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quarta-feira, fevereiro 14, 2007

As baladas de vida ou morte de Tanussi Cardoso




Marcello Rolemberg (*)


Há mais de duas décadas lidando magistralmente com versos, o poeta Tanussi Cardoso é um curioso paradoxo dentro da literatura brasileira: dono de uma das mais belas e respeitadas vozes poéticas do país, publicado nos Estados Unidos, Uruguai, Argentina e Portugal, detentor de vários prêmios literários e uma unanimidade no Rio de Janeiro – cidade onde nasceu e sempre morou –, ele é quase um desconhecido para o grande público.

Essa incoerência talvez possa ser explicada pelo fato de o poeta sempre ter preferido desfilar seus versos com sua fala mansa e pausada pelos inúmeros saraus literários cariocas – onde é sempre a principal atração – do que colocá-los em forma de livro.

Encontros de poetas e escritores são uma constante no Rio, uma espécie de happenings que não se multiplicam por outras cidades brasileiras. Por essa razão talvez faça sentido que sua última coletânea de poemas – “Beco sem Saída” – tenha sido lançada há uma década.

De 1991 para cá, contudo, Tanussi Cardoso leu muito, escreveu muito e acabou cedendo à tentação do livro. Com o lançamento recente pela Sete Letras de “Viagem em Torno De”, o poeta volta ao universo de papel e dá mais uma grande chance para que os leitores que não vão a saraus cariocas conheçam melhor a sua obra. Vale a pena.

Uma marca constante do trabalho de Tanussi é o seu lirismo à flor da pele, uma ternura que envolve as palavras e inocula paixão em cada verso que compõe, seja para falar de Humphrey Bogart – personagem de um de seus grandes sucessos em leituras no Rio – ou para tratar de assuntos mais áridos como a morte, um tema recorrente em “Viagem em Torno De”.

O poeta, quem quer que seja ele, é um ser apaixonado por natureza. Tem de ser. E Tanussi Cardoso não camufla o sentimento, não maquia as tensões, não baixa os olhos. O resultado é um livro denso mas sutil, ao mesmo tempo forte e terno, como o próprio poeta. E eivado de esperanças mesmo diante do fim, apesar de, como escreveu certa vez Clarice Lispector.

Uma prova disso é o poema “As Mortes”: “Quando o primeiro amor morreu/ eu disse: morri/ quando meu pai se foi/coração descontrolado/ eu disse: morri/ quando as irmãs mortas/ a tia morta/ eu disse: morri/ depois, a avó do Norte/ os amigos da sorte/ os primos perdidos/ o pequinês, o siamês/ morri, morri/ estou vivo/ a poesia pulsa/ a natureza explode/ o amor me beija na boca/ um Deus insiste que sim/ sei não/ acho que só vou/ morrer/ depois de mim”

Talvez esses versos sejam uma síntese, na verdade, de uma parcela significativa do trabalho atual de Tanussi, que desbundou nos anos 70, fez poesia marginal e que desde começo da década de 80 vem construindo um sólido castelo poético.

Este é um trabalho de poeta que chega à maturidade, tem consciência plena de sua finitude – e de todos os que o cercam –, passeia de mãos dadas com o limite mas se recusa a colocar um ponto final, no que quer que seja. Nem nos versos, nem na vida. Colocá-lo para que?

“Neste Viagem em Torno De, Tanussi Cardoso muda o tom. O que antes fora oswaldianamente irônico, vira elegíaco; o que era o circo da paixão, fica solene; reflexivo. É o poeta diante do nada. Frente ao semblante da morte e seu olhar inconfundível”, escreve o também poeta Salgado Maranhão na apresentação do volume.

Os poemas de Tanussi Cardoso, por mais que tratem de dores profundas, de perdas irreparáveis – todas as perdas são irreparáveis para um poeta –, não se travestem de catarse, de dor.

Eles não gritam. Sussurram. Antes de vislumbrar o fim, os versos apontam novos caminhos, fazendo o poeta rever e discutir a própria vida. E Tanussi Cardoso, que não é um homem egoísta, convida o leitor para essa discussão e essa revisão vital.

Esse processo de interiorização, de esgarçar a alma e de romper o casulo se torna claro na própria divisão de Viagem em Torno De. As três partes que compõem o volume – Livro dos Elos, Livro das Impressões e Livro do Acaso – retratam a peregrinação particular do poeta, uma viagem de visitação a morte, à vida e à poesia.

Cada uma dessas subdivisões tem sua dicção própria, mas sempre acompanhadas por uma lírica visceral. E com uma insistente esperança no recomeçar do ciclo da vida.

Como em “Carta Aberta aos Bruxos”, poema que abre o Livro das Impressões e que remete a um certo diálogo com os versos “não sou alegre nem sou triste/ Sou poeta”, de Cecília Meirelles, mas com um outro fervor, uma outra semântica: “(...) Estou em paz amor/ Como os bruxos costumam estar/ se te disser que estou triste ou alegre/ será apenas detalhe de uma lâmina que corta/ será apenas o fio da faca/ que enfeita faces para ceifar/ :Palavras restando inúteis querendo sangrar/ Absolutamente te digo:/ não estou alegre nem triste – estou em paz/ Que é o outro lado do eclipse/ Que não vejo/ Mas que sutilmente, amor/ Posso tocar”

Esse “tocar” o lado oculto do eclipse parece ser, no final das contas, a grande missão de Tanussi Cardoso – espreitar o desconhecido, olhar nos olhos do indizível, tangenciar palavras e emoções e, depois de muita análise, mergulhar de cabeça em tudo “como um cego a flutuar no escuro”, com ele mesmo escreveu em “Das Configurações”. Para, ao voltar à tona, transformar a tudo em belos versos, em poesia vigorosa e atenta.

Para fustigar os medos, para dissipar a névoa. Sempre com lirismo, sempre com amor. E uma enorme crença na retomada de caminhos. Por que o poeta, se é um homem que duvida, (in)coerentemente também é um homem que crê. “Deve haver poesia no dedo de Deus”, diz ele. E certamente há algum deus na poesia de Tanussi Cardoso.


(*) MARCELLO ROLLEMBERG é jornalista e escritor

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