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segunda-feira, agosto 05, 2024

 



Por Mouzar Benedito

Li a notícia da morte do cineasta José Mojica Marins, conhecido aqui como Zé do Caixão, e no exterior como Coffin Joe, e isso me provocou algumas lembranças.

Lá pelo final dos anos 1960, eu tinha o hábito de frequentar um restaurante que servia uma ótima paella (por favor, leitores, a pronúncia espanhola é paelha – paeja é pronúncia argentina). Era rico? Nadinha. Era funcionário público e ganhava pouco. Mas na época dava para traçar com alguma regularidade essa comida que hoje custa muito caro.

O restaurante a que me refiro, de cozinha espanhola, chamava-se “Bosque de Viena”. Nada a ver, né? E se o nome austríaco destoava, a música ao vivo também: nada de flamenco ou algo parecido, era música latino-americana, executada por paraguaios exilados em São Paulo, fugindo da ditadura de Stroessner.

Localizado na rua Vitória, na região conhecida como “Boca do Lixo”, no centro de São Paulo, o “Bosque de Viena” era bem barateiro, e frequentado por gente meio dura como eu e também por jornalistas e artistas, entre eles o Zé do Caixão. Vi muitas vezes lá o Zé do Caixão. Nunca conversei com ele, mas olhava curioso suas unhas enormes, imaginando a dificuldade dele para certas tarefas, como tomar banho e limpar-se no banheiro.

Bom, antes de ir para outro assunto sobre ele, esclareço para jovens de hoje que talvez nem tenham ouvido falar da “Boca do Lixo”. Tinha esse apelido por ser área de “baixa prostituição”. Havia também uma área de “alta prostituição”, com prostitutas de “alto nível”, funcionando em boates frequentadas por empresários. Localizada no entorno da rua General Jardim, era chamada de “Boca do Luxo”.

Agora um assunto que parece não ter nada a ver com estas lembranças: a Volkswagen lançou um carro muito bom, mas todo “quadrado”. Não era como uma Kombi, era como um carro comum, com partes mais baixas na frente (do motor) e atrás (porta-malas). Só que era todo com linhas retas, com vidros da frente e de trás descendo em 90 graus, e não inclinados. Logo foi apelidado de Zé do Caixão e acabou tendo a produção interrompida porque poucos o compravam, por causa do apelido.

Aí chego em mais uma história.

Quando a profissão de jornalista foi legalizada e passou-se a exigir diploma para seu exercício, havia muitos jornalistas sem curso nenhum. Para esses, deram dois anos para se legalizarem, pedirem o registro profissional no Ministério do Trabalho. Mas muitos deles não levaram a sério essa exigência achando que a lei não pegaria. Mas pegou. Aí os jornais deram ultimato: ou arrumam um diploma ou serão demitidos. Como não dava para “arrumar” um diploma assim de repente, tiveram a opção de fazer o curso de jornalismo e não serem demitidos porque estavam se legalizando.

A Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero foi a mais procurada por esses profissionais já experientes. Motivo? Tinha fama de ser boa, mas o principal é que nela o curso durava apenas três anos, enquanto em outras faculdades durava quatro anos.

Em 1974, eu não era jornalista ainda, mas queria ser, especialmente por causa da imprensa alternativa. Era, para mim, a oportunidade de ter uma profissão que ao mesmo tempo era possibilidade de militância contra a ditadura.

Foi muito interessante. Convivi lá com jornalistas já experientes e competentes, mas também tinha umas figurinhas difíceis. Por exemplo: Roberto Nunes Morgado, que já era juiz de futebol e, amalucado nas arbitragens, homossexual assumido, ficou conhecido como “Pantera Cor de Rosa”.

Algumas coisas que ele fez ficaram famosas, como a expulsão da PM que fazia a segurança em um jogo. Mostrou cartão vermelho para os policiais. E houve um jogo em que apitou sem entrar em campo, correndo pela lateral. Depois disso, se me lembro bem, ele foi afastado das arbitragens. Sei com certeza que uma vez pediram exame de sanidade mental dele, por causa de coisas como essas.

Jogadores de futebol, tinha alguns, inclusive de times da primeira divisão, como o Lance, atacante do Corinthians, e um defensor do Palmeira cujo nome não me lembro.

E mais: tinha também um assessor do Zé do Caixão. Mas não era só assessor, participava das filmagens. Já tentei muito me lembrar o nome desse jornalista, mas não consegui.

Numa segunda-feira, em 1976 ou 77, ele chegou à faculdade todo cheio de curativos. Curiosos, perguntamos a ele o que tinha acontecido.

Contou que o Zé do Caixão gostava de dar o maior realismo possível aos seus filmes. As atrizes tinham que ser treinadas para deixar aranhas andando de verdade nos seus corpos, por exemplo. Cenas com cobra, eram com cobras de verdade. E cenas nos cemitérios tinham que ser filmadas de acordo com o que apareceria nos filmes. Então, para uma sequência que se passava à meia-noite de uma sexta-feira, teria que filmar à meia-noite, na sexta-feira. Dessa vez, levou sua equipe para filmar algumas cenas com mulheres nuas em cima de túmulos, dentro do cemitério da cidade de Americana. Na sexta-feira, claro. E as filmagens começariam à meia-noite, com um relógio dando as devidas badaladas.

Acontece que um padre da cidade reuniu um bando de beatas e beatos armados de porretes e, quando ia chegando a meia-noite, essa turma invadiu o cemitério e desceu o porrete em todo mundo. Mulheres, assessores, ninguém escapou das porretadas. Toda a equipe foi parar no hospital.

Nosso colega não teve ossos quebrados, mas seu rosto ficou cheio de esparadrapos. O resto do corpo, segundo ele (que não mostrou) também.

quinta-feira, janeiro 11, 2024

De volta ao meu pardieiro


 Voltando aqui nessa parada. Faz um bocado de tempo, né não? A verdade é bem simples: como perdi uma plêiade de amigos queridos durante o governo autoritário da besta genocida (toc, toc, toc, mangalô três vezes!), tomei a decisão de parar de escrever em blogs, portais e redes sociais. Era uma maneira de protestar silenciosamente contra o pior governo do país desde a redemocratização. Decidi que só voltaria a escrever após um ano de um novo governo democrático. Estou cumprindo essa promessa agora.

Ah, antes que eu me esqueça: votei no Ciro Gomes no primeiro turno. No segundo turno, nem apareci na zona eleitoral. Estou pouco me lixando para bolsonaristas e petistas, mas é forçoso admitir que o Ninefingers é mais democrático que a besta-fera (toc, toc, toc, mangalô três vezes!), que nos desgovernou durante quatro anos. Como em 2026 – seu eu sobreviver a tanto, o que não acredito – já estarei com 70 anos, estarei desobrigado de votar. E posso morrer tranquilo: meu último voto para presidente foi embalado pela esperança de um país melhor. Se o povo não entendeu isso, foda-se o povo!



Nos longínquos anos 80, meu querido amigo Edilson Martins publicou pela Codecri (a editora do Pasquim) um livro emblemático intitulado “Nossos Índios, Nossos Mortos”, que fez a cabeça dos leitores da minha geração. Eu vou me limitar a escrever o nome dos meus índios, dos meus mortos, nessa triste pandemia de que fomos vítimas pelo descaso de um completo amoral. A ressurreição desse blog vai para eles, onde e como estiverem:

 


Antônio Diniz (livreiro, parceiro em alguns livros e meu cunhado). Lucio Preto (quarto zagueiro do Sancol, Atlântica e Penarol, de Itacoatiara). Selmo Nogueira (o famoso Caxuxa, das batidas inimagináveis e inesquecíveis da velha Cachoeirinha). Sandoval Amazonas (engenheiro civil, amigo de infância). Robson Franco (jornalista, parceiro em projetos memoráveis). Ivancy Wilkens (campeão amazonense de jiu-jitsu, cria do Reyson Gracie, marido na minha diarista Paula). Roberto Augusto (radialista e jornalista brilhante). Roberto Dinamite (figura de proa do GRES Reino Unido da Liberdade). Antonio Carlos (o “Bem-te-vi”, ex-presidente do bumbá Corre Campo). Marco Aurélio (o rei da sinuca, vascaíno fanático, conhecido como “Pezão”). Sebastião Ferreira (o “Sabá”, parceiro de dominó no Bar da Júlia). Sandro Barçal (professor universitário, marxista confesso e parceiro de gandaia durante mais de 30 anos).

 


Francisco Costa (o “Chico Cavalinho”, engenheiro civil, fundador do GRES Andanças de Ciganos). Miquéias Fernandes (advogado, ex-deputado estadual). José Fernandes (advogado, ex-prefeito de Manaus). Rosa Fernandes (professora, irmã dos outros dois). Ernando Carvalho (o “Papagaio”, figura emblemática do Bar do Armando). Rubem Dário (empresário, primo da minha ex-mulher Dinari Guimarães). Valtinho Almeida (amigo de infância, irmão do “Maraca”). Igson Andrade (o “Bolão”, partideiro de responsa da Praça 14 de Janeiro). Olíbio Trindade (o “Xiri”, contador, primeiro treinador do Murrinhas do Egito). Mário Almeida (empresário, primo do Valtinho). Orlando Almeida (empresário, irmão do goleiro Orlando Mão-de-Onça, primo do Valtinho e do Mário). Arnaldo Fimose (violonista do grupo Pró-Álcool). Caramuru Borges (velho amigo do Pai Simão, desde a época de Santarém, e pai dos queridos Paulo, Zanata e Marcos).

 


Emerson Maia (compositor parintinense do Garantido – “o índio chorou...” – e roqueiro de respeito). Klinger Araújo (cantor parintinense do Caprichoso e piadista em tempo integral). Nonato Lopes (advogado, ex-prefeito de Iranduba). Lourdes Lopes (professora, ex-vereadora, irmã do Nonato). Harrison Almeida (o “Cachito”, zagueiro do Inútil, campeão do torneio início do Peladão em 1975). José Montanha (o simpático e marrento garçom do Bar do Armando). José Rosha (jornalista e cartunista, meu parceiro no Suplemento JC). Luiz Fernando Nicolau (médico, ex-deputado federal). Abelardo Sampaio (o “Belo”, meu primo querido). Cosme Bittencourt (o “Comendador”, meu parceiro de birita e conversas sobre a beat generation). Américo Loureiro (ex-vereador, dono do JAP, o primeiro campeão do Peladão). Homero Diniz (funcionário público, primeiro campeão amazonense de dominó, em parceria com meu primo Giovani Bandeira.)

 


José Roberto Pinheiro (o “Mestre Pinheiro”, fotógrafo, enciclopédia viva da MPB, meu parceiro nas marchinhas da BICA). Luiz Wagner (o “Vavá das Candongas”, empresário, fundador da Bhanda da Bhaixa da Hégua). Marquinhos Barbosa (dançarino de disco music, xerocópia do John Travolta). Raimundo Nonato (o “Pirulito”, eterna Catirina do bumbá Corre Campo, pai do poeta Celestino Neto, o “Lé”.) Izinha Toscano (jornalista, filha do saudoso músico Afonso Toscano). Agnaldo Oliveira Jr. (jornalista premiado). Danyelle Costa (baixista da banda Roxie). Nelson Pilão (partideiro de responsa). Olinda Mattos (irmã dos queridos Titílio e Orlando Carioca). Kayro Robson (partideiro de responsa). Raimundo Noronha (o “Mangará”, fundador do GRES Reino Unido da Liberdade). José Gadelha (advogado). Milton Matos (pagodeiro do grupo Couro Velho). Aldemir Cardoso (empresário, dono das lojas Arsenal).

 


Gilmar Barbosa (o “Gil da Liberdade”, empresário, fundador do GRES Reino Unido da Liberdade). João Sabino Neto (médico cardiologista, parceiro de birita). Arnoldo Carneiro (amigo de infância, irmão do Argemiro). Mário Gilson (professor do IFAM e meu parceiro de aprontos). Francisco Chagas (o “Chaguinha”, advogado, sindicalista, meu companheiro dos tempos de Sharp do Brasil, nos anos 70). Wandinho Manaus (o coração pulsante do GRES Mocidade do Coroado). Wellington Redman (jornalista, coaching, a alegria em pessoa, sobrinho do Didi Redman). Ari Aleixo (empresário, filho da saudosa Otalina Aleixo). Ana Aleixo (advogada, irmã do Ari). Albino Aleixo (advogado, irmão do Ari e da Rosa). Lúcio Bahia (cantador das noites manauaras). José Malheiros (auditor da Sefaz). Victor Hugo (procurador do Estado). Saulo Almeida (auditor da Sefaz). Gilson Ferreira (auditor da Receita Federal).

 


José Alberto (o “Cazuza”, meu primo, tricampeão e três vezes artilheiro estadual pelo Olímpico Clube, no campeonato juvenil de 66-68). Godofredo Gomes (amigo de infância, meu vizinho, pai do DJ Adriano Flashback). Sulamita Farias (empresária, amiga querida dos tempos do Ida Nelson). Kiko Ribeiro (advogado, irmão do ex-prefeito Manuel Ribeiro). Margareth Magalhães (médica, minha companheira de classe no Ida Nelson). Silvia Moraes (irmã do querido Gonzaga do Arsenal). Julio Reciños (médico, vocalista do grupo Conexão Latina). Nilson Torres (empresário, ex-centroavante do Murrinhas do Egito). Carlos Araújo (poeta e agitador cultural, criador da coletânea “Poetatu”). Marcus Cavalcante (advogado, ex-vereador, irmão do Adelson da Ciranda). Armandinho Pascarelli (cantor e compositor do GRES Andanças de Ciganos, irmão do Filica). Joaquim Barros (funcionário público, concunhado do meu irmão Simas).

 


Ricardo Pinheiro (o “Ricardão”, primeiro puxador de samba dos Ciganos). Nádia Lacerda (amiga de infância, esposa do Carlos Lacerda). Ramiro Araújo (ex-prefeito do Careiro da Várzea). Tito Magnani (empresário, diretor do Olímpico Clube). Fernando Monteiro (empresário, um dos herdeiros do grupo S. Monteiro). Mário Uchoa (empresário parintinense, a gentileza em pessoa). Carlos Alonso (engenheiro, ex-presidente do CREA). Enéas Gonçalves (advogado, radialista, ex-prefeito de Parintins). Zé Olhão (eletricista, meu parceiro de birita no Bar do Pedrão). Renê Pessoa (fundador da Quadrilha Junina Sete Quedas). Hilberto Cruz (um dos donos da HM Calçados, meu amigo dos tempos de Philco). Luiz Carlos Barreto (engenheiro, colega de classe na ETFA). Paulo Monte (antropólogo e professor universitário). Luiz Cláudio Dias (o “Macalé”, meu médico urologista, dono de uma risada desconcertante). Lauro Goiaba (ex-jogador profissional do Nacional). Geraldo Dantas (empresário, amigo dos tempos de Ida Nelson). Menandro Tapajós (médico, parceiro de canaviais da pesada).

 


Francisco Cruz (o “Chicão”, ex-procurador geral do MPC, meu parceiro no livro “Amor de BICA”). Rosivaldo Ferreira (publicitário, dono da produtora Proclipe). Marcos Assayag (empresário, irmão do Davi Assayag). Zezinho Corrêa (vocalista da Banda Carrapicho). Ananias Filho (vencedor 18 vezes seguidas, como melhor marcador de quadrilhas pela Juventude na Roça). Paulinho Farias (o eterno amo do bumbá Garantido). Joelson Castro (baixista da banda Randy Kapa). Jander Souza (meu DJ favorito no Canto do Fuxico). Luiz Prado (o “Lula”, funcionário público, irmão do querido Hilário). Marco Gomes (poeta, escritor, fundador – comigo e Arnaldo Garcez – do coletivo anarquista “Gens da Selva”, que agitou a cidade durante duas décadas). Helvécio Nogueira (o “Mamão”, melhor contador de causos portugueses da história).  João Carlos Weil (o “Bazam”, irmão do querido Antídio Weil).

Bom, esses são os meus “principais”, gente com quem eu conversava, discutia, bebia, ria, chorava, xingava, reclamava, amaldiçoava, essas coisas, sem nunca chegarmos às vias de fato. Era muito, muito divertido. Nunca mais voltar a vê-los deve ser carma ou maldição. Vida que segue. Fazer o que?

Recordando a Princesinha do Mar

 


Por Rubem Braga


1. Ai de ti, Copacabana, porque eu já fiz o sinal bem claro de que é chegada a véspera de teu dia, e tu não viste; porém minha voz te abalará até as entranhas.

2. Ai de ti, Copacabana, porque a ti chamaram Princesa do Mar, e cingiram tua fronte com uma coroa de mentiras; e deste risadas ébrias e vãs no seio da noite.

3. Já movi o mar de uma parte e de outra parte, e suas ondas tomaram o Leme e o Arpoador, e tu não viste este sinal; estás perdida e cega no meio de tuas iniqüidades e de tua malícia.

4. Sem Leme, quem te governará? Foste iníqua perante o oceano, e o oceano mandará sobre ti a multidão de suas ondas.

6. Grandes são teus edifícios de cimento, e eles se postam diante do mar qual alta muralha desafiando o mar; mas eles se abaterão.

6. E os escuros peixes nadarão nas tuas ruas e a vasa fétida das marés cobrirá tua face; e o setentrião lançará as ondas sobre ti num referver de espumas qual um bando de carneiros em pânico, até morder a aba de teus morros; e todas as muralhas ruirão.

7. E os polvos habitarão os teus porões e as negras jamantas as tuas lojas de decorações; e os meros se entocarão em tuas galerias, desde Menescal até Alaska.

8. Então quem especulará sobre o metro quadrado de teu terreno? Pois na verdade não haverá terreno algum.

9. Ai daqueles que dormem em leitos de pau-marfim nas câmaras refrigeradas, e desprezam o vento e o ar do Senhor, e não obedecem à lei do verão.

10. Ai daqueles que passam em seus cadilaques buzinando alto, pois não terão tanta pressa quando virem pela frente a hora da provação.

11. Tuas donzelas se estendem na areia e passam no corpo óleos odoríferos para tostar a tez, e teus mancebos fazem das lambretas instrumentos de concupiscência.

12. Uivai, mancebos, e clamai, mocinhas, e rebolai-vos na cinza, porque já se cumpriram vossos dias, e eu vos quebrantarei.}

13. Ai de ti, Copacabana, porque os badejos e as garoupas estarão nos poços de teus elevadores, e os meninos do morro, quando for chegado o tempo das tainhas, jogarão tarrafas no Canal do Cantagalo; ou lançarão suas linhas dos altos do Babilônia.

14. E os pequenos peixes que habitam os aquários de vidro serão libertados para todo o número de suas gerações.

15. Por que rezais em vossos templos, fariseus de Copacabana, e levais flores para Iemanjá no meio da noite? Acaso eu não conheço a multidão de vossos pecados?

16. Antes de te perder eu agravarei s tua demência — ai de ti, Copacabana! Os gentios de teus morros descerão uivando sobre ti, e os canhões de teu próprio Forte se voltarão contra teu corpo, e troarão; mas a água salgada levará milênios para lavar os teus pecados de um só verão.

17. E tu, Oscar, filho de Ornstein, ouve a minha ordem: reserva para Iemanjá os mais espaçosos aposentos de teu palácio, porque ali, entre algas, ela habitará.

18. E no Petit Club os siris comerão cabeças de homens fritas na casca; e Sacha, o homem-rã, tocará piano submarino para fantasmas de mulheres silenciosas e verdes, cujos nomes passaram muitos anos nas colunas dos cronistas, no tempo em que havia colunas e havia cronistas.

19. Pois grande foi a tua vaidade, Copacabana, e fundas foram as tuas mazelas; já se incendiou o Vogue, e não viste o sinal, e já mandei tragar as areias do Leme e ainda não vês o sinal. Pois o fogo e a água te consumirão.

20. A rapina de teus mercadores e a libação de teus perdidos; e a ostentação da hetaira do Posto Cinco, em cujos diamantes se coagularam as lágrimas de mil meninas miseráveis — tudo passará.

21. Assim qual escuro alfanje a nadadeira dos imensos cações passará ao lado de tuas antenas de televisão; porém muitos peixes morrerão por se banharem no uísque falsificado de teus bares.

22. Pinta-te qual mulher pública e coloca todas as tuas jóias, e aviva o verniz de tuas unhas e canta a tua última canção pecaminosa, pois em verdade é tarde para a prece; e que estremeça o teu corpo fino e cheio de máculas, desde o Edifício Olinda até a sede dos Marimbás porque eis que sobre ele vai a minha fúria, e o destruirá. Canta a tua última canção, Copacabana!

Rio, janeiro, 1958


(texto extraído do livro “Ai de ti, Copacabana”, Editora do Autor – Rio de Janeiro, 1960, pág. 99)


quinta-feira, junho 10, 2021

Esconderam de mim por 32 anos que Paulo Leminski era meu pai, diz músico

 

O músico Paulo Leminski Neto, também chamado de Luciano "Lucky" da Costa, e o poeta Paulo Leminski (nas fotos ao fundo): semelhança inegável

Por Paulo Sampaio

Editado em tamanho reduzido, o print de uma certidão de nascimento impresso em “O bandido que sabia latim” (ed. Record), biografia do poeta curitibano Paulo Leminski Filho, tomou proporções épicas. O documento revela que o escritor registrou como seu filho uma criança que nunca fora chamada pelo nome averbado, Paulo Leminski Neto. Até a publicação da biografia, em 2001, o cidadão registrado acreditava se chamar Luciano da Costa. “Esconderam de mim por 32 anos que Paulo Leminski era meu pai”, diz Luciano, ou Lucky, que é músico e tem agora 53.

Nascido em Curitiba em 31 de janeiro de 1968, Lucky conta que a mãe e o padrasto o registraram de novo, em 1976, com outro nome, quando decidiram matriculá-lo na escola. Os motivos que levaram o casal a perpetrar a falsidade ideológica nunca foram inteiramente esclarecidos: “Durante 8 anos, eles me chamaram de Kiko ou menino, e me privaram do convívio com outras crianças”, lembra o músico, que cresceu no Rio. Vinte anos depois de descobrir sua identidade, Lucky ainda sente dificuldade de superar a desconsideração dos envolvidos em uma história que, segundo diz, interessava a todos, menos a ele.

Toninho Vaz, o biógrafo: “A paternidade do Lucky sempre foi algo nebuloso. A verdade é que o pai, a mulher dele, a mãe e o padrasto viveram uma farsa que convinha a todos.”

Em 2003, graças à confusão deflagrada pela leitura da biografia, Kiko/Luciano/Lucky/Paulo Leminski Neto mergulhou em uma crise de depressão que culminou na ingestão de 60 comprimidos de Diazepam (tranquilizante) com cerveja: “Eu não queria me matar, queria só sair daquela situação, sumir.”

A certidão de nascimento de Luciano da Costa, lavrada no Rio em 1976, e a de Paulo Leminski Neto, em Curitiba, 1968   

Comuna e amor livre

O mistério que envolve a origem de Paulo Leminski Neto remonta a gravidez de Nevair “Neiva” Maria de Souza, mãe do garoto e única mulher que se casou no papel com o poeta – em 1965. O casal habitava uma espécie de comuna hippie frequentada por adeptos do “amor livre”. Entre os residentes estavam o jornalista Ivan da Costa, que mais tarde se tornaria padrasto de Lucky, e a poeta Alice Ruiz, que apareceu na festa de 24 anos de Leminski, em agosto de 1968, e se instalou na vida dele por cerca de duas décadas. Os dois tiveram três filhos – Miguel, Áurea e Estrela – e ficaram juntos até um ano antes de Leminski morrer de cirrose hepática, em 1989.

Não há consenso em relação à data exata do começo do relacionamento de Neiva com Ivan. De acordo com o relato mais ouvido nas entrevistas, os dois teriam se tornado amantes quando ela esperava Paulo Leminski Neto. Por sua vez, Alice logo ficou grávida do primeiro filho que teve com Paulo Leminski, Miguel, que morreria de leucemia aos 10 anos.

Paulo Leminski, entre o pai e Neiva, em Guaratuba

Caetano e Wisnik

Paulo Leminski inventou um estilo que o consagrou pela linguagem coloquial, curta e acessível. Além de 600 poemas e 20 livros de prosa, ele compôs por volta de 100 músicas. Em determinado momento, atraiu a atenção de Caetano Veloso, que gravou dele “Verdura”, no álbum “Outras Palavras”, e de José Miguel Wisnik, Itamar Assumpção e Moraes Moreira, com quem criou em parceria, respectivamente, “Polonaise”, “Filho de Santa Maria” e “Promessas Demais”.

Faixa-preta de judô, Leminski cultivava um bigode que se alongava nas laterais da boca e era considerado na cena underground de Curitiba um “poeta marginal”. Criou para si um personagem excêntrico, atormentado e transgressor, que seus críticos afirmam ser mais forte que a própria obra dele. Apontado como bígamo pelos vizinhos conservadores, foi convidado a se retirar do edifício São Bernardo, onde viva na “comuna hippie”.

Toninho Vaz, que o conheceu na época, diz que nunca conseguiu uma informação precisa a respeito do relacionamento entre os dois casais. “O que todo mundo falava é que Neiva se dividia entre Paulo e Ivan. Cheguei a provocá-lo com o assunto, mas ele desconversou.”

Mãe narcisista

Procurados por telefone e WhatsApp, Neiva e Ivan nunca responderam à reportagem. Lucky diz que “com certeza, minha mãe não vai querer falar desse assunto com jornalistas”. “Ela é uma narcisista perversa, mitômana, que teria sustentado até o fim o teatro que criou com meu padrasto, não fosse a revelação da biografia. Quando o Toninho os entrevistou e os avisou que me procuraria, ambos me disseram para não dar ouvidos a ele, alegando que era um jornalista marrom [expressão que define um tipo de jornalismo escandaloso e sem escrúpulos].”

Até os 8 anos, a criança registrada como Paulo Leminski Neto foi chamada de Kiko: “Minha mãe é uma narcisista perversa”

Tempos depois do lançamento da biografia, Ivan se submeteu a um exame de investigação de paternidade que mostrou que Lucky não é seu filho. “Acho que ele ainda alimentava um resto de esperança, apesar de eu ser a cara do Paulo. O resultado do teste abalou muito o relacionamento com a Neiva. Depois disso, ele teve uma filha fora do casamento, que está com 15 anos agora. Mora em Rocha Miranda [subúrbio carioca].”

O teste de DNA

Cancelado em família

O relacionamento de Lucky com Alice Ruiz e suas filhas, inventariantes da obra de Paulo Leminski, não é mais fácil. “A Alice contribui na mesma medida para minha amargura. Agora que ela e as filhas não têm como negar que Paulo Leminski é legalmente meu pai, fazem tudo para me destituir, me excluir, me cancelar”, diz o músico.

Alice Ruiz se mostra surpresa com a amargura de Lucky. Embora afirme que esteve com Paulo Leminski no Rio em 1976 (“eu me lembro de ter ido”), e acompanhou com ele, Ivan e Neiva o registro da certidão de Luciano da Costa, ela diz que é “a pessoa que menos tem a ver com isso”. “Se ele deve sentir raiva de alguém, é das pessoas com quem ele tem vínculo afetivo.”

Mesmo tendo conhecimento do teste de DNA, Alice afirma que “não dá para saber quem, de fato, é o pai do Kiko”. Segundo ela, “muita gente entrava naquele apartamento”.

Lucky acredita que a rejeição de Alice e de suas irmãs vai além do “desafeto”: “Diz respeito à herança.”

Catatau em desenvolvimento

Alice afirma que não tem o que temer. “Veja bem: a divisão dos bens do Paulo, com o Kiko ou sem, não me afeta em nada. Eu sou meeira, continuo tendo direito à metade. Ele tem de se acertar com as irmãs.” Ainda assim, ela alega que “a produção do Paulo foi nos 20 anos em que esteve casado comigo, e houve um momento em que eu trabalhei fora, para ele ficar em casa criando”. “Quando eu o conheci, o Catatau [obra mais emblemática do escritor] era um conto de oito páginas, que se chamava Descartes com Lentes. Fora isso, havia uns poemas que não chegavam a compor um volume inteiro.”

De acordo com ela, suas filhas tentaram fazer um acordo financeiro com Kiko em junho de 2020, sem sucesso: “Elas propuseram dividir tudo que se comercializasse dali pra frente. Ele não aceitou. Quer o retroativo.”

Alice, com Paulo e Estrela, anos 1980

A assessoria de imprensa da editora Companhia das Letras, que publica a obra de Paulo Leminski, informa que desde 2013 lançou cinco títulos do autor que venderam cerca de 300 mil exemplares, e que não há nada previsto para o futuro. Um dos títulos, “Toda Poesia”, ultrapassou os 100 mil – em determinado momento, estava à frente do blockbuster “50 Tons de Cinza” (E.L. James) na lista de mais vendidos.

Em suas tentativas de conversar com Estrela, Lucky diz que foi recebido com muita hostilidade. “Da última vez, assim que eu disse alô, ela desligou o telefone.”

Alice se queixa do mesmo, em relação a Lucky: “Parei de falar com ele, era muita agressividade. Tadinho. A gente às vezes cria histórias porque não aguenta a realidade. Para isso existe terapeuta, né?”

Ataque virtual

Procurada, Estrela não chegou a falar comigo. Protelou por mais de quatro horas a entrevista por telefone. Nesse meio-tempo, enviou dois prints de mensagens escritas por pessoas que atacavam Lucky e a mulher dele. E ainda uma foto dela com o irmão, em uma conferência pelo computador, representando uma suposta “tentativa de conversa no ano passado”.

“Ele tem do lado um papagaio fake que comanda e imediatamente ele cumpre as ordens”, começava a primeira mensagem.

“Estou tendo problemas com eles dois tbm...e concordo plenamente que é ela que domina, infelizmente ele está possuído (de fato), por uma pessoa que se aproveita para se dar bem”, diz a outra.

Fazendo as contas

Por fim, Estrela respondeu por escrito e áudio a algumas perguntas. Embora não houvesse nas questões alusão a dinheiro, apenas à quantidade de obras, ela buscou minimizar valores.

“É difícil quantificar uma coisa financeiramente, que não é um patrimônio como uma casa, ou uma gestão de dinheiro. Quando meu pai morreu ele deixou apenas uma obra, que a gente vai organizando. É uma obra que acaba continuando a produção, e cada caso é um caso, querido. No caso de bandas independentes, é complicado, parece que todo o material fica assim uma arrecadação enlouquecida, e a gente sabe que não é assim que funciona. A gente está falando de venda de arte. Para cada material, é em torno de 10% do preço de capa, e isso dividido entre os autores, na parte da música, você já deve imaginar o quão pequeno e pouco isso é.”

Capa da primeira edição de Catatau, de 1975, e foto do cartaz de lançamento do livro, feita por Dico Kremer

Correção da injustiça

De acordo com a advogada de Lucky, Letícia Gonçalves Dias Lima, a tentativa das irmãs de propor um acordo dos valores obtidos dali (2020) pra frente “não faz o menor sentido”. “A biografia foi publicada há 20 anos. A partir de então, todo mundo sabia da existência de Paulo Leminski Neto. Em vez de cumprir o seu dever, que era procurá-lo e providenciar a correção dessa injustiça toda, elas preferiram ignorá-lo, preteri-lo.”

Em relação à “segunda” certidão de nascimento, a advogada diz que não se trata de um documento falso, uma vez que foi lavrada em cartório, mas nulo, pela falsidade dos dados. No momento, ela finaliza o processo de retificação do nome. “Já pedi para o juiz oficiar todos os órgãos públicos. O CPF está vinculado a Luciano da Costa. Existe um conflito muito grande, e isso o prejudica quando ele se apresenta com o nome do registro original.”

Direito prescrito

O advogado de Alice e das filhas, André Alves Wlodarczyk, sustenta que “o inventário de Paulo Leminski Filho iniciou-se em 1991 e findou em 1998” e que o direito de Lucky em relação à partilha está prescrito. “O prazo seria de cinco anos, contados a partir do fim do inventário (1991), ou, na melhor das hipóteses, da descoberta da suposta filiação que se alega (2001).”

Embora ambas as partes tenham constituído advogados, a única ação aberta até o momento diz respeito à ratificação da primeira certidão de nascimento, por parte de Luciano da Costa – no Facebook, ele se apresenta como Paulo Leminski.

Wlodarczyk diz que o documento não chegou a ele, “para averiguação de veracidade e de legalidade pela via que foi obtido”. “Ele [Lucky] teve pai e mãe declarados em registro civil. Deve-se ficar bem claro que até o momento a suposta filiação é uma declaração unilateral de Luciano.”

Obra não autorizada

O rancor em relação a Alice e as filhas não é prerrogativa de Lucky. Toninho Vaz se queixa de que teve a obra “censurada” a partir da quarta edição, que seria lançada em 2013. “Eu acrescentei seis linhas, relatando o suicídio do Pedro, irmão do Paulo, e a Alice achou que manchava a imagem da família. Não autorizou mais a publicação das poesias.”

Na ocasião em que a edição foi suspensa, Alice deu uma entrevista afirmando que o suicídio de Pedro Leminski “não contribui para elucidar a personalidade e obra do biografado”. “Além disso, não concordamos com a atitude de explorar fatos trágicos.”

Para Toninho, Alice só censurou a biografia quando não interessava mais a ela sua publicação. “Em 2001, ao ser lançado, o livro reativou a lembrança de gente que já era admiradora do Paulo, e apresentou o trabalho dele para uma geração que não o conhecia. Preparou o terreno para que a obra dele cumprisse a carreira de sucesso que obteve a partir de 2013 (com o lançamento de Toda Poesia). Depois, por causa da dimensão que a exposição da certidão de Paulo Leminski Neto poderia tomar, ela não quis mais”.

Alice ri alto. “Que pretensão! O Paulo nunca parou de acontecer, de fazer sucesso. Era um tremendo escritor, e um pensador de cultura. Por sinal, a biografia não tem essa abordagem, e sim a sensacionalista. Se o livro vendeu bem, foi graças ao Paulo, e não o contrário. O que fez a obra do Paulo bombar foi a internet. O estilo dele tem tudo a ver com a geração mais nova. É rápido, palatável, tem humor.”

Esquerda gananciosa

Assim como Neiva, definida por Lucky como uma “ex-hippie que agora é bolsonarista e não acredita no vírus (corona), diz que é coisa de comunista”, Alice o intriga “pelo contraditório”. “Sabe essa cultura do paz & amor, que na prática não é nada disso? Como é que uma pessoa que se diz de esquerda, progressista, contra a censura e a ditadura militar pode se revelar tão gananciosa?”

Alice se compadece de Lucky. Diz que “não é fácil ser ele”. “Tadinho. O Kiko ficou sequelado. Descobrir aos 32 anos que tem dupla identidade não é fácil. E tem essa pandemia, que está levando uma porção de gente a surtar. O que ele vai fazer? Odiar a mãe? O possível pai que o criou? Não! Ele vai me odiar!”

E o pai que o registrou?

Em nenhum momento os entrevistados se dão conta de que podem estar fazendo uma interpretação machista do abandono de Lucky. Ninguém acusa o poeta Leminski de falta de interesse pelo destino do filho. Alice concorda: “Existe realmente uma leitura machista e, ao mesmo tempo, protetora: Ah, mas ele era um poeta. Não seja por isso, eu também sou.”

Lucky diz que não isenta o pai: “O problema é que ele estava morto quando eu tomei conhecimento da certidão. Se estivesse vivo, cobraria da mesma forma que faço com os outros. Ninguém é santo nessa história”.

Toninho relativiza: “O Paulo não tinha controle desse universo. As mulheres comandavam. A elas interessava. A Alice não ia criar o filho que não era dela, e além disso morria de ciúmes da Neiva. Queria que ela fosse viver no deserto. E nesse caso, era melhor que os casais se mantivessem distantes.”

Lucky não isenta Paulo Leminski: “Ninguém é santo nessa história”

Faith no More

Morando em Curitiba há cerca de seis meses, Lucky/Leminski tenta recomeçar sua história a partir do lugar onde nasceu e foi registrado. Em relação aos quase 20 anos que levou para tomar uma atitude a respeito do que considera seus direitos, ele alega que sucumbiu ao conflito existencial e à culpa:

“Além do choque da descoberta de que eu era outra pessoa, com outro nome e outra origem, ainda precisei enfrentar a chantagem da minha mãe. Eu me sentia obrigado a protegê-los do crime de falsidade ideológica. Por muito tempo, tentei me convencer de que afinal eu era só aquela pessoa que tinha existido até ali, e fui empurrando com a barriga, mas cheguei no meu limite.”

No momento, Lucky está desempregado, “vivendo de favor”. Diz que sofre bullying de pessoas que não acreditam que ele é filho de Paulo Leminski. Cantor metaleiro, ele toca guitarra e participou de duas bandas, Robertinho do Recife e Metalmania e X-Rated. “Toquei no Rock in Rio e, em diferentes momentos, abri shows das bandas americanas Faith no More, Korn e Quiet Riot."

Por tudo que lhe aconteceu, se considera uma espécie de filho renegado da vanguarda da contracultura curitibana. O personagem que “sobrou”. “Pode colocar aí: tenho horror a hippies. Sou heavy metal!”

quinta-feira, abril 30, 2020

Meus amigos Francisco Costa e Marco Gomes



Nunca imaginei que um dia estaria usando esse espaço poético e bem-humorado para fazer necrológio de amigos queridos. A pandemia do covid-19 tem sido uma desgraça sem fim. Na última segunda-feira perdi um amigo mais do que querido, uma amizade de 54 anos sem nunca termos travado uma mísera discussão sequer: o engenheiro civil Francisco Costa.

Das boas lembranças que guardo do sacana, uma manhã de domingo, sol quase a pino, ele passou lá em casa e avisou:

– Êi, seu Simão, eu vou levar o Simãozinho emprestado para me ajudar numa tarefa que só ele tem inteligência pra fazer...

Eu tinha 12 anos, o Chico Costa, uns 16. A tarefa? Afinar cerol de papagaio. Ainda não havia a casa do seu Chico Eletricista. Na época, aquilo era um terreno urbano da Dona Sila, mãe do Almir Português. Havia um poste de concreto no começo do terreno, no cruzamento das ruas Parintins e Borba, e outro poste praticamente em frente da nossa casa.

Chico havia esticado umas 800 jardas de linhas branca enlaçando os dois postes. Parecia um labirinto. Explicou a técnica:

– Eu vou passar o cerol grosso, na mão cheia, você vem atrás com os dedos polegar e indicador feito pinças, afinando o cerol. Não precisa botar muita pressão. Tu não é jumento, tu sabe do que estou falando! A parte mais difícil vai ser na linha que envolve o poste. Aí, você afina com a ponta das unhas, pro cerol passar por outro lado da linha. Se ficar só de um lado, é ali que vão nos cortar! Tu não é jumento, tu sabe do que estou falando!

De repente, estou envolvido sem querer em uma merda que nunca dei valor: empinar papagaios! Cumpri minha tarefa com estoicismo: indo e vindo em torno das linhas esticadas, acho que fizemos umas vinte viagens. Esperamos uma meia hora sentados embaixo de um pé de castanholeira que havia em frente de casa. Daí, ele foi lá e começou a enrolar a linha numa maçaroca.

Aí, voltou em casa e gritou lá pra dentro:

– Êi, seu Simão, estou devolvendo o Simãozinho! Não lhe disse que ele é foda?...

E foi embora com seu famão do Botafogo para infernizar a vida dos outros empinadores.


Muitos anos depois, em 1974, eu fazendo engenharia na Utam, ele se preparando para fazer engenharia civil na FUA, foi se queixar pra mim:

– Porra, Simãozinho, chamei um zé buceta para me ajudar a fazer um muro no quintal de casa e o vagabundo me sacaneou, falou que não era ajudante de pedreiro... Aí, no dia seguinte, me pediu pra pagar uma dose de cana pra ele no Bar do Aristides. Mandei tomar no cu! Não quer ganhar dinheiro trabalhando? Vá se foder... A porra desse nosso bairro só tem murrinhas, caralho!

Aí, ficando mais puto do que de costume:

– Murrinhas do Egito, carálio!... Esses vagabundos estão no planeta desde a construção das pirâmides...

Ri pra carálio. E falei:

– Isso é um bom nome para um time de futebol aqui da Caxuxa!

O resto é história.

Há cinco anos, num livro que estou escrevendo para complementar o “Cowboys Fora-da-Lei”, que nomeei de “Pai Simão & Outras Histórias”, fiz o texto abaixo:


DO lado oposto da Rua Borba, praticamente em frente da casa do Mário Adolfo, ficava a casa de Francisco (aka “Chico Cavalinho”, porque era gentil e atencioso como um quadrúpede com os poucos desafetos), Flávio (aka “Fábio”), Fernando (aka “Linguinha”, porque tinha o hábito de morder a língua quando ficava irritado), Graça e Glória Costa (aka “Gói”), localizada exatamente ao lado do Top Bar.

Dona Otília, mãe da galera, tinha uma loja de confecções no Mercadinho das Novidades, e o seu Zé Costa, pai dos moleques, foi um dos maiores intelectuais que conheci. Aliás, ele criou os cinco filhos vendendo livros espiritualistas e esotéricos de porta em porta e passou a vida inteira tentando catequizar eu e Mário Adolfo para entramos na Maçonaria. O fato de eu já ser filiado à Ordem Rosa Cruz não lhe dizia respeito. Ele queria me ver na Maçonaria, que julgava ser o começo de tudo. Alguns dos melhores livros que li na vida, me foram vendidos ou doados graciosamente por ele. Era um grande espírito de luz.

Chico, Fábio e Fernando eram viciados em papagaios de papel. Como nunca aprendi a “flechar”, jamais me interessei pela brincadeira. Eu gostava de ver as “tranças” no céu e apreciar a confecção dos papagaios – ofício que o Mário Adolfo, inutilmente, tentou me ensinar uma porção de vezes. Também gostava de passar cerol nas linhas, mas a afinação do cerol era sempre feita por algum especialista no assunto. Os três irmãos possuíam técnicas específicas para as tranças.

O Chico Costa era o mais abusado de todos. Ele passava cerol em 800 jardas de “linha um”, usava mais 400 jardas de linha branca, empinava o papagaio no céu até ele se perder de vista e, lá do alto, como se fosse um falcão peregrino procurando uma presa, embicava em direção ao solo, fazia uma rasante pra direita a menos de dois metros do chão e subia novamente em direção ao céu, cortando três, quatro, cinco papagaios de uma só vez, tal a velocidade da manobra. Suas vítimas preferidas eram os empinadores de papagaio da Praça 14.

O Fernando Linguinha gostava mais de “embolada”. Além de usar “linha dois zero”, as rabiolas de seus papagaios possuíam várias lâminas de gilete encastroadas em palitos de fósforos, distribuídas estrategicamente ao longo da mesma. Na época, os papagaios de “famão” gostavam de executar a proeza de “cortar e aparar”.

Exímio flechador, Fernando se aproximava dos papagaios adversários como quem não queria nada e deixava eles avançarem em direção a rabiola do seu papagaio para só então executar uma rápida manobra de evasão que, quase sempre, cortava a linha dos adversários com a rabiola.

Na maioria das vezes, entretanto, Fernando optava por embolar seu papagaio entre o peitoral e a rabiola do adversário. Era quando ele se transformava em uma verdadeira máquina humana de “colher linha”. Suas braçadas vigorosas alcançavam a velocidade de 78 rpm. O papagaio adversário vinha bater em sua mão. Aí, era só quebrar a linha do peitoral e ficar com o troféu.

O Fábio era um empinador de papagaios mais clássico, que gostava de trançar descaindo a sua linha por cima da linha adversária como se seu papagaio já houvesse “quedado”. Enquanto Chico e Fernando utilizavam papagaios de 1 m de altura, Fábio preferia os modelos menores (30 cm), mais velozes e fáceis de se manobrar. Ele também utilizava “linha oito”, mais fina que a “linha um”, que se transformava em uma verdadeira navalha Solingen depois que recebia o cerol.

A fabricação de cerol envolvia uma mão de obra federal. Primeiro, era preciso transformar cacos de vidro em pó, usando um pilão de ferro. Os vidros azuis de leite de magnésia de Philips eram os mais requisitados, só perdendo para as raríssimas lâmpadas fluorescentes e as indefectíveis bolas de árvore de Natal. Depois, o pó era coado em meias de mulher para retirar o xerém, os pedacinhos maiores. Finalmente, era preciso encontrar uma boa cola de madeira em tabletes e derretê-la em banho-maria para só então misturar com o pó de vidro. Os mais afoitos usavam pó de ferro (“linhaça”), mas este tipo de cerol tinha o dom de apodrecer a linha no dia seguinte.

Uma meia dúzia de vezes, eu auxiliei o Fábio nas “passadas de fios com a maçaroca”, porque era um dos melhores moleques da rua nesse quesito. Explico melhor. Antigamente, as linhas de transmissão de energia elétrica residencial ocupavam apenas um lado das ruas. As pessoas que moravam do outro lado da rua precisavam de uma fiação complementar para levar a energia dos postes existentes no lado oposto da rua até as suas residências. Assim, as ruas ficavam coalhadas de fiação aérea, o que dificultava enormemente a mobilidade dos empinadores de papagaio.

Para se deslocar, por exemplo, da Rua Parintins até a Rua Tefé, ou seja, apenas um quarteirão, era necessário passar por cima de mais de 30 fiações, já que cada casa demandava, no mínimo, dois fios (fase e neutro). Daí a importância do “passador de fios”. Enquanto o empinador ficava flechando o papagaio para empiná-lo o mais alto possível, o passador tinha de calcular mentalmente quantos metros de linha teria que descair para efetuar a manobra porque a maçaroca seria presa com um nó falso.

Aí, vinha a parte mais difícil da operação: lançar a maçaroca sobre os fios e pegá-la do outro lado no mesmo momento em que o empinador soltava a linha do papagaio. Às vezes, a maçaroca caía entre dois fios paralelos e a manobra precisava ser refeita ao contrário. Nosso recorde, meu e do Fábio, foi ir da Parintins até a Manicoré e depois voltar, sem que eu errasse uma única “passada”. Coisa de profissional.


Marius Bell, Marco Gomes, Joaquim Alencar e Celestino Neto, o poeta Lé

Depois de uma luta heroica contra um câncer na próstata durante os últimos dois anos, o jornalista, poeta, fotógrafo e agitador cultural Marco Gomes jogou a toalha. Morreu na manhã desta quinta-feira, 28 de maio, de infarto agudo do miocárdio, quando se preparava para mais uma consulta diária na Fundação Centro de Controle de Oncologia do Amazonas (Cecon), atividade da qual não se descuidava mesmo nesses tempos bicudos de pandemia. Ele mesmo relatava sua via crucis quimioterápica, com um misto de resignação e bom humor, na página que mantinha no Facebook.  A nossa aldeia cultural ficou bem menor com essa sua partida inesperada. Sim, incréus, o poeta Marco Gomes não mora mais aqui!

Amigo de adolescência do compositor e músico Afonso Toscano, que faleceu no início do ano passado, e do poeta, compositor e artista plástico Arnaldo Garcez, atualmente morando no Rio de Janeiro, Marco Gomes era um autêntico globe-trotter. Quando o conheci, em 1982, no Bar do Armando, ele tinha 28 anos e já havia morado em Boa Vista, Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador e Belo Horizonte. Escrevia poemas desde os 17 anos, mas ainda não tinha nenhum livro publicado. Ficou surpreso ao saber que eu trocava figurinhas com a galera linha de frente da poesia marginal daquela época (Glauco Mattoso, Leila Miccolis, Artur Gomes, Euclides Amaral, Paco Cac, Marcelo Dolabela, Hélio Leite, Sebastião Nunes, Ulisses Tavares, Raul Christiano Sanches, Zanoto, Nicolas Behr, Márcio Almeida et caterva). Ficamos amigos de infância. (o poeta mineiro Marcelo Dolabela, autor do clássico ABZ do Rock Brasileiro, faleceu no início do ano, em Belô, por complicações decorrentes de um AVC que havia sofrido no ano passado. 2020 está sendo um ano terrível!)

Juntos, nós três (Marco, eu e Arnaldo) fundamos o Coletivo Gens da Selva (o nome era uma brincadeira com o famoso personagem Jim das Selvas, usando “gens”, “gente” em francês para marcar posição), uma espécie de cooperativa anarco-lítero-musical responsável pelo primeiro disco do cantor e compositor Roberto Dibbo (produzido pelo poeta Anibal Beça). Aliás, o Coletivo Gens da Selva foi a primeira entidade cultural do Amazonas a ser registrada no Ministério da Cultura (MinC) e desfrutar das benesses da Lei Sarney. Éramos anarquistas, não idiotas.

Nós três também publicamos os jornais O Caboco (prosa, editado pelo escritor Rui Sá Chaves), Miratinga (poesia, editado por Marco Gomes e Arnaldo Garcez) e Bodó na Lama (humor, editado por mim), e, mais tarde, ajudamos a fundar o Sindicato dos Escritores do Amazonas, que teve como primeiro presidente o artista plástico, escritor e poeta Anísio Mello, de saudosa memória, e a abusada Banda Independente Confraria do Armando (BICA), um dos orgulhos do carnaval de rua amazonense.

Em parceria com o poeta Carlos Araújo, Marco Gomes editou quatro antologias poéticas intituladas Poetatu, para mostrar os novíssimos poetas da praça e textos inéditos da velha guarda. Entre os poetas publicados estavam Almir Graça, Anísio Mello, Carlos Araújo, Bosco Ladislau, Castro e Costa, Celestino Neto, Davi Ranciaro, Célio Cruz, Eliberto Barroncas, Felipe Wanderley, Henrique Mesquita, José Ribamar Mitoso, Jersey Nazareno, Marcileudo Barros, Marco Gomes, Durango Duarte, Aldisio Filgueiras, Anibal Beça, Luiz Bacellar, Simão Pessoa, Tenório Telles e Zemaria Pinto. Me lembro de ter feito a apresentação da Antologia nº 4, lançada em 1994:

“No futuro do pretérito, essa antologia poética feita nas coxas será o livro narrativo mais instigante de 2014. O New York Times informará. Mistura de Win Wenders com Bouvard et Pécuchet, muitas vezes parece Bukowski. Sim, é um livro preguiçoso. Sim, é um livro engraçado, gostoso de ler. Um livro triste, angustiado. Um livro de crônicas. Um livro de poesia. Um livro de filosofia. Um livro de memórias travestidas em ficção. Escritura sem afeto. Texto raiva-ternura. Chocante. Lindo. Poetatu. Poesia paca, bicho! Sim, há uma gota de sangue em cada poema. Ao alarme, prefiro o ladrão. Biscoitos finos para a massa. Poetatu já nasceu clássico. E não fosse isso seria aquilo. De leve.”


De lá pra cá, Marco Gomes publicou quatro livros de poesia e um livro de crônicas (“Agora eu conto… Retalhos do Rebotalho”), onde ele conta o arranca-rabo que fez no Rio de Janeiro, no final dos anos 80, durante o lançamento de uma antologia poética lançada pela Editora Shogum, da Cristina Oiticica, esposa do “mago” Paulo Coelho.

Quando ele me contou que seu poema “Apocalipse” havia conquistado o primeiro lugar do Concurso Nacional de Poesias promovido pela editora, alertei o maluco sobre a picaretice por trás do concurso:

– Porra, Marco, eles dão o primeiro lugar para 100 poetas diferentes, incluem todos numa antologia e obrigam cada participante a comprar 100 exemplares do livro. Como todo poeta é narcisista e que ver sua obra publicada, todo mundo compra. Aí, a Editora Shogum vende 10 mil exemplares, lucra 50% das vendas e fica todo mundo satisfeito… Já fizeram isso com o poeta Bosco Ladislau. Você vai cair nessa esparrela de novo?…

Cristão novo, ele não quis me ouvir, pagou pra ver e depois foi cutucar a onça com vara curta. Seu relato sobre a presepada é um dos textos mais hilariantes do livro.

Um de seus poemas mais conhecidos, salvo engano, se chama “Autorretrato”: “Dizem por aí / que eu não sou / bom-partido… / Tô com a galera / em gênero, número e grau: / Sou melhor inteiro!”. É desse jeito bem-humorado que vou me lembrar do maluco. Valeu ter sido seu contemporâneo, brodão! E as huris do Paraíso que se cuidem.

quinta-feira, abril 23, 2020

So sorry, mas o mocó está de luto!



Paula e Ivancy Wilkens, no GRES Reino Unido da Liberdade

O falecimento inesperado de dois amigos queridos (o jornalista Robson Franco, dia 20, e o microempresário Ivancy Wilkens, marido da minha secretária Paula, dia 22) adiaram as postagens sobre o livro de folclore. Estou ainda meio sem chão.

Nos últimos nove anos, eu falava com o Ivancy toda quinta-feira, quando ele vinha deixar a Paula aqui em casa para arrumar o mocó. Hoje, ele não vem.

Soube do infausto acontecimento pela própria Paula, por telefone, no início desta quarta-feira. Ivancy começou a sentir falta de ar na tarde de terça-feira. Procurou um SPA, onde foi medicado e mandado de volta pra casa. No início da noite, a falta de ar piorou. Um de seus primos, médico, desconfiou da covid-19 e o levou para um Pronto Socorro. Foi entubado, teve uma parada cardíaca e atravessou o espelho. Os legistas do IML apontaram como causa mortis pneumonia.

Custa crer que um atleta, gozando de uma saúde de ferro, tenha sido vencido por uma simples pneumonia, mas eu não sou médico para contestar o laudo. Ivancy foi velado na Funerária São Francisco, ali na Cachoeirinha, e sepultado ontem à tarde.

Sobre ele, já contei uma de suas histórias aqui no blog. Se quiser reler, acesse aqui:


Botafoguense histórico como seu irmão, João Nogueira postou hoje o seguinte texto no Facebook:

Ontem meu irmão, meu amigo, meu parceiro me abandonou, ainda estou buscando forças pra me reergue POIS O GOLPE FOI MUITO GRANDE, mas o meu conforto é saber que Deus tinha um plano pra ele e agora está melhor que eu, vá em paz meu irmão, porque aki eu ainda estou lutando contra esse vazio que ficou dentro mim, mas tenho certeza que um dia iremos nos encontrar novamente. TE AMO MEU PARCEIRO.

O compositor e sambista Marinho Saúba também postou no FB um texto a respeito:

Tô triste demais pelo passamento do meu querido amigo e irmão do coração Ivanci, pessoa do bem que só transmitia alegria, tinha muito o espírito de liderança, torcedor do Botafogo, Caprichoso e Reino Unido da Liberdade, todos os anos promovia seus passeios de barco ao Festival de Parintins e também as praias turísticas de Manaus, foi atleta da seleção de vôlei estudantil do Amazonas e como amante do futebol, era o goleador da pelada tradicional de fim de tarde de todas as sextas-feiras no Campinho da VM, era hilário quando fazia um gol, pois sempre usava esse bordão em tom de gozação " SÓ UM É LONA", referindo-se que somente um não era suficiente pra marcá-lo kkkk , sempre era um dos que encabeçavam a organização dos times da comunidade. Dr. Ivanci, como era chamado carinhosamente pelos amigos mais chegados, grande referência da Vila Mamão. Descanse em paz meu querido amigo e irmão do coração, que DEUS receba-o de braços abertos em seu Reino.


Eu, Robson Franco e Simas Pessoa, o Careca Selvagem, no Bar da Júlia, em dezembro último. No fundo, o eterno zagueiro Lúcio Preto, que também resolveu atravessar o espelho no início do ano

Do falecimento do jornalista Robson Franco, tomei conhecimento no mesmo dia via whtsapp. Ele era uma das figuras mais queridas do FB, de onde me afastei há alguns meses, mas de vez em quando eu entrava ao vivo na Tucupi Radio Web para conversarmos sobre abobrinhas.

Ele tinha planos de, ainda esse ano, fazer uma série televisiva chamada “De Bar em Bar”, onde eu faria o papel de âncora, contando causos, chistes e piadas nas mesas dos principais botecos da cidade. Chegamos a rascunhar o projeto, que foi adiado agora para as calendas gregas.

O portal BNC Amazonas, em texto assinado pelo jornalista Aguinaldo Rodrigues, assim noticiou a tragédia:

Jornalista Robson Franco, o “Tucupi Radio-Web”, morre em Manaus

O jornalista Robson Franco não resistiu no início da noite desta segunda (20) a um problema de saúde. A causa da morte ainda não foi divulgada.

Há algumas semanas, portanto, ele vinha debilitado por uma infecção, que acreditava ser estomacal. Com receio de se contaminar pelo coronavírus (covid-19), evitava ir a hospitais públicos em busca de socorro.

Como sua saúde ficava a cada dia mais debilitada, chegando a perder 25 quilos de seu peso, conforme informou em post no Facebook, sua esposa decidiu levá-lo no final da madrugada de hoje ao hospital 28 de Agosto.

Contudo, o socorro não chegou a tempo.

Como se definia

“Racional emotivo, aquele que defende suas ideias e ideais com paixão! Solidário e companheiro sempre! Se tu estás bem, eu fico bem! Não sou do contra, sou do fresca!”


Carreira


Egresso do curso de comunicação social da Ufam (Universidade Federal do Amazonas), Robson atuou nos principais veículos de imprensa de Manaus.

Por essa razão, centenas de mensagens nas redes sociais, de amigos e familiares, lamentaram a morte do jornalista, aos 51 anos.

Antenado com a internet, foi dos primeiros jornalistas do Amazonas a usar amplamente as redes sociais, interagindo com centenas de pessoas de todo o mundo.

Com a derrocada dos veículos impressos, Robson criou a radioweb Tucupi, por onde conquistou boa audiência.

quinta-feira, abril 16, 2020

Dabacuri



Faz tempo que não posto nada aqui. Sacanagem minha com meus 25 leitores registrados em cartório. Mas é que perdi tantos amigos nesse começo de ano que resolvi dar um tempo.

Foi na semana passada que uma amiga querida deu o toque: “E se em vez deles, fosse você? A gente ia se privar dos textos que você pesquisou? Isso é sacanagem...”

Pois é. Eu queria fazer uma surpresa. Lançar um puta livro sobre a cultura popular de Manaus. Mas que surpresa é essa, por favor? Não é melhor mostrar logo a porra do livro aqui na web, que dá pra todo mundo acessar?

Foi por causa dela que resolvi mostrar o primeiro livro, “Dabacuri”, e o resto da tropa. São textos longos. Foda-se. Vou começar do começo. Com a apresentação. Vamo que vamo!

Vou começar com um quadro do meu querido e saudoso Roland Stevenson, pintor chileno, meu camarada. Ele era um gênio.


A imagem que ele fazia das Amazonas era exuberante. Visitei algumas vezes seu studio ali na Av. Constantino Nery. Conversávamos muito, ríamos muito, discutíamos muito. Uma das pessoas queridas que se foi, como se vão as coisas boas que a gente ama.


Num lugar que não se sabe bem ao certo onde, talvez nas planícies frias da margem esquerda do rio Danúbio, na Bulgária, numa época que fica entre a mitologia e a história, viveram as mulheres chamadas Amazonas. Eram frias, belas e bárbaras. Não toleravam os homens, a não ser quando os capturavam para se reproduzirem. Amazonas vem de “amazon”, em grego: “as que não têm seio”. Porque, de tão apaixonadas pela guerra, dizem, arrancavam um dos seios para melhor manejar o arco e a lança.

A Grécia mitológica é povoada de histórias dessas mulheres extremadas, descendentes do deus da guerra Ares (Marte, entre os latinos) e da ninfa Harmonia. O incrível herói Hércules esteve nesse reino encantado com a missão de se apoderar do cinto de Hipólita, a rainha. Quase teve êxito. Hipólita apaixonou-se por ele e lhe daria de boa vontade o cinto, não fosse suas guerreiras terem iniciado uma rebelião, fomentada, aliás, pela deusa Hera, uma ciumenta amiga de Hércules. O prodigioso Hércules mata Hipólita para conseguir o cinto e retira-se de Temiscira, capital do reino das guerreiras, combatendo furiosamente. Pelo menos assim é a lenda.

Em 1539, as Américas estavam ainda mal descobertas. E o mito das Amazonas não era muito mais fantástico que as terras para onde se dirigiam aventureiros como Dom Francisco de Orellana, que vinha à misteriosa América, como disse um de seus poetas, realizar “un sueño heroico y brutal”. Orellana era um dos comandantes de Francisco Pizarro, o sombrio e inclemente conquistador do Peru. Este ouvira falar do Eldorado, um país fantástico de cidades de ouro, além dos Andes. E para lá, numa tropa com 4 mil índios escravos, 300 soldados, 150 cavalos, cães e porcos, despachou, no Natal de 1539, alguns de seus homens – entre os quais Orellana – sob o comando de seu irmão Gonzalo.

A viagem deste segundo Pizarro foi um roteiro de misérias. A escalada dos Andes custou à expedição mais que o pior dos combates. Tiveram de comer frutos desconhecidos e raízes, solas de sapatos e arreios. Já na encosta leste dos Andes, Gonzalo Pizarro faz uma parada estratégica e manda cinquenta homens em busca de alimentos. No comando envia Orellana, do qual esperaria socorro, em vão: o cavalheiro foge para a imortalidade. Vai descobrir o rio das Amazonas.

Do rio Coca, onde estava Gonzalo Pizarro, Francisco Orellana chegou ao rio Napo. Após uma jornada de 600 quilômetros pelo rio Napo, sob a ameaça constante dos índios omáguas, ele atingiu um caudal barrento que chamou de rio Orellana. E o seguiu, abandonando Gonzalo à sua própria sorte. O rio barrento era o Solimões, cujo nome é uma referência aos nomes dos povos que originalmente habitavam suas margens, os índios Sorimões (ou ainda Joriman ou Sorimão), termo derivado da palavra latina solimum, referência ao veneno utilizado nas pontas de flechas e dardos destes povos.

Os navegantes seguiram pelo rio Solimões por mais 1.200 quilômetros até a sua confluência com o rio Negro, que alcançaram no dia 3 de junho de 1542. O rio nascido daquele “encontro das águas” foi designado pelos membros da expedição como Grande Río, Mar Dulce e Río de la Canela. Orellana alegou ter encontrado em suas margens grandes caneleiras, árvores das quais se obtem a canela, uma das especiarias mais importantes e desejadas na Europa da época. A árvore, no entanto, não é nativa da América do Sul e só podia ser encontrada, à época, no Oriente. Outras plantas semelhantes, no entanto, como o loureiro e o pau-rosa, são nativas da região, e Orellana poderia estar se referindo a elas. Depois de muito viajar, numa segunda-feira, conta frei Gaspar Carvajal, cronista da viagem, Orellana e seus homens chegaram a um povoado indígena, em cuja praça se erguia um palanque representando uma cidade murada. Perguntando aos índios, “por cual memoria tenían aquello”, responderam que os habitantes da aldeia eram servidores das “icamiabas” (na língua dos índios, “mulheres sem marido”).

Diz frei Carvajal que um índio prisioneiro informou serem elas todas solteiras. Moravam sete dias rio Nhamundá acima, em setenta povoados, com muralhas que se comunicavam por estradas bem guardadas. Diz Carvajal: “El Capitán (Orellana), le preguntó sí estas mujeres parían; el indio dijo que si. El capitán le dijo que, como, no siendo casadas, ni reside hombre entre ellas, se empreñaban. Él dijo que estas indias participan com indios em tiempos, y quando les viene aquela gana (...) por fuerza los traen a sus tierras y los tienem consigo aquele tiempo que se les antoja, y después que las hayan preñadas les tornam a enviar a sua tierra (...); y después, cuando vienne el tiempo que han de parir, que si paren hijo le matan y le envian a sus padres, y si hija la crían com muy gran solemnidade”.

Descendo mais, na foz do rio Nhamundá, Orellana teria travado feroz encontro com essas guerreiras. Não tinha jeito ruim a batalha naquele dia 24 de junho, dia de São João. Dos bergantins, os homens de Francisco Orellana estavam esvaziando de inimigos, com rajadas de arcabuz e de balestra, as brancas canoas vindas da costa. Mas aí, a bruxa deu as caras. Apareceram as mulheres guerreiras, tão belas e ferozes que eram um escândalo, e então as canoas cobriram o rio e os navios saíram correndo, rio abaixo, como porco-espinhos assustados, eriçados de flechas de proa a popa e até no mastro-mor.


As capitãs lutaram rindo. Se puseram à frente dos homens, fêmeas garbosas, e já não houve medo na aldeia de Conlapayara. Lutaram rindo e dançando e cantando, as tetas vibrantes no ar, até que os espanhóis se perderam para lá da boca do rio Tapajós, exaustos de tanto esforço e assombro. Tinham ouvido falar destas mulheres, e agora acreditam. Elas vivem ao sul, em senhorios sem homens, onde afogam os filhos que nascem varões. Quando o corpo pede, dão guerra às tribos da costa e conseguem prisioneiros. Os devolvem na manhã seguinte. Ao cabo de uma noite de amor, o que chegou rapaz regressa velho.

Orellana e seus soldados continuarão percorrendo o rio mais caudaloso do mundo e sairão ao mar sem piloto, nem bússola, nem carta de navegação. Viajam nos bergantins que eles construíram ou inventaram a golpes de machado, em plena selva, fazendo pregos e bisagras com as ferraduras dos cavalos mortos e soprando o carvão com botinas convertidas em foles. Deixam-se ir sem rumo pelo rio das Amazonas, costeando a selva, sem energias para o remo, e vão murmurando orações: rogam a Deus que sejam machos, por mais machos que possam ser, os próximos inimigos.

A história ou o mito maravilhoso das icamiabas dominou o resto da viagem. Orellana rebatizou o grande rio: de rio das Canelas passou a chama-lo de rio das Amazonas. O espanhol voltou à América, em 1550, como governador-geral do território por ele descoberto. Mas morreu de malária, com 44 anos, na costa da atual Guiana Francesa, depois de dois meses no labirinto de ilhas do arquipélago de Marajó, procurando, em vão, a entrada do rio das Amazonas.

Realidade ou ficção, a lenda das amazonas/icamiabas se enraizou de tal forma no imaginário da população nativa que passou a fazer parte do folclore da região. Foi por causa desse folclore que a Província de São José do Rio Negro se transformou em Amazonas, após se desmembrar da Província do Grão-Pará, em 1850, e posteriormente toda a região que abrange a maior floresta tropical do planeta passou a se chamar Amazônia.

Mas afinal de contas o que é folclore? Segundo a Carta do Folclore Brasileiro, aprovada pelo I Congresso Brasileiro de Folclore, em 1951, “constituem fato folclórico as maneiras de pensar, sentir e agir de um povo, preservadas pela tradição popular, ou pela imitação, e que não sejam diretamente influenciadas pelos círculos eruditos e instituições que se dedicam ou à renovação do patrimônio científico e artístico humano ou à fixação de uma orientação religiosa e filosófica”.

Na verdade, todos os povos possuem suas tradições, crendices e superstições, que são transmitidas através de lendas, contos, narrativas, provérbios e canções. Esses veículos de expressão popular são transmitidos de uma geração a outra e passam a pertencer a um determinado povo de tal modo que desconhecemos os seus autores.

As lendas são estórias contadas por pessoas e transmitidas oralmente através dos tempos. Misturam fatos reais e históricos com acontecimentos que são frutos da mais fantástica fantasia. As lendas geralmente fornecem explicações plausíveis e até certo ponto aceitáveis para coisas que não têm explicações científicas comprovadas, como acontecimentos misteriosos ou sobrenaturais. Muitas dessas lendas são derivações de narrativas mitológicas dos povos europeus – e aqui podemos citar o caso da Yara ou Mãe d’Água, uma sereia da Amazônia que parece ter sido inspirada nas sereias da mitologia grega narradas por Homero, na “Odisseia”. Como diz o dito popular que “quem conta um conto aumenta um ponto”, as lendas, pelo fato de serem repassadas oralmente de geração a geração, sofrem alterações à medida que vão sendo recontadas.

Os mitos são narrativas mais bem elaboradas que possuem um forte componente simbólico. Como os povos da antiguidade não conseguiam explicar os fenômenos da natureza através de explicações científicas, criavam mitos com este objetivo: dar sentido às coisas do mundo. Os mitos também serviam como uma forma de transmitir conhecimentos e alertar as pessoas sobre perigos e ameaças, desvios de conduta, ambição, orgulho, inveja e outros defeitos ou qualidades inerentes ao ser humano. Deuses, heróis e personagens sobrenaturais se misturam com fatos da realidade para dar sentido à vida e ao mundo. Ao contrário da explicação filosófica, que se utiliza da argumentação lógica para explicar a realidade, o mito explica a realidade através de suas histórias sagradas, que não possuem nenhum tipo de embasamento científico para serem aceitas como verdadeiras. Todas as culturas possuem seus mitos. Alguns assuntos, como a criação do mundo, deram origem a vários mitos diferentes.

A origem das superstições está na visão mágica, sobrenatural e irracional que se tem do mundo. Segundo Luís da Câmara Cascudo, as crendices populares “participam da própria essência intelectual humana e não há momento na história do mundo sem a sua inevitável presença”. Algumas dessas superstições são sobejamente conhecidas: passar embaixo de escada dá azar. Coceira na palma da mão é sinal de que há dinheiro chegando. A visita chata vai embora se uma vassoura for colocada atrás da porta. Quebrar um espelho dá sete anos de azar. Se a sua orelha estiver quente ou vermelha, alguém está falando mal de você. Não se deve deixar o chinelo virado de ponta-cabeça porque isso traz mau agouro. Pé de coelho, trevo de quatro folhas e ferradura dão sorte. Bater na madeira três vezes espanta o azar. Faça um pedido para uma estrela cadente e ele vai se realizar.

O folclore também se associa frequentemente às tradições religiosas, acrescentando elementos novos aos rituais tradicionais. Grandes festas populares como o carnaval no Brasil, o mardi gras nos EUA e o dia de São Patrício na Irlanda, são alguns exemplos disso. O sincretismo religioso, isto é, as misturas de rituais e crenças religiosas de várias tradições, quase sempre se faz presente na base constitutiva da cultura popular. A prática de se “benzer” um doente, de se “fechar o corpo” contra males por meio de feitiços, de se “rezar” com folhas de arruda ou de pião roxo para tirar o “quebranto” de uma criança e outras variações semelhantes, são resultado deste sincretismo.


Em linhas gerais, as tradições populares são conservadas através do folclore. Por meio de um folguedo, como o do “boi-bumbá”, toda uma herança imaterial – isto é, um estoque de valores e sabedoria tradicionais – é passado de geração em geração. Entre as lendas e mitos mais conhecidos do Brasil podemos citar os seguintes:

Boitatá – Representada por uma cobra de fogo que protege as matas e os animais e tem a capacidade de perseguir e matar aqueles que desrespeitam a natureza. Acredita-se que este mito é de origem indígena e que seja um dos primeiros do folclore brasileiro. Foram encontrados relatos do boitatá em cartas do padre jesuíta José de Anchieta, em 1560. Na região nordeste, o boitatá é conhecido como “fogo que corre”.

Boto – Acredita-se que a lenda do boto tenha surgido na região amazônica. Ele é representado por um homem jovem, bonito e charmoso que encanta mulheres em bailes e festas. Após a conquista, leva as jovens para a beira de um rio e as engravida. Antes de a madrugada chegar, ele mergulha nas águas do rio para transformar-se em um boto novamente. Por este motivo, a população ribeirinha costuma afirmar que o boto é o pai de todos os filhos de origem desconhecida.

Boiaçu – Cobra grande, também conhecida como “boiuçu”. No lendário amazônico há uma enorme variedade de estórias onde a cobra grande é a figura central, que vira canoas, interdita rios e ilumina as águas escuras com seus olhos de fogo. Uma das mais conhecidas é a dos irmãos gêmeos Honorato e Maria Caninana, nascidos na região do rio Trombetas, no Pará. O poema “Cobra Norato”, do poeta modernista Raul Bopp, ajudou a popularizar a lenda.

Curupira – Personagem travesso do folclore brasileiro, o Curupira é a representação de um menino com cabelos vermelhos, dentes verdes e pés virados para trás. A origem do nome é do tupi-guarani que significa “corpo de menino”. Considerado o protetor da fauna e da flora, o Curupira assobia e deixa pegadas com seus pés virados com o objetivo principal de enganar os exploradores e destruidores da natureza. Quando alguém desaparece nas matas, muitos habitantes do interior acreditam que é obra do Curupira.

Lobisomem – De origem europeia, a lenda do Lobisomem retrata um monstro violento com formas humanas e de lobo, que se alimenta de sangue. Acredita-se que quando uma mulher tem sete filhas e o oitavo filho é homem, esse último provavelmente será um Lobisomem. Outra versão sustenta que um homem foi atacado por um lobo numa noite de lua cheia e não morreu, porém desenvolveu a capacidade de transformar-se em lobo e atacar todo mundo que encontra pela frente. Noutras regiões, a lenda apresenta outras características, visto que o Lobisomem sempre se manifesta em crianças não batizadas. A transformação ocorre nas encruzilhadas em noites de lua cheia por volta da meia noite. Entretanto, ao amanhecer, ele torna-se novamente humano. Somente um tiro de bala de prata em seu coração seria capaz de matá-lo. Uma das variantes desta lenda na região Norte dá conta de que homens e mulheres se transformam em porcos nas noites de sexta-feira.

Mãe-D'água – Conhecida como “Yara” ou “Uiara”, a lenda da Mãe-D’água é de origem tupi e o nome significa “Senhora das Águas”. Esta personagem representa uma sereia belíssima que atrai os pescadores com suas doces canções a fim de matá-los. Antes de ser uma sereia, Yara era uma índia extremamente bela e inteligente que despertava muita inveja na tribo, inclusive de seus irmãos. Assim, com o intuito de acabarem com o problema, os irmãos resolveram matá-la, mas no final foi ela que acabau os matando. Como punição, os outros índios da tribo acorrentaram e lançaram Yara no encontro das águas dos rios Negro e Solimões. A partir daí ela se transformou em uma sereia com objetivo de encantar todos os homens que encontrar e leva-los para o seu reino no fundo do rio. Encontramos na mitologia universal um personagem muito parecido com a Mãe-D’água: a sereia. Este personagem tem o corpo metade de mulher e metade de peixe. Com seu canto atraente, ela também consegue encantar os homens e levá-los para o fundo das águas.

Corpo-seco – É uma espécie de assombração que fica assustando as pessoas nas estradas. Em vida, era um homem que foi muito malvado e só pensava em fazer coisas ruins, chegando a prejudicar e maltratar a própria mãe. Após sua morte, foi rejeitado pela terra e teve que viver como uma alma penada.

Pisadeira – É uma velha de chinelos que aparece nas madrugadas para pisar na barriga das pessoas, provocando a falta de ar. Dizem que costuma aparecer quando as pessoas vão dormir de estômago muito cheio.

Cuca – De origem portuguesa, a lenda da Cuca está associada muitas vezes com o “bicho papão”, ou seja, ela é uma personagem muito temida pelas crianças, pois reza a lenda que se trata de uma velha feia e malvada, com cara de jacaré que raramente dorme. Sua personagem está associada ao rapto de crianças desobedientes e que apresentam resistência para dormir. Por isso, a tradicional cantiga de ninar crianças expõe o seguinte trecho: “Nana neném que a Cuca vem pegar”.

Mula-sem-cabeça – Segundo a lenda, a mula sem cabeça é um monstro do folclore brasileiro que se manifesta quando uma mulher namora um padre e, por maldição, é transformada em mula. Bastante conhecida em todo o Brasil, esta personagem folclórica é representada, literalmente, por uma mula sem cabeça, que solta fogo pelo pescoço e tem como finalidade assustar pessoas e animais.

Mãe-de-ouro – Representada por uma bola de fogo que indica os locais onde se encontra jazidas de ouro. Também aparece em alguns mitos como sendo uma mulher luminosa que voa pelos ares. Em alguns locais do Brasil, toma a forma de uma mulher bonita que habita cavernas e, após atrair homens casados, os faz largar suas famílias.

Saci-Pererê – Nome de origem tupi-guarani, o Saci-pererê é uma das lendas brasileiras mais conhecidas. É representada por um menino negro que possui uma perna só, fuma cachimbo e usa um gorro vermelho, que lhe dá poderes mágicos. Muito brincalhão, o Saci se manifesta tal qual um redemoinho, vive aprontando travessuras e se diverte muito com isso. Adora espantar cavalos, queimar comida e acordar pessoas com gargalhadas. Embora o Saci-pererê seja o mais conhecido, existem três tipos de saci: o Pererê, o Trique e o Saçurá.

Comadre Florzinha – É uma fada pequena que vive nas florestas do Brasil. Vaidosa e maliciosa possui cabelos compridos e enfeitados com flores coloridas. Vive para proteger a fauna e a flora. Junto com suas irmãs costumam aplicar sustos e fazer travessuras com os caçadores e pessoas que tentam desmatar a floresta


Negrinho do Pastoreio – De origem afro-cristã e pertencente ao folclore do sul do País, o Negrinho do Pastoreio representa a história de um menino escravo que foi muito castigado pelo seu patrão. Um dia, quando foi pastorear os cavalos, acabou por perder um cavalo baio. Depois de ter sido martirizado violentamente pelo fazendeiro e jogado semimorto num formigueiro, o Negrinho do Pastoreio reapareceu sem marcas nenhuma pelo corpo, ao lado da Virgem Maria e montado no cavalo baio. Curioso notar que muitas vezes, as pessoas que perderam algum objeto, acendem uma vela e pedem para o Negrinho ajudá-los a recuperá-lo.

Além dos mitos e lendas, o folclore brasileiro apresenta uma grande diversidade cultural. Podemos também considerar como legítimas representações do nosso folclore os ritmos e danças folclóricas (quadrilhas, cirandas, carimbó, capoeira, frevo), comidas regionais típicas (canjica, tacacá, caruru, maniçoba, vatapá), músicas regionais (embolada, siriá, baião, xote, forró), encenações (marujada, bumba-meu-boi, congada, maracatu, cavalhada), representações artísticas (artesanato, confecção de rendas e cestas de palha, pinturas näif), brincadeiras e jogos infantis (trinta-e-um-alerta, boca-de-forno, macaca, barra-bandeira, garrafão), ditos populares (“isso é do tempo do Onça”, “aquilo é um caraxué!”), literatura de cordel, crendices e festas populares (carnaval, festa junina, Festa do Divino, Círio de Nazaré e Folia de Reis).

A palavra folclore foi utilizada pela primeira vez num artigo do arqueólogo William John Thoms, publicado no jornal londrino “O Ateneu”, em 22 de agosto de 1846 (por isso 22 de agosto é o dia do folclore). Ela é formada pelos termos de origem saxônica: “folk” que significa “povo” e “lore” que significa “saber”. Portanto o “folklore” é o saber do povo ou a sabedoria popular. No Brasil, a palavra adaptada tornou-se “folclore”.

Como todo mundo já sabe, o nosso folclore foi resultado da miscigenação de três povos (indígena, português e africano) e da influência dos imigrantes de várias partes do mundo. Por isso, nosso país tem uma tradição folclórica variada, rica e muito peculiar. Em cada região brasileira, o folclore apresenta semelhanças e diferenças.

Um grande estudioso do folclore nacional foi o já citado Luís da Câmara Cascudo, nascido em Natal, no Rio Grande do Norte em 1898 e autor de mais de 150 livros. Ainda hoje, a obra de Câmara Cascudo é uma referência imprescindível para se tratar do folclore, até porque diversas expressões folclóricas brasileiras por ele documentadas já desapareceram e não podem mais ser observadas. O folclore, em especial a partir do século 20, serviu de base para a produção da arte culta brasileira. Os exemplos estão presentes em todas as artes. O pintor ítalo-brasileiro Alfredo Volpi fez das bandeiras das festas juninas um elemento frequente de seus quadros e gravuras. O compositor fluminense Heitor Villa-Lobos aproveitou-se de temas do folclore em sua obra musical.

Na literatura, há no mínimo três autores de importância indiscutível que se utilizaram de elementos da cultura popular. O paulista Mário de Andrade, grande estudioso do folclore, escreveu sua obra-prima, “Macunaíma”, reunindo com olhar irônico e crítico inúmeras narrativas do folclore brasileiro. O mineiro João Guimarães Rosa, autor de “Grande Sertão: Veredas” – um clássico da literatura nacional – tematiza a vida do sertanejo e trabalha tanto elementos característicos de narrativas folclóricas, quanto a própria forma sertaneja de uso da língua portuguesa. Da mesma maneira, o paraibano Ariano Suassuna compôs uma ampla obra teatral baseada na tradição folclórica nordestina. Como exemplo, podem-se citar “O Auto da Compadecida” ou “A Pena e a Lei”, sem falar no monumental “Romance da Pedra do Reino”.


Convém lembrar que o folclore brasileiro – ligado ao universo rural, pois a industrialização do país é recente, em termos históricos – chegou a influenciar nossos meios de comunicação de massa. O ator e diretor Amácio Mazzaropi levou o caipira do interior paulista para as telas do cinema. O animador de programas de auditório Abelardo Chacrinha Barbosa fez enorme sucesso na TV utilizando-se elementos de festas populares do Nordeste, como as disputas entre cordões (o encarnado e o azul), que eram mediados por um velho, a quem Chacrinha personificava (O Velho Guerreiro). Nos meios de comunicação de massa, como o cinema, a estética dos circos mambembes que percorriam o interior do país também pode ser encontrada em produções cinematográficas inusitadas como os filmes de terror de José Mojica Marins, conhecido como Zé do Caixão.

A Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura) considera o folclore sinônimo de cultura popular na medida em que “representa a identidade social de uma comunidade por meio de suas criações culturais, coletivas ou individuais, sendo uma parte significativa da vida cultural de cada nação”. Sustenta também que o folclore não é um conhecimento “cristalizado”, embora tenha raízes nas tradições, que podem ser muito antigas, mas que se transforma a partir do contato entre as culturas distintas, oriundas das migrações, e através dos meios de comunicação, nos quais se inclui ultimamente a internet. Parte do trabalho da Unesco é orientar as comunidades para bem administrarem sua herança folclórica, observando que o progresso e as transformações provocam mudanças que tanto podem enriquecer uma cultura como destroçá-la definitivamente.

Foi para resgatar nosso folclore nativo que tive a iniciativa de organizar este livro, sob a orientação do saudoso artista plástico, antropólogo e escritor Moacir Andrade, presidente da Sociedade para a Defesa da História e das Tradições Populares do Amazonas, falecido em julho de 2016, e contando com a imprescindível colaboração dos livreiros Antônio Diniz e Simas Pessoa. Não é um trabalho acadêmico sobre o folclore. É um livro de recordações que tem como mote o folclore amazonense praticado em Manaus. Dito de outra forma, esta simplória antologia é apenas uma contribuição menor sobre o assunto e visa sobretudo resgatar tanto os nomes dos pioneiros na criação de grupos folclóricos em nossa cidade quanto os daqueles dirigentes abnegados que na atualidade continuam pegando o pião na unha para colocar seu grupo folclórico na rua. Espero sinceramente que esse pequeno objetivo tenha sido alcançado.

Mas por que este livro sobre o folclore manauara se chama dabacuri? Bem, o dabacuri é uma cerimônia ritualística milenar dos povos indígenas do Alto Rio Negro que envolve a troca de conhecimentos entre as tribos dessa localidade sobre culinária, danças, frutos, peixes, artefatos, casas ancestrais, alianças matrimoniais, ritos de passagens, criação da humanidade, dos passáros, dos animais, dos seres míticos, dos astros, das estrelas, dos rios e das matas, numa tentativa de preservar essas informações para as futuras gerações. Acredito que transformar a literatura oral de nossos folcloristas manauaras em uma pequena obra literária acessível a um número maior de pessoas está dentro desse espírito comunitário e preservacionista que sempre moveu os povos da floresta. Por essa ótica, dabacuri e literatura oral são os dois lados da mesma moeda.

Simão Pessoa