Auto-retrato
feito especialmente para este blog
Morris
Kachani
Encerrando
o ciclo virtuoso de entrevistas deste blog, decidi visitar a
cartunista Laerte em sua agradável casinha no Butantã, para
papearmos sobre Charlie Hebdo e os tenebrosos acontecimentos de
Paris.
Como
se sabe, Laerte é uma das maiores cartunistas do Brasil. Personagens
suas como os Piratas do Tietê entraram para a história. Suas tiras,
que pelo menos para mim são as mais inspiradas, continuam sendo
publicadas diariamente na Folha de S. Paulo.
Por
conta das opiniões que andou divulgando a respeito do atentado,
Laerte foi ameaçada no facebook e teve que lidar com comentários do
tipo, “não deviam ter matado o Glauco. Mataram o cartunista
errado”.
De
uns tempos pra cá Laerte se percebeu como uma pessoa transgênera e
me recebeu, muito bem por sinal, acompanhada de suas duas gatas,
vestindo saia e blusa, havaianas rosas e as unhas feitas pintadas de
vermelho. A entrevista ocorreu em seu estúdio, entre pilhas de
livros, algumas contas a pagar, um computador turbinado e a boa e
velha prancheta de desenhos.
Laerte
estará presente amanhã no ato em solidariedade aos colegas do
Charlie Hebdo, que está sendo organizado pela secretaria de direitos
humanos, sindicato dos jornalistas e entidades de cartunistas. A
partir das 11 hs, em frente à Praça das Artes, no Centro.
SOBRE
O BLOG – é com um certo aperto no coração mas de cabeça
erguida que anuncio o fim das atividades deste blog. Queria agradecer
primeiramente a Folha e o UOL, que me deram suporte e abriram espaço
para que pudesse desenvolver um trabalho independente e autoral,
tendo como objeto a produção de entrevistas longas, com espaço de
sobra para a reflexão, com personalidades das mais diversas áreas.
Foram
dezenas delas. Romário, Jean Willys, Marcelo Freixo. Fernando
Meirelles, Marcelo Tas. Guilherme Boulos (MTST), Pablo Capilé, MPL.
Maria Rita Kehl, Marcio Pochmann. Chacal, Gerald Thomas. Bela Gil. E
outros tantos que ajudaram a manter este blog na linha de frente do
noticiário com ideias inspiradoras ou polêmicas.
Também
queria agradecer Tracy Segal, intrépida atriz carioca que com seu
repertório e sensibilidade se tornou parceira frequente nas
entrevistas e na concepção do blog.
Por
fim, e principalmente, a audiência que demonstrou interesse e fôlego
em ler e comentar entrevistas extensas e mais aprofundadas que
chegaram a durar mais que três horas.
A
todos vocês, um excelente 2015. E para quem quiser continuar
acompanhando as ‘kachanices’ deste blogueiro, é ligar a
televisão nos sábados à tarde. A gente se encontra no Caldeirão
do Huck!!
Um grande abraço, Kachani.
Qual
a influência do humor praticado pelo CH em sua vida?
Pra
mim pessoalmente fez parte das informações do final dos anos 60 que
me convenceram de que era isso que eu queria fazer.
Nesse
final dos anos 60 essas coisas todas, CH, anarquista e porra louca
francesa, a contracultura americana, a porra louquice californiana e
o Quino, mais essa combinação com o Pasquim, foi o que forjou a
gente.
Muitos
muçulmanos relataram um choque cultural, com a charge sobre o
profeta.
Acho
que no Brasil nenhuma dessas capas da Charlie Hebdo teria sido feita.
A gente não faria nem Family Guy, a gente não faria nem o South
Park, nem Simpsons a gente faria, porque humor tem a ver com a
cultura do país. Humor é um vínculo com a população local.
O
Charles Hebdo está na França, estão falando com uma população de
porra loucas que se julgou durante séculos dona cultural do mundo, e
até hoje se acha. Estranham quando você não fala francês.
Wolinski não falava uma palavra de inglês ou espanhol.
E
por que o Brasil não seria capaz de produzir as capas da Charlie
Hebdo?
A
formação cultural é outra, tem a ver com compromissos, arranjos de
acomodação. Nunca se praticou no Brasil o debate claro. As pessoas
tendem, no cotidiano, a acomodar posições, mais que debater ideias.
No Brasil o debate vira briga em 2 segundos.
Não
que no Brasil não se fale porra louquices ou se deixe de fazer humor
agressivo. Mas temo que no Brasil esse tipo de humor só aconteça
com pessoas que claramente não têm poder. Chutar cachorro frágil.
Digo isso porque lembro de várias situações em que o Danilo
Gentili voltou atrás na TV e pediu desculpas: para a comunidade
judaica, para a Preta Gil – ele morde e assopra. Aqui existe um
negócio que é o respeito a “otoridade”, que é um fato.
E
o Pasquim?
Tinha
a anarquia e um modo de lidar, mas não sei se iriam tão longe.
Foram bastante agressivos em várias situações, mas o alvo
principal era a ditadura. A França do Charlie Hebdo existia em um
contexto em que não tinha ditadura fazia tempo. De Gaulle já estava
nos estertores quando essa linguagem começou.
O
Porta dos Fundos também faz bastante gozação. Houve bastante
reclamação mas eles não pararam, não foram bloqueados. Sinal de
que comunidade religiosa talvez não seja tão poderosa por aqui
quanto a gente pensa.
E
teve o caso do Rafinha Bastos.
Aí
não tem a ver com liberdade de expressão. Tem a ver com o papel
subalterno da mulher. Wanessa Camargo não abriu a boca durante todo
o processo, que foi movido até pelo feto dela. O autor era o marido
dela, era uma briga de homem.
Uma
briga idiota, que podia ser respondida com um simples “Rafinha,
cresça e apareça”. Mas não, virou um processo porque a honra do
marido foi ultrajada. E era um cara rico. Uma coisa de poder
econômico e de poder machista que envolveu o Rafinha. Acho a piada
idiota mas fiquei do lado do Rafinha.
Qualquer
tipo de piada é válida no final das contas?
Hugo
Possolo falou uma coisa linda. Você pode fazer piada de qualquer
coisa, o que importa é saber de que lado da piada você está. Acho
isso muito profundo, porque mostra que toda piada é ideológica, não
existe piada só piada. Olha as capas do CH: não são só piada, são
declarações, é um discurso ideológico, violento, agressivo, muito
engraçado também.
A
indignação com a charge de Maomé tem razão de ser?
Maomé
apareceu pelado de quatro com estrela no cu. Os caras fizeram coisas…
a gente não faria isso nunca. Eu não sei o que eu faria
pessoalmente se fosse editor do CH. Por muito menos eu caguei nas
calças na época do ‘Balão’ em 72. Era um fanzine, Paulo Caruso
fez uma história linda, de uma mulher no parque que não queria dar
pra ele, uma história linda e engraçada, e eu caguei nas calças.
Pensei: meu Deus isso vai atrair a repressão.
É
saudável existir um CH para a sociedade.
Não
só saudável. É significativo que ele seja francês. Na Inglaterra
tem uma liberdade de expressão parecida, mas eles não fariam isso.
O humor britânico é diferente. Monty Python fez “ A vida de
Brian” que mexe com judaísmo, com religião e um monte de coisa, é
violentíssimo também, mas tem essa elegância.
Isso
tudo me faz pensar sobre as construções teóricas sobre o humor.
Em
primeiro lugar, que o humor é humano, não existe humor que
ridicularize coisas ou animais. É sempre humano. Em segundo lugar, é
sempre grupal. Não existe humor produzido nem por um indivíduo nem
para um indivíduo. Terceira coisa é algo que Bergson falava, que
acho interessante, que nunca consegui apreender totalmente, é a
ideia de que o alvo da ação humorística é o momento em que o ser
humano deixa de ser humano, quando ele age mecanicamente. Quando se
coisifica.
Humor
e preconceito se cruzam?
Muitas
vezes, porque quem faz a piada precisa contar com a sintonia do
público. Se você entra com uma informação polêmica, que é nova,
você não obtém risadas, obtém estranhamento, agressividade,
estupor. Quando os caras invadem a redação do CH não é piada,
estão produzindo uma tragédia e nossa reação não é rir. Agora,
se alguém atirar sapato na cara do Bush é muito engraçado.
Fiz
uma historinha com o Alzheimer kid que adorei na época, um sujeito
saindo correndo na cidade avisando que kid veio pra matar. Ele veio
pra matar mas não lembrava quem. É engraçado mas um monte gente
reclamou, Alzheimer é uma tragédia.
Tem
como fazer humor sem isso?
Renato
Aragão disse em entrevista que no seu tempo viado e preto não
reclamavam quando se fazia piada sobre eles. Não tinha dor? Tinha.
Mas socialmente não eram grupos empoderados. Tinham que ser
cúmplices das humilhações que estavam sofrendo.
Um
humor que desse vazão às ideias de Bolsonaro por exemplo, é
legítimo em sua opinião?
Tem
o Danilo Gentili por exemplo. É legítimo que exista esse tipo de
humor. Mas ele tem que ser criticado, enfrentado. Faz parte de um
pensamento que tem que ser enfrentado.
O
Gentili faz piada que humilha as pessoas e as conduz a uma situação
de perda, como no caso da doadora de leite que ele chamou de vaca e
coisas piores possíveis – ela foi ridicularizada em sua cidade,
não podia sair na rua, entrou em depressão.
Os
fundamentalistas islâmicos também querem enfrentar o humor, só que
pegando pesado em armas.
O
objetivo real não é enfrentar o ataque humorístico, o objetivo
real é político. O objetivo não era atacar a liberdade expressão.
Acho que estão cagando pra liberdade expressão.
Você
concorda com a colocação, de que o atentado ao Charles Hebdo foi o
“11 de setembro da liberdade de expressão”?
Não
gosto, acho tola e apressada. Acho que o que foi atacado não foi a
liberdade de expressão. É uma tática para um jogo político mais
complexo e perigoso. O jihadismo não tem a pretensão de controlar a
liberdade de expressão na França. Este é um traço que vem desde a
Comuna de Paris.
Não
houve ataque à liberdade de expressão?
Houve
um ataque à liberdade de expressão, mas não é este o objetivo
estratégico. Por que não atacam a direita anti-islâmica? Porque
não interessa. Querem criar uma confusão que visa comprometer todo
o sistema. Se atacassem só os fascistas seria uma espécie de
limpeza, que até interessaria (risos). Mas o que os terroristas
querem é movimentar a opinião massiva. Eles sabem que o sentimento
xenófobo vai se exacerbar, e isso pode gerar políticas militaristas
de intervenção no Oriente Médio – isso tudo interessa ao Estado
Islâmico, um grupo que não está ligado à idéia de construir um
Estado, está ligado em construir guerra.
Por
que os ataques contra o fascismo não acontecem?
É
improdutivo dentro do ponto vista da tática de gerar o terror, a
confusão é o que interessa, o irracionalismo. O que embasa o desejo
terrorista não é uma construção racional de um coletivo árabe de
uma liberdade de expressão, a ideia é outra, de propor uma ideia de
guerra jihadista contra o mundo. É uma ideia louca, que é
alimentada por Bushes da vida, Olavos de Carvalho da vida. Tentar
construir a ideia de um choque de culturas, onde um precisa
prevalecer dentro dessa lógica. ‘O que deve prevalecer é o nosso
lado, precisamos destruir o outro’.
Qual
sua conclusão sobre o atentado ao Charlie Hebdo?
Não
existe ainda, tenho procurado ligar os pontos. É aterrorizante o
suficiente para abalar as convicções da gente. Agora quais
convicções, não sei. De princípio tenho visto que nas exibições
de força no facebook, as pessoas se aferram às posições delas e
fazem trincheiras de onde atiram.
Tenho
tentado entender fora da dor e do sentimento de perda, pois amava e
admirava o CH, tento entender politicamente o que está acontecendo.
Começam os ataques às mesquitas e restaurantes árabes, ou aos
minimercados judaicos… Isso que vai gerar, é um padrão estimulado
por grupos de direita que querem construir uma política de exclusão
dentro da Europa.
E
sobre os acontecimentos de hoje?
A
morte dos irmãos? Não tenho o que comentar, sério. Acho que
continua em marcha o projeto de irracionalismo.
Como
assim?
11/9
salvou a vida do Bush, um político medíocre e desprestigiado que
vinha de uma eleição contestada. Foi transformado em herói e
abraçou as táticas militaristas e intervencionistas.
Penso
porque esses fdp fizeram isso. É que no final das contas o
fundamentalismo e os grupos de ultra-direita xenófobos se alimentam.
Foram feitos um para o outro. Haja entendimento real ou não, na
prática a porra louquice atende ao clamor da porra louquice.
Mas
não sei isso é coisa de malucos. Pode ser um jogo muito mais frio
do que a gente pensa, e é isso que me aterroriza – ver que não é
maluquice. Esse jogo frio pode envolver dinheiro, poder político e
controle militar.
Consegue
associar este atentado a um fato político da história brasileira?
No
Brasil as pessoas foram presas, matou-se gente, pessoas ficaram
acuadas. Mas a reação historicamente determinante à ocupação
ditatorial se deu quando mataram um jornalista. Na mesma ocasião
Manoel Fiel Filho, militante ativista operário foi morto. Todo mundo
se comoveu mas não foi decisivo. Decisivo foi terem matado Vladimir
Herzog, que era jornalista. Isso foi importantíssimo no jogo
cultural que a ditadura estava tentando fazer naquele momento. Hoje
sabemos que houve uma tentativa de golpe dentro do golpe, da linha
dura, que foi frustrado porque eles foram mais longe do que podiam.
Ao mesmo tempo podiam ir menos longe? A lógica deles é de montar
canastra. Era o jeito que sabiam jogar.
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