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quinta-feira, abril 30, 2020

Meu amigo Francisco Costa



Nunca imaginei que um dia estaria usando esse espaço poético e bem-humorado para fazer necrológio de amigos queridos. A pandemia do covid-19 tem sido uma desgraça sem fim. Na última segunda-feira perdi um amigo mais do que querido, uma amizade de 54 anos sem nunca termos travado uma mísera discussão sequer: o engenheiro civil Francisco Costa.

Das boas lembranças que guardo do sacana, uma manhã de domingo, sol quase a pino, ele passou lá em casa e avisou:

– Êi, seu Simão, eu vou levar o Simãozinho emprestado para me ajudar numa tarefa que só ele tem inteligência pra fazer...

Eu tinha 12 anos, o Chico Costa, uns 16. A tarefa? Afinar cerol de papagaio. Ainda não havia a casa do seu Chico Eletricista. Na época, aquilo era um terreno urbano da Dona Sila, mãe do Almir Português. Havia um poste de concreto no começo do terreno, no cruzamento das ruas Parintins e Borba, e outro poste praticamente em frente da nossa casa.

Chico havia esticado umas 800 jardas de linhas branca enlaçando os dois postes. Parecia um labirinto. Explicou a técnica:

– Eu vou passar o cerol grosso, na mão cheia, você vem atrás com os dedos polegar e indicador feito pinças, afinando o cerol. Não precisa botar muita pressão. Tu não é jumento, tu sabe do que estou falando! A parte mais difícil vai ser na linha que envolve o poste. Aí, você afina com a ponta das unhas, pro cerol passar por outro lado da linha. Se ficar só de um lado, é ali que vão nos cortar! Tu não é jumento, tu sabe do que estou falando!

De repente, estou envolvido sem querer em uma merda que nunca dei valor: empinar papagaios! Cumpri minha tarefa com estoicismo: indo e vindo em torno das linhas esticadas, acho que fizemos umas vinte viagens. Esperamos uma meia hora sentados embaixo de um pé de castanholeira que havia em frente de casa. Daí, ele foi lá e começou a enrolar a linha numa maçaroca.

Aí, voltou em casa e gritou lá pra dentro:

– Êi, seu Simão, estou devolvendo o Simãozinho! Não lhe disse que ele é foda?...

E foi embora com seu famão do Botafogo para infernizar a vida dos outros empinadores.


Muitos anos depois, em 1974, eu fazendo engenharia na Utam, ele se preparando para fazer engenharia civil na FUA, foi se queixar pra mim:

– Porra, Simãozinho, chamei um zé buceta para me ajudar a fazer um muro no quintal de casa e o vagabundo me sacaneou, falou que não era ajudante de pedreiro... Aí, no dia seguinte, me pediu pra pagar uma dose de cana pra ele no Bar do Aristides. Mandei tomar no cu! Não quer ganhar dinheiro trabalhando? Vá se foder... A porra desse nosso bairro só tem murrinhas, caralho!

Aí, ficando mais puto do que de costume:

– Murrinhas do Egito, carálio!... Esses vagabundos estão no planeta desde a construção das pirâmides...

Ri pra carálio. E falei:

– Isso é um bom nome para um time de futebol aqui da Caxuxa!

O resto é história.

Há cinco anos, num livro que estou escrevendo para complementar o “Cowboys Fora-da-Lei”, que nomeei de “Pai Simão & Outras Histórias”, fiz o texto abaixo:


DO lado oposto da Rua Borba, praticamente em frente da casa do Mário Adolfo, ficava a casa de Francisco (aka “Chico Cavalinho”, porque era gentil e atencioso como um quadrúpede com os poucos desafetos), Flávio (aka “Fábio”), Fernando (aka “Linguinha”, porque tinha o hábito de morder a língua quando ficava irritado), Graça e Glória Costa (aka “Gói”), localizada exatamente ao lado do Top Bar.

Dona Otília, mãe da galera, tinha uma loja de confecções no Mercadinho das Novidades, e o seu Zé Costa, pai dos moleques, foi um dos maiores intelectuais que conheci. Aliás, ele criou os cinco filhos vendendo livros espiritualistas e esotéricos de porta em porta e passou a vida inteira tentando catequizar eu e Mário Adolfo para entramos na Maçonaria. O fato de eu já ser filiado à Ordem Rosa Cruz não lhe dizia respeito. Ele queria me ver na Maçonaria, que julgava ser o começo de tudo. Alguns dos melhores livros que li na vida, me foram vendidos ou doados graciosamente por ele. Era um grande espírito de luz.

Chico, Fábio e Fernando eram viciados em papagaios de papel. Como nunca aprendi a “flechar”, jamais me interessei pela brincadeira. Eu gostava de ver as “tranças” no céu e apreciar a confecção dos papagaios – ofício que o Mário Adolfo, inutilmente, tentou me ensinar uma porção de vezes. Também gostava de passar cerol nas linhas, mas a afinação do cerol era sempre feita por algum especialista no assunto. Os três irmãos possuíam técnicas específicas para as tranças.

O Chico Costa era o mais abusado de todos. Ele passava cerol em 800 jardas de “linha um”, usava mais 400 jardas de linha branca, empinava o papagaio no céu até ele se perder de vista e, lá do alto, como se fosse um falcão peregrino procurando uma presa, embicava em direção ao solo, fazia uma rasante pra direita a menos de dois metros do chão e subia novamente em direção ao céu, cortando três, quatro, cinco papagaios de uma só vez, tal a velocidade da manobra. Suas vítimas preferidas eram os empinadores de papagaio da Praça 14.

O Fernando Linguinha gostava mais de “embolada”. Além de usar “linha dois zero”, as rabiolas de seus papagaios possuíam várias lâminas de gilete encastroadas em palitos de fósforos, distribuídas estrategicamente ao longo da mesma. Na época, os papagaios de “famão” gostavam de executar a proeza de “cortar e aparar”.

Exímio flechador, Fernando se aproximava dos papagaios adversários como quem não queria nada e deixava eles avançarem em direção a rabiola do seu papagaio para só então executar uma rápida manobra de evasão que, quase sempre, cortava a linha dos adversários com a rabiola.

Na maioria das vezes, entretanto, Fernando optava por embolar seu papagaio entre o peitoral e a rabiola do adversário. Era quando ele se transformava em uma verdadeira máquina humana de “colher linha”. Suas braçadas vigorosas alcançavam a velocidade de 78 rpm. O papagaio adversário vinha bater em sua mão. Aí, era só quebrar a linha do peitoral e ficar com o troféu.

O Fábio era um empinador de papagaios mais clássico, que gostava de trançar descaindo a sua linha por cima da linha adversária como se seu papagaio já houvesse “quedado”. Enquanto Chico e Fernando utilizavam papagaios de 1 m de altura, Fábio preferia os modelos menores (30 cm), mais velozes e fáceis de se manobrar. Ele também utilizava “linha oito”, mais fina que a “linha um”, que se transformava em uma verdadeira navalha Solingen depois que recebia o cerol.

A fabricação de cerol envolvia uma mão de obra federal. Primeiro, era preciso transformar cacos de vidro em pó, usando um pilão de ferro. Os vidros azuis de leite de magnésia de Philips eram os mais requisitados, só perdendo para as raríssimas lâmpadas fluorescentes e as indefectíveis bolas de árvore de Natal. Depois, o pó era coado em meias de mulher para retirar o xerém, os pedacinhos maiores. Finalmente, era preciso encontrar uma boa cola de madeira em tabletes e derretê-la em banho-maria para só então misturar com o pó de vidro. Os mais afoitos usavam pó de ferro (“linhaça”), mas este tipo de cerol tinha o dom de apodrecer a linha no dia seguinte.

Uma meia dúzia de vezes, eu auxiliei o Fábio nas “passadas de fios com a maçaroca”, porque era um dos melhores moleques da rua nesse quesito. Explico melhor. Antigamente, as linhas de transmissão de energia elétrica residencial ocupavam apenas um lado das ruas. As pessoas que moravam do outro lado da rua precisavam de uma fiação complementar para levar a energia dos postes existentes no lado oposto da rua até as suas residências. Assim, as ruas ficavam coalhadas de fiação aérea, o que dificultava enormemente a mobilidade dos empinadores de papagaio.

Para se deslocar, por exemplo, da Rua Parintins até a Rua Tefé, ou seja, apenas um quarteirão, era necessário passar por cima de mais de 30 fiações, já que cada casa demandava, no mínimo, dois fios (fase e neutro). Daí a importância do “passador de fios”. Enquanto o empinador ficava flechando o papagaio para empiná-lo o mais alto possível, o passador tinha de calcular mentalmente quantos metros de linha teria que descair para efetuar a manobra porque a maçaroca seria presa com um nó falso.

Aí, vinha a parte mais difícil da operação: lançar a maçaroca sobre os fios e pegá-la do outro lado no mesmo momento em que o empinador soltava a linha do papagaio. Às vezes, a maçaroca caía entre dois fios paralelos e a manobra precisava ser refeita ao contrário. Nosso recorde, meu e do Fábio, foi ir da Parintins até a Manicoré e depois voltar, sem que eu errasse uma única “passada”. Coisa de profissional.

2 comentários:

Edy disse...

Eu senti muito a partida do Chico. Me senti no dever moral de ir sepultá-lo . Não fui seu contemporâneo mas brinquei muito de papagaio com ele. E que bom saber dessas aventuras.
Simão Pessoa - O Escriba

Unknown disse...

Adorei saber as histórias do meu pai e tios 🥰 obrigada