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sábado, outubro 12, 2013

A sorte e o privilégio de ter encontrado Vinicius e Sabino


Vinicius no show “Só por amor”, no Teatro Poeira

Maria Lucia Rangel

Além de grandes amigos, Vinicius de Moraes e Fernando Sabino tinham muitos gostos em comum. E adoravam música. Vinicius ia da música brasileira à americana. Fernando era apaixonado por jazz. De vez em quando viajava para curtir o festival de jazz de Nova Orleans.

Tanto o poeta como o escritor fariam anos neste mês de outubro. E ambos completariam datas redondas: Vinicius, 100 anos. Fernando, 90. Tive a sorte de ser amiga dos dois. Graças ao meu pai, Lucio Rangel, também um apaixonado por música, e a minha profissão de jornalista. Entrevistei-os várias vezes.

Fernando conheci primeiro. Eu tinha 15 anos e estava com meu pai no bar Zepelim, em Ipanema, quando ele chegou com Tom Jobim. Era fim de tarde e, depois de alguns uísques, Tom levou-nos para sua casa. Era uma casa mesmo, também em Ipanema. Lá ficamos até bem tarde, com Tom ao piano e os outros dois bebendo e falando de jazz e literatura.

Fernando gostava tanto de jazz que aprendeu a tocar bateria. De vez em quando telefonava avisando que tocaria no Hotel Marina. Lá ia eu ouvi-lo. Aliás, Fernando era bom de ouvir. Falava muito, contava casos saborosos e divertidos.

Além dos bares, encontrava-o muito na cobertura de Rubem Braga e nos lançamentos dos livros da editora Sabiá e, depois, editora do Autor. Apesar de gostar muito de ambos, com Vinicius foi uma amizade diferente.

Não lembro exatamente quanto começaram minhas conversas esotéricas com Vinicius de Moraes. Aconteciam sempre depois das entrevistas para o Caderno B, do Jornal do Brasil, onde eu trabalhei nos anos 1970. Ele na banheira cheia de espuma e, dependendo da hora, com um copo de uísque numa mão e um cigarro na outra. Eu, sentada num banco baixinho ao lado.

Ele dava uma meia pausa e introduzia o assunto: “Sabe que o fulano me apareceu?”. Fulano podia ser Antonio Maria ou Sérgio Porto, ambos mortos havia pouco tempo. E por “aparecer”, que fique bem claro, Vinicius sentia uma percepção daquela pessoa através de um copo que caía sozinho, uma luz que se apagava ou algo assim.

A história mais impressionante aconteceu durante a Segunda Guerra, ele ainda casado com Tati e morando no Leblon. Acordou de madrugada com o quarto todo tremendo. Pensou ser uma ressaca do mar. Levantou-se pé ante pé para não acordar a mulher, foi até a sala e deparou-se com um mar calmíssimo.

Voltou para a cama, agora munido de uma folha de papel e um lápis, sentou-se no escuro e sentiu sua mão riscando o papel. Riscou, riscou e terminou como se estivesse assinando algo. O quarto então parou de tremer.

Ele acendeu a luz e deparou-se com um desenho de seu amigo Carlos Scliar, assinado pelo artista. Tento agora escrever suas exatas palavras:

Fiquei tão triste, sabe? Me deu uma fossa! O Scliar era pracinha e estava na Itália. Meu primeiro pensamento foi: Scliar morreu e está me avisando. Esperei o dia clarear e fui para o Amarelinho [bar na Cinelândia onde os jornalistas se reuniam]. Dali a pouco um deles chegou com a notícia: a mãe do Scliar tinha morrido durante a madrugada no Rio Grande do Sul. Foi um alívio! Minha irmã guardou esse desenho.

Anos depois, um grupo de jovens foi conhecer Ouro Preto ciceroneados pelo poeta: Vera Hime, na época namorada de Vinicius, Wanda Sá com o namorado e arquiteto Manoel Ribeiro, Dori Caymmi e a mulher, Ana Beatriz, e eu. Tive oportunidade, então, de constatar como Vinicius “via” um morto. Todos nós “vimos” com ele.

Saímos do Rio para Belo Horizonte no trem noturno. E como era praxe com Vinicius, passamos a noite toda no vagão-restaurante bebendo e conversando. Em plena ditadura – era 1968 – levamos uma dura, ainda na estação, por conta de um beijo que Wanda deu no namorado Manoel.

Vinicius quis encarar o coronel “em nome do amor”, mas a turma do deixa-disso conseguiu dissuadi-lo.

Dois táxis nos levaram da estação mineira à casa de Eloy Heraldo Lima, médico de Vinicius e de Fernando Sabino, para um café da manhã. De lá, seguimos nos táxis para Ouro Preto.

Chegamos com a cidade repleta de jovens, em pleno festival de inverno. Vinicius e Dori se hospedaram na Pousada do Chico Rey. O belo sobrado ficava bem no centro da cidade e era frequentado por celebridades, como Zélia e Jorge Amado, Elizabeth Bishop, Pablo Neruda, o pintor Carlos Scliar. Até Sartre e Simone de Beauvoir passaram por lá.

Bem ao lado da pousada ficava a casa de Rodrigo Mello Franco de Andrade, pai do cineasta Joaquim Pedro e na época diretor do SPHAN (Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional). Muito amigo de Vinicius, cedeu a casa aos mais jovens: Wanda, Manoel e eu. Passávamos o dia juntos ou passeando pela cidade com os jovens mineiros atrás de Vinicius.

Uma tarde, depois do almoço, somente nosso grupo, sentados numa mesa redonda diante da lareira, embalados pelo uísque, começamos a cantar ao som dos violões de Wanda, Dori e Vinicius. O dia foi caindo, a sala escurecendo aos poucos, iluminada apenas pelas chamas de lareira. E o assunto caiu em Dolores Duran.

Vinicius lembrou que moraram no mesmo prédio e não era raro ela bater em sua porta de madrugada com crise de depressão. E, claro, começamos a cantar músicas de Dolores. O violão passava de mão em mão, cada um lembrando uma canção. Foi aí que “vimos” Dolores.

Por acaso, eu tinha atarraxado a tampa da garrafa de uísque. De repente, no meio de uma música, a tampa pulou alto e pousou na mão de Vinicius. “Saravá”, gritou Wanda, seguida por todos. Ela preparou um uísque para Dolores, colocou na mesa e continuamos cantando suas composições, agora com sua presença.

Vinicius já era muito amigo de meu pai quando o conheci. Cursaram Direito juntos e partilhavam o gosto por literatura francesa, música brasileira, jazz e uísque. Tenho certeza ter sido este o motivo de não terem levado adiante o projeto de uma enciclopédia da música popular assinada pelos dois.

Foi em Petrópolis que conversamos pela primeira vez, na antiga Confeitaria Copacabana, ele casado com Lucinha Proença. Nesta época me convidou para um show que daria no ginásio da PUC, no Rio. E surpreendeu Edu Lobo ao chamá-lo ao palco. Foi a primeira vez que Edu se apresentou em público.

E me surpreendeu também. Ao entrar no ginásio ele já estava no palco e me acenou de longe. Tive que enfrentar os olhares de todos os estudantes.

Quando ele se casou com Nelita, a cobertura em que moravam no Jardim Botânico estava sempre repleta de jovens. E as festas eram memoráveis, só com os amigos mais chegados, como Tonia Carrero e César Thedim, Fernando Sabino, Wanda Sá, Rubem Braga e os filhos com namorados e namoradas.

Quando se separaram, Nelita continuou no apartamento. Um dia Vinicius me telefonou pedindo um favor: “Lucinha, será que você pode pedir à Nelita para me dar meu retrato feito pelo Portinari?”

Na mesma hora Nelita tirou o quadro da parede e me entregou. Saí com a tela sem qualquer proteção, colocada no chão do meu fusca. Hoje o quadro está na casa de sua filha Suzana.


Francis Hime, Dori Caymmi, Vinicius e Wanda Sá em “Só por amor”

Petrópolis era uma cidade que Vinicius adorava. A casa de Cícero Leuenroth, publicitário e pai de Olivia Hime, estava sempre aberta aos amigos da filha. O poeta às vezes chegava de táxi, sem avisar, dizendo que dormiria na “vaga”. Se alguém acordava mais cedo ele corria para a cama desocupada e tirava um cochilo.

Numa madrugada de 1971 fui dormir e deixei Vinicius e Toquinho na sala. Acordei no meio da madrugada com os dois entrando quarto adentro e me entregando um copo de uísque.

Eufóricos, sentaram-se na minha cama, Toquinho deu os primeiros acordes e começaram a cantar a música que tinham acabado de compor, “Tomara”. Foi uma alegria. Repetiram umas dez vezes, felizes com a nova parceria.

Foi em Petrópolis também, nesta mesma casa, que Vinicius nos introduziu à gnomonia, invenção de Jaime Ovalle, intelectual mais velho, autor de “Azulão” e amigo de todo o grupo de Vinicius e Fernando Sabino.

O poeta se referia à gnomonia como classificação das pessoas. E explicou o que significava ser pará, dantas, querniano, onésimo ou mozarlesco.

Os parás são indivíduos extrovertidos, ágeis, que aonde chegam vencem. O nome é porque geralmente vinham do Norte. Mas o poeta gostava de dizer que “os parás eram quase parando”.

Os dantas pouco ligam para o sucesso material. São pessoas que vivem ou tentam viver em estado de pureza.

Os quernianos são os de mais fácil identificação: impetuosos, impulsivos e estouvados. Vinicius dava como exemplo o homem que chuta a barriga da mulher grávida e pede perdão de joelhos.

Já os mozarlescos são sentimentais, choram à toa, têm boa índole. Charles Chaplin era querniano mas Carlitos era mozarlesco, ensinava Vinicius. Para nós era uma private joke.

Se estávamos numa reunião cercados de gente, Vinicius definia alguém presente através da gnomonia e ríamos muito. Um dia ele decidiu definir objetos. E adorou descobrir que o telefone era querniano.

Amoroso, gostava de contar histórias e ensinar aos jovens. Eu me lembro dele discorrendo sobre como escovar os dentes: “Escovem sempre a língua e o céu da boca para não terem mau hálito”.

Sua sensibilidade foi mais longe ainda ao detectar que eu andava com problemas: “Lucinha, você não acha que está precisando de uma psicoterapiazinha?”. Marcou então uma hora pra mim com um psicanalista amigo dele.

Ensinava também muita diversão. Quando fez o show “Só por amor” no Teatro Poeira, na praça General Osório, em Ipanema, acompanhado por Francis Hime ao piano, Dori Caymmi no violão e Wanda Sá cantando, nos levava depois a um bar na esquina da praça para oferecer caipirinha, bebida que ninguém conhecia até então.

Poderia continuar falando de Vinicius por muito tempo, como quando conheceu a cantora Maria Creuza e me fez ficar em sua casa para conhecê-la também, ou quando se apaixonou por Gesse e perdeu o medo de avião, apresentado que foi à Mãe Menininha, ou quando apanhou de uma ex-mulher e ficou com a virilha toda ferida.

Mas prefiro terminar com a dedicatória que fez numa primeira edição, rara, do livro “A casa”:

Para minha Lucinha querida, com A Casa, o poeta e tudo o que, de amor e carinho eles comportam; e o beijo mais amigo do Vinicius.


(*) Maria Lucia Rangel é jornalista.

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