os três livros têm em comum? A criação de uma sociedade que despreza a linguagem e que suprime os livros. O jornalista Sérgio Augusto, em um brilhante ensaio escrito para a revista Quatro Cinco Um, relembra que a cultura é uma das paranoias do estado obscurantista.

O pragmatismo – para o qual tanto Bauman alertou – é o criador de uma sociedade mecanicista e desumanizada. Timothy é enfático ao aconselhar a relação pessoal, mas não invasiva, entre pessoas de diferentes vertentes de pensamento. De acordo com o escritor, é fundamental que o contato continue a acontecer de maneira educada e natural, sem apelar à dicotomia ou à segregação. Deve-se fugir do que o cineasta Spike Jonze retratou em Ela, uma espécie de “distopia romântica”, como nomeou Almir de Freitas.

Sobre a tirania é, no final das contas, um convite ao debate e ao pensamento democrático e real. Muito mais que defender um ponto de vista, o livro faz do pensamento de Voltaire (1694 – 1778) – resumido na frase escrita por Evelyn Beatrice Hall como tentativa de descrever o espírito de autor: “Posso não concordar com nenhuma palavra do que você disse, mas defenderei até a morte o seu direito de dizê-lo” – um importante exercício contemporâneo de paz e de sobrevivência.

terça-feira, setembro 11, 2018

Catecismos de Carlos Zéfiro driblaram repressão sexual dos anos 50 aos 70



Por Fábio Ponso
Carlos Zéfiro, pseudônimo do funcionário público Alcides Caminha, ficou conhecido como o pai da pornografia brasileira, graças aos seus desenhos eróticos publicadas entre as décadas de 50 a 70. 
Alcides escondia sua verdadeira identidade por medo de perder o emprego, já que uma lei previa a demissão de servidores por “incontinência pública escandalosa”. Nos anos 70, durante a ditadura, foi aberta uma investigação para se descobrir o autor dos ‘catecismos’, mas a apuração não foi concluída.
Pouco depois, Zéfiro deixaria de publicar suas histórias em razão da concorrência ds revistas eróticas estrangeiras. Na década de 80, com o fim da censura, os quadrinhos começaram a ser republicados, mas Alcides só revelou sua identidade um ano antes de sua morte, em 1992.
Seu Alcides, como era conhecido pelos vizinhos, era um funcionário público de pequeno escalão, morador de uma casa simples de dois quartos no subúrbio do Rio. Por mais de quatro décadas, quase ninguém pôde suspeitar que na história não revelada deste cidadão comum, de vida pacata, habitava, em silêncio, o mito Carlos Zéfiro, tido por muitos como o “pai da pornografia brasileira”. 
Desenhista dos quadrinhos eróticos conhecidos como “catecismos”, uma febre entre os adolescentes das décadas de 50 a 70, Alcides Aguiar Caminha se valeu do pseudônimo para esconder a obra do grande público —, revelada somente a alguns poucos familiares e amigos, que guardavam o segredo. 
Curiosamente, não fosse o fato de outro quadrinista ter declarado ser Carlos Zéfiro, estimulando o artista a finalmente sair do anonimato, um ano antes de sua morte, em 1992, sua identidade teria continuado envolvida para sempre numa aura de mistério.
Nascido em 26 de setembro de 1921, em São Cristóvão, no Rio, aos 25 anos Alcides casou-se com Serat, com quem teve cinco filhos. Funcionário público da Divisão de Imigração do Ministério do Trabalho, concluiu o ensino médio somente quando tinha 58 anos. Mas no desenho se iniciou muito antes: após se formar em um curso técnico, começou a reproduzir fotos de nus femininos, a pedido de amigos, logo percebendo que poderia ganhar dinheiro criando histórias eróticas, como noticiado pelo GLOBO em 15 de novembro de 1991. A primeira delas, intitulada “Sara”, foi criada em 1949.
No entanto, ele sempre escondeu sua atividade paralela para não prejudicar sua carreira, já que a Lei 1.711, de 1952, previa a demissão de servidores por “incontinência pública escandalosa”. Sua precaução era tanta que tratava de destruir os originais de suas obras após a venda. Mesmo depois de se aposentar, continuou se resguardando, com receio de perder a renda com que sustentava a família, que morava numa casa simples em Anchieta.
Seus desenhos, em preto e branco, compunham histórias reunidas em pequenos livretos em formato de bolso, com no máximo 32 páginas. De acordo com a Enciclopédia Itaú Cultural, o artista teria produzido 862 histórias. Por seu conteúdo pornoerótico, que, de forma pioneira, “educou” sexualmente gerações acostumadas com a repressão sexual e a censura, os livretos receberam do público o bem-humorado apelido de “catecismos”. Com tiragem média de cinco mil exemplares — chegando, em alguns casos, a cerca de 30 mil —, eram impressos em gráficas de diversos estados, distribuídos e vendidos clandestinamente em bancas de jornais, por iniciativa de Hélio Brandão, amigo do artista e dono de um sebo na Praça Tiradentes.
Segundo pesquisadores, a obra do artista teria sido influenciada por quadrinhos românticos mexicanos e fotonovelas suecas de teor pornográfico. O nome Carlos Zéfiro, por sua vez, teria sido inspirado num autor mexicano de fotonovelas. As histórias, de cunho eminentemente machista, eram um retrato da cultura sexual da época, e não se furtavam a abordar tabus e temas polêmicos, como o homossexualismo e o incesto, sob verniz nu e cru, levando alguns especialistas a considerarem Zéfiro como “o Nelson Rodrigues dos quadrinhos”.
Em 1970, no auge da repressão da ditadura militar, uma investigação foi aberta em Brasília para se descobrir o autor das "obras pornográficas". O editor Hélio Brandão chegou a ser preso, e Caminha foi procurado e revistado pela polícia, mas a investigação terminou inconclusa. Ainda no início da década de 70, a chegada ao Brasil de revistas eróticas estrangeiras, em cores, fez com que as “revistinhas de sacanagem” nacionais perdessem prestígio e Zéfiro, principal autor do gênero, decidisse parar de publicar suas histórias.
No entanto, o artista continuou desenhando e seu nome se manteve vivo, até que, nos anos 80, com o enfraquecimento e o fim da censura, seus quadrinhos passaram a ser reimpressos por editoras do mercado brasileiro, como a Record e a Cena Muda. Em 1983, foram publicados dois estudos sobre sua obra: “O quadrinho erótico de Carlos Zéfiro”, de Otacílio d’Assunção, e “A arte sacana de Carlos Zéfiro”, com artigos de pesquisadores como o antropólogo Roberto Da Matta e o jornalista Sérgio Augusto.
Além dos trabalhos como quadrinista, Alcides Caminha foi compositor, inscrito na Ordem dos Músicos do Brasil. A paixão pela música o conduziu a uma vida boêmia, e em suas andanças, entre shows e serestas, conheceu os sambistas Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito. Com a famosa dupla — que, segundo Caminha, também sabia que ele era o desenhista Carlos Zéfiro —, compôs alguns sambas, entre eles o clássico “A flor e o espinho”, gravado por importantes nomes da MPB.
Caminha revelou sua identidade somente em novembro de 1991, nas páginas da revista “Playboy”, após tomar conhecimento que o artista baiano Eduardo Barbosa — também autor de alguns folhetos eróticos — se apresentou à imprensa como sendo Carlos Zéfiro. Na ocasião, ganhou uma exposição de seus desenhos e participou como uma das principais atrações da I Bienal Internacional de Quadrinhos, na Fundição Progresso, no Rio, sendo assediado por jornalistas e fãs.
Em 3 de julho de 1992, o quadrinista foi o principal homenageado do Troféu HQ Mix, no Rio, recebendo o seu primeiro prêmio, na categoria de artista veterano, pelo conjunto de sua obra. Caminha, no entanto, pouco pôde desfrutar de sua glória tardia, pois apenas dois dias depois, após voltar de uma festa, sentiu-se mal e faleceu em virtude de um derrame cerebral, aos 70 anos de idade.
Em 1996, Zéfiro foi homenageado pela cantora Marisa Monte, que utilizou os traços do artista na capa e no encarte do CD “Barulhinho bom”. Em 1999, a cantora também participou de outra homenagem póstuma, inaugurando a Lona Cultural Carlos Zéfiro, em Anchieta, com um show ao lado da Velha Guarda da Portela. Marisa e o jornalista Juca Kfouri, autor da reportagem que revelou a verdadeira identidade de Carlos Zéfiro na “Playboy”, são os padrinhos do espaço cultural, fundado e dirigido por artistas locais. 
Dois anos depois, o cineasta Sílvio Tendler iniciou o projeto de produção de um documentário sobre Zéfiro. Em 2011, o diretor e autor Paulo Biscaia Filho levou aos palcos a peça “Os catecismos segundo Carlos Zéfiro”, escrita com Clara Serejo. No mesmo ano, seus trabalhos foram expostos no Museu do Sexo, em Nova York, ao lado de obras de quadrinistas eróticos do mundo inteiro.

terça-feira, setembro 04, 2018

As últimas de Casablanca



Por Ruy Castro
Na próxima vez que Casablanca, o filme, surgir na sua tela às duas da manhã, fiquei atento às peripécias de Rick Blaine (Humphrey Bogart) e Ilsa Lund (Ingrid Bergman). Você deve se lembrar. Eles se amaram em Paris. Veio a Ocupação e a Guerra os separou, mas o destino os reuniu, dois anos depois, em Casablanca – ele, à frente do Rick’s, um boteco de luxo; ela, de braço com Victor Laszlo, militante antinazista e, na verdade, seu marido, que ela julgava morto quando namorou Rick.
E, como você também deve se lembrar, é Rick que, no fim do filme, põe Ilsa e Laszlo no avião e lhes permite escapar para os EUA via Lisboa – quando podia ter ido com ela, deixando o marido bolha para trás, entregue aos alemães. Nem todos se conformaram com o altruísmo de Rick – há anos, aqui no Rio, o jornalista João Luiz de Albuquerque produziu um vídeo em que remontou a sequência final, “corrigindo” a história.
O fascínio por Casablanca é inesgotável. Já devo ter assistido ao filme umas trinta vezes – na tela do cinema e em telinha de cineclube, em super-8, VHS, laser disc, DVD ou blue-ray, dublado ou com legendas, e no glorioso preto-e-branco em que foi feito ou numa infeliz versão colorizada – e até hoje ele me deu coisas.
Repare, por exemplo, como nas cenas do café La Belle Aurore, em Paris, Bogart, no auge do romance com Ingrid, parece muito mais jovem, embora, na história, aquilo tenha acontecido apenas dois anos antes. Seu cabelo está mais preto e mais cheio do que nas cenas em Casablanca. Como se explica? É que, para cada situação, o estúdio lhe aplicou perucas diferentes – ou você não sabia que, já então, Bogart era careca?
Houve uma época nos anos 90 e em parte do 00 em que, trabalhando em São Paulo, raro era o mês em que alguma revista recém-lançada não me pedia um artigo sobre Casablanca, sobre Bogart ou sobre “As Time Goes By”, a grande canção do filme. 
Atendi com prazer a todas as encomendas e, pela generosidade dos editores daquelas publicações, devo à saga de Casablanca muitos aluguéis pagos em dia, quilos de alcachofra na feira, jantares no Le Casserole, no Largo do Arouche, ou no Don Curro, em Pinheiros, e maratonas de sorvete na doceria Ofner, em Perdizes. Só por essa amostra posso calcular quanto o septuagenário Casablanca ainda movimenta a economia.
Bem, tudo isso é para dizer que os americanos ameaçam rodar uma continuação de Casablanca. Não uma refilmagem – nem eles se atreveriam –, mas uma continuação mesmo. E, segundo esta, Ilsa não apenas transou com Rick em troca das “cartas de trânsito” para fugir de Casablanca com Laszlo, como viajou grávida dele, Rick, para Lisboa! 
No elegantíssimo filme de 1942, há de fato uma insinuação de transa entre os dois na véspera da fuga – lembra-se de um farol fálico que pisca quando os dois se beijam? Pois, nessa nova versão, Hollywood poderá mostrar um flashback com os dois pelados na cama, em três ou quatro posições diferentes.
Sempre se especulou sobre o que teria acontecido a Rick e Ilsa no futuro, ou seja, depois de terminado o filme. Em seu livro Suspeitos (1985), David Thomson sugere que, em Nova York, Ilsa chutou Laszlo, tornou-se modelo do pintor Edward Hopper e morreu em 1961 no desastre de avião na Rodésia que matou o secretário-geral da ONU, Dag Hammarskjold, para quem ela então trabalhava.
E, para outros, Rick teria aberto mão de Ilsa no filme porque, no fundo, estava a fim era do capitão Louis Renault (Claude Rains). Faz sentido. Na última cena – pode reparar –, assim que o avião decola, os dois se afastam na bruma do aeroporto, e Rick diz:
“Louis, acho que esse é o começo de uma bela amizade.”
Capitão Renault, Rick Blayne, Ilsa Lund e Victor Laszlo ao lado do Buick Phaeton numa das cenas finais do filme Casablanca

Aproveite o feriadão para atualizar sua discoteca



Um dos maiores sites de torrent do mundo está fora do ar. O The Pirate Bay sofre instabilidades há cerca de dez dias e está inacessível por navegadores convencionais desde o fim da semana passada.
De acordo com o site TorrentFreak, os problemas do The Pirate Bay começaram no dia 17, quando o sistema de envio de torrents parou de funcionar. Durante dias, usuários não conseguiam enviar mandar novos arquivos para o serviço, mas ainda era possível buscar e baixar torrentes.
Alguns dias depois, o problema dos uploads foi solucionado. Mas não demorou muito tempo para a situação do Pirate Bay piorar: no final da semana passada, o site simplesmente saiu do ar, e até agora permanece inacessível.
Quem tenta entrar no Pirate Bay atualmente encontra uma mensagem de erro do Cloudfare sem detalhes sobre o que está acontecendo com o site.
Em uma página de suporte, o Pirate Bay confirma que a versão https do site está fora do ar. O serviço é acessível pela rede do Tor, mas mesmo por lá as coisas não funcionam perfeitamente, e os recursos de registro de usuário e de comentários sofrem instabilidade.
A solução é acessar o site Knaben,  que é a velha baía dos piratas com uma máscara nova. Eu acabei de baixar o novo disco do Eminem (“Kamikaze”, 2018) em menos de dois minutos.


Os bucaneiros não brincam em serviço.

Simpatia pelo demônio


Uschi Obermaier, primeira top model alemã, mulher mais sexy dos anos 60, namorou ativistas políticos, astros do rock’n’roll, donos de cabarés – e até marinheiros de sorte incomum. Perfil para o número 1 da linda revista The President

Por Ronaldo Bressane 
Rudolf Liebzeit é um grande azarado. Ou um sortudo nascido virado pra Lua. Tudo depende do ângulo que você vê as coisas. Rudolf nasce numa cidade destruída. Munique, 1946. Os amigos vivem tirando sarro do seu sobrenome, que quer dizer “tempo de amor”. Quando faz 16 anos, Rudolf (vamos chamá-lo Rudi) alista-se para ser marinheiro num dos mais famosos navios de seu tempo, o Pamir. Todos os amigos já tinham feito a inscrição, seria uma aventura maior que a vida. Na véspera da partida, em Hamburgo, Rudi sente uma dor insuportável no ventre. Apendicite aguda. Vai para o hospital e perde o embarque. Ganha uma melancolia incurável. Já restabelecido, de volta a Munique, Rudi fica sabendo que o Pamir tinha sido afundado por um tufão nos Açores. Das 86 pessoas a bordo, seis se salvaram. Todos os amigos mortos. Rudi ganha um olhar ainda mais triste. Sua tristeza comove uma amiga da escola, a maravilhosa Chrissie Malberg. Tempo de amor. 
Só que a melancolia de Rudi não passa. E Chrissie é linda demais para a morta Munique, até então só conhecida pela Oktoberfest e por ter presenciado a ascensão do nazismo. Chrissie tem vinte e um anos e muita pressa. “Naquele verão de 1967, em Paris os estudantes escreveram Poder Para a Imaginação nos muros. Em São Francisco o povo dançava na rua e lutava pelo que queria fazer na vida. Eu estava em casa em Sendling, subúrbio de Munique. Senti que ia morrer uma morte lenta e infinita daquele jeito. A única coisa que me mantinha viva era a música. E estava claro pra mim. Tudo o que eu precisava era de um homem. Quanto mais selvagem, melhor. ” O quase marujo não é selvagem o bastante. O tempo não está ao seu lado. Auf Wiedersehen, Rudi.
Quando Chrissie bate na porta da comuna musical Amon Düül, seu nome já é Uschi Obermaier. Ela não seria a namorada de um marinheiro que perdeu as graças do mar; seria a namorada de toda aquela banda de kraut-rock. E, confirmando que sabe trocar o liebzeit pelo zeitgeist, como toda boa garota hippie vai pro pandeiro. Sua banda viaja para um festival em Essen e faz amizade com os colegas da Kommuna 1, que então ocupa a casa do poeta Hans Magnus Enzensberger. Bem selvagem essa turma. Totalmente contra o consumismo e a burguesia. Totalmente contra o passado nazista. Totalmente a favor de disparar tortas na cara dos políticos (o que eles chamam de “assassinato por pudim“), tocar fogo em lojas de departamento (“Solte na rua a sua vontade Vietnã de pegar fogo“), além de totalmente aberta ao amor livre. 
O cara mais selvagem da turma é o sarará de oclinhos Reiner Langhans – com seu cabelo seria possível fazer 1001 comerciais de palha de aço. Seguidas greves de fome modelaram o shape do intelectual marxista-reichiano, o que agrada à iniciante modelo Uschi. Magrela e magrelo se apaixonam loucamente e vão viver juntos na Kommuna 1 de Berlim. “Juntos” pressupõe ter pelo menos dez pessoas bem coladinho, fazendo tudo o que você pode mas não poderia nunca imaginar o triste Rudi.
A mídia de 1968 ferve com a notícia. Nada mais quente que uma top model vivendo numa comunidade hippie de extrema esquerda: pense em Gisele Bündchen morando com José Rainha na Praça Roosevelt. A mídia mal imagina o que vem pela frente. Uschi é a primeira top model da Alemanha. A primeira top a fazer nu frontal na capa de uma revista. Capa de todas as revistas européias de moda. A Stern certa vez paga a Uschi uma Porsche 911 por uma entrevista e uma sessão de fotos. Todos os adolescentes alemães têm pôsteres de Uschi escondidos sob os colchões; todas as meninas copiam seu estilo. E todas as mães e os pais de família odeiam Uschi. 
Bem, talvez nem todos: quem observa os ensaios de Uschi com distanciamento crítico nota pairar uma beleza incomparável. Seu corpo pequeno e magro exibe uma pele tépida, dourada e nervosa, como se colada ao papel da revista. Ver Uschi é quase ter a experiência de tocá-la. Ela gentilmente clama por isso. Os miúdos seios têm mamilos escuros e sempre empinados. Quase nunca sorri: os lábios muito carnudos entreabrem-se misteriosamente, sugerindo dentes poderosos, grandes, vorazes. Os cabelos negros e cheios desarrumam-se numa doida franja sobre a testa, reflexo fiel das idéias revoltas dentro da perfeita cabeça. Os olhos verdes denotam uma postura doce porém altiva, provocadora ainda que frágil – ecoando a melancolia aprendida com um quase náufrago. Seu queixo inocente e desafiador não deixa dúvidas: Uschi Obermaier é Kiki de Montparnasse, é Leila Diniz, é Nico, é Pattie Boyd, é Lou Andreas-Salomé, é Pamela des Barres, é Gisele Bündchen, tudo no mesmo demoníaco enquadramento do sexo em estado puro.
Hendrix, Stones e a incrível motor-home 
Mas a Kommuna 1, agora chamada High-Fish Commune, quer mais que Uschi. Quer divulgar sua mensagem de amor livre ao mundo. Gente como John Lennon e Yoko Ono confirma que a grande inspiração para seu relacionamento aberto é o casal Reiner e Uschi, que dão entrevistas seminus numa cama rodeada de amigos, Reiner tocando cítara, Uschi fumando um baseadão de maconha. Num pôster na parede, Che Guevara vive – por pouco tempo: estamos em 1968. O casal encontra o guitarrista Peter Green, do Fleetwood Mac, em Munique. Dividem pastilhas de ácido e Reiner solta toda a sua verborragia sobre Green para fazê-lo convidar seus colegas a se apresentarem no “Woodstock da Baviera“, que seria o maior evento político-pop da história. 
O festival não rola. Mas alguns músicos ficam curiosos em conhecer a cena tedesca. Para quem não sabe, o rock’n’roll nasceu durante a passagem de Elvis e Beatles pela Alemanha. Pedágio obrigatório. E lá vai o Negão bater na porta da High-Fish, numa noite gelada. (Na época, só dois deuses merecem a alcunha de Negão: Pelé e Jimi Hendrix. Mas Pelé nunca foi muito chegado na contracultura.) Uschi dá boas-vindas a Hendrix e vice-versa. Só que o Negão tem 23 anos e está mais interessado em reinventar a música e em se tornar um mito. No documentário The last experience, antes de se despedir da namorada, tal como Jesse Owens havia feito trinta anos antes, um negro norte-americano leva uma glória para a casa: um beijo do maior tesouro alemão. 
Hendrix, que fala demais por conta dos LSDs diários que toma, fofoca a seus colegas que a garota mais incrível do mundo mora na Alemanha. Os Stones haviam acabado de compor “Sympathy for the devil” e precisam dar um tempo da barulheira da Inglaterra e dos EUA. Batem na porta da calorosa High-Fish. De cara, Uschi acha que está apaixonada por Mick Jagger. Mas Mick foge de Uschi feito o diabo da cruz. Keith Richards mostra a Uschi que sua versão de “Sympathy for the devil” é muito mais cool que a de Mick e que todos os livros marxistas de Reiner somados. Uschi quebra sua promessa de amor livre e abraça a causa do emérito criador de riffs. 
Porém Keith é um pirata jovem demais para amarrar seu navio em um porto. E percebe que Uschi já está de olho em um concorrente mais poderoso, capaz de levá-la a conhecer o mundo. Keith cai fora. E Uschi afinal encontra o homem da sua vida: o bigodeira Dieter Bockhorn, dono de cabarés no redlight district berlinense. Estamos em 1973: Jim Morrison, Janis Joplin e Brian Jones já haviam morrido, todos com 27 anos. Naquele navio naufragado também estava Jimi Hendrix, certamente ao timão.
Tempo de casar a utopia hippie com as comodidades burguesas. Entre 1973 e 1984, Uschi e Dieter formam o casal mais bacana do planeta. Pegam um motor-home RV e vão viajar: três anos só na Índia, depois toda a Ásia, atravessando o oceano para curtir outros anos entre o México e os EUA. Segundo conta Uschi em sua autobiografia High times, casam-se em todos os países por que passam. No controverso filme 8 miles high (2007), baseado neste livro, a bela cena do casamento na Índia dura cerca de cinco minutos. No México, Baja California, Año-Nuevo de 1984, Uschi tem uma discussão com o marido e vai fumar um baseado na praia, onde por acaso encontra o velho amigo Keith Richards. O stone somente diz “Please to meet you“. De manhã Uschi volta à sua motorhome. Dieter não está lá. Havia morrido naquela mesma noite, num acidente de moto. 
Uschi resolve ficar nos EUA. Mora em Topanga, perto de Los Angeles, comunidade de artistas como Neil Young, Marvin Gaye, Devendra Banhart, Viggo Mortensen, Van Morrison, Alice Cooper, Dennis Hopper e um longuíssimo etc (alguns fãs juram que ela ainda hoje é a amante de Keith Richards). Ali, na mesma cidade em que Jim Morrison compôs “Roadhouse blues“, Uschi Obermaier trabalha como designer de jóias, aos 64 anos, sem filhos. 
No lançamento da cinebio, que tem a gatíssima polonesa Natalia Avelon performando sua vida, Uschi dá entrevistas em que fala coisas assim: “Éramos mais desafiadores; os jovens de hoje são muito mainstream. Mas você tem de considerar que naquela época tudo era absolutamente novo e revolucionário. Até usar micro-saia era demonstrar rebeldia. Isso nunca foi minha filosofia: era só o sentimento que nascia de mim. Eu nunca quis ser rebelde; só quis ser livre. Acreditamos em contos de fada, e foram contos de fada o que vivi. Quis tudo desse mundo, quis a experiência de viver aqui e agora. Pensava que o certo não era sonhar a vida, mas viver o seu sonho“. 
Seu primeiro namorado, o marinheiro que perdeu as graças do mar, vive ainda em Munique. Durante as noites em que o vento sopra demais, ouve uma canção que diz: “Se você me encontrar/ Mostre alguma cortesia/ Mostre alguma simpatia/ Mostre bom gosto/ Use toda a sua bem educada polidez/ Ou desperdiçarei sua alma./ Prazer em conhecê-lo/ Espero que tenha aprendido meu nome/ O que te deixa meio confuso/ É só a natureza do meu jogo“. Aí Rudi vira para o lado e de novo mergulha no sono. Sob seu colchão, dormem fotos de uma moça que ninguém jamais viu. Só ele.