Carro-chefe
do Clube dos Fenianos no Carnaval de 1934
A
tela pequena dos televisores tem a capacidade mágica de
conter o mundo inteiro, ou pelo menos os acontecimentos maiores que
ocorram em seus quatro cantos. E quem, através dela, loiro nórdico,
negro africano, moreno europeu, seja lá de que raça for, em
qualquer dos tais quatro cantos, sentar-se em sua poltrona e
encantar-se com o multicolorido espetáculo que é o carnaval, jamais
imaginará o que existe por trás de tudo aquilo.
Os
passos que foram dados, as culturas que se entrelaçaram, os gêneros
musicais que se somaram, as raças humanas que se caldearam, tudo o
que foi necessário para que, ao longo de anos, o resultado
explodisse a cada fevereiro em milhões de pequenas telas, ao redor
do globo, e em milhares de olhos ávidos e atentos, dirigidos para as
arquibancadas do Sambódromo do Rio de Janeiro.
Antes
da Mangueira, do Salgueiro, da Portela, do Império Serrano e de
tantas outras bandeiras do samba tingirem o asfalto carioca de cores,
melodias, harmonias, ritmos e poesia, muita coisa aconteceu na cidade
do Rio de Janeiro, preparando a festa maior.
As
grandes sociedades, precursoras, surgiram na metade do século 19 e
se mantiveram, por quase cem anos, famosas pelas disputas
carnavalescas nos desfiles – chamados pomposamente de préstitos –,
com o Clube dos Fenianos, Clube dos Democráticos, Clube Tenentes do
Diabo, Clube dos Pierrôs da Caverna, entre tantos outros, querendo
ter o maior, o melhor e o mais luxuoso carro alegórico do ano.
No
ambiente mais popular, os desfiles eram feitos nos subúrbios pelos
blocos, cordões e ranchos, sem que isso diminuísse a animação dos
participantes. Destas variadas maneiras de desfiles carnavalescos se
originou o atual, o das escolas de samba, que encanta o mundo.
“Ah!
Naqueles bons tempos antigos, nós, da classe alta, íamos para a rua
divertir o povo!”. O desabafo de um folião do início do século
20, participante dos desfiles das grandes sociedades, retrata como se
brincava o carnaval então.
Uma
barreira social dividia a folia entre o Grande Carnaval e o Pequeno
Carnaval: o primeiro, uma passeata das elites, em que o povo se
limitava a assistir e a aplaudir, e o segundo, com intensa
participação popular. Em ambos, a presença de ritmos precursores
do samba garantia a alegria e a folia.
No
final dos anos 1910, o samba começa a se firmar como gênero
musical, elemento que se tornaria indispensável ao carnaval.
Enquanto isso não acontecia, a folia nas ruas tinha ainda um pouco
da falta de sutileza do Entrudo e a beleza dos carros alegóricos das
grandes sociedades, que desfilavam com músicas próprias, críticas
ácidas ou bem-humoradas ao momento político ou social brasileiro.
As
primeiras organizações carnavalescas, desde sua origem na metade do
século 19, eram frequentadas por brancos de classe média alta e da
aristocracia.
Criadas
como ponto de reunião de prósperos comerciantes, grandes
banqueiros, ricos fazendeiros e bem-sucedidos profissionais liberais,
com leve ar de clube masculino inglês, ali se bebia, jogavam-se
cartas e discutiam-se negócios.
A
preparação e realização dos desfiles carnavalescos eram apenas
parte de suas atividades, mesmo que apresentadas como a principal.
Funções
políticas, filantrópicas e culturais eram importantes, tendo alguns
clubes e sociedades participado ativamente de movimentos como a
libertação dos escravos ou a campanha republicana, além de todos
eles destinarem parte de suas arrecadações às instituições de
caridade, o que não impediu que grandes nomes da história
brasileira se tornassem eméritos foliões no carnaval.
José
do Patrocínio, o maior de todos os abolicionistas, era um dos
destacados Tenentes do Diabo, uma das grandes sociedades. Podem ser
lembrados também, segundo a historiadora Eneida, os romancistas José
de Alencar e Manuel Antônio de Almeida, integrantes do Congresso das
Sumidades Carnavalescas, surgido em 1854, o primeiro grupo denominado
“sociedade”.
Ao
lado dos Tenentes, esperavam-se todos os anos os Democráticos, os
Fenianos, os Pierrôs das Cavernas. Com suas grandes alegorias,
lindas mulheres e, sobre elas, ricas fantasias, eram aplaudidos pelo
povo que se acotovelava nas calçadas, para ver o préstito que os
jornais anunciavam dias antes.
Mas
o carnaval das grandes sociedades não ficava apenas nos desfiles, já
que os bailes em seus salões mantinham acesa a rivalidade,
procurando cada uma delas organizar o melhor baile carnavalesco da
cidade.
A
curiosidade é que a marcha triunfal da ópera Aída, de Verdi, além
de muito executada durante os desfiles, era sempre a que abria os
bailes. Obrigatórios, também, as batalhas de confetes e
serpentinas, o uso de máscaras pelos foliões e os primeiros
concursos de fantasias.
Mas
a maior contribuição das grandes sociedades para o carnaval, e que
viria a desaguar no desfile das escolas de samba, é resumida com
muita propriedade por Eneida, a cronista paraense que, com grande
sabedoria, captou todo o sabor do carnaval carioca: “A beleza dos
carros alegóricos, os carros de ideias e os de crítica, o luxo das
fantasias, os fogos de artifício, que os clubes geralmente queimavam
em sua passagem, fez com que nascesse no povo um culto pelos
préstitos carnavalescos; enchiam-se as ruas, as soleiras das portas,
as casas comerciais começaram a alugar janelas e o povo ficava
pacientemente esperando três e quatro horas a passagem das
sociedades”.
Assim,
entende-se por que a classe alta ia para a rua divertir o povo, até
o Clube Tenentes do Diabo ser o primeiro a admitir sócios de outras
classes sociais e Sinhô ser um dos primeiros sambistas a compor para
esse tipo de sociedades e a se apresentar com elas, chegando a
desfilar com o Tenentes, o Democráticos e o Fenianos.
Não
se acredite, porém, que a atitude passiva de simples espectador,
atribuída ao povo, seja verdadeira. Da mesma maneira que os
populares se deliciavam com os desfiles, as elites necessitavam de
suas presenças e aplausos.
O
Grande Carnaval não se realizava sem a plateia do Pequeno Carnaval,
e isso ficou provado quando, em 1897 e 1898, o subúrbio de Madureira
e seus vizinhos resolveram fazer o seu próprio carnaval.
Montaram
coretos com bandas de música, construíram palanques e prepararam
seus desfiles (humildes ante as grandes sociedades) em suas ruas,
saindo em blocos, ranchos e cordões, divertindo-se sem ir para o
centro da cidade.
Como
consequência a Rua do Ouvidor e adjacências ficaram às moscas, os
grandes desfiles perderam o entusiasmo e só com a volta do povo nos
anos seguintes a animação foi retomada.
O
chamado Pequeno Carnaval constituía-se de grupos formados pelas
camadas mais humildes da população, que se organizava de maneira
primária em blocos, em cordões e em ranchos, manifestações que
serviriam de base para o surgimento das escolas de samba. Tais
agrupamentos existiam – como as grandes sociedades – desde meados
do século 19 e conviviam de forma paralela.
O
termo “cordão” designava genericamente grupos de carnavalescos
que reuniam tanto habitantes de bairros elegantes, como seus escravos
e populares da periferia.
Historiadores
descrevem os cordões como grupos de mascarados fantasiados de
“velhos”, “morte” (fantasias muito populares na época),
palhaços, diabos, reis, índios, morcegos etc.
À frente, um mestre
comandava o desfile com o auxílio de um apito e todos dançavam ao
som do conjunto de percussão: adufe (espécie de pandeiro quadrado e
sem pratinelas), cuícas, reco-recos, bumbos etc.
Os
“velhos” faziam passos coreografados e os palhaços cantavam
chulas aceleradas. Os cordões se originaram da festa de Nossa
Senhora do Rosário, realizada nos tempos coloniais e muito apreciada
pelos negros.
Foi
lá que surgiram o cordão dos Velhos e depois o dos Cucumbis,
considerados os mais importantes na formação das escolas de samba,
pela contribuição integral da cultura negra. Donga e João da
Baiana, sambistas tradicionais, brincaram muitos carnavais nos Velhos
e nos Cucumbis.
Nomes
curiosos eram adotados pelos cordões, que são lembrados até hoje:
Destemidos do Livramento, Papoula do Japão, Caju de Ouro, Rosas de
Diamantes, Flor de Café, Vitoriosos das Chamas, Deusa do Paraíso,
Amantes de Santa Teresa, sem contar com os apaixonados pelas morenas
como a Sociedade Amante das Morenas e Clube Paraíso das Morenas.
Os
blocos carnavalescos surgiam da reunião de vizinhos e pessoas
conhecidas de um mesmo bairro, rua ou trabalho, para brincar o
carnaval. Eles tinham caráter improvisado, sem coreografia ou enredo
definidos, medida, porém, que só veio a ser adotada em fase
posterior, no final do século 19 e início do século 20, quando os
blocos chegaram a se organizar e promover ensaios antes do carnaval.
De
qualquer forma, o bloco sempre se caracteriza pela liberdade maior do
folião, que se fantasia como quer, reúne-se aos amigos e tem como
finalidade apenas a diversão, sem estar preso a normas ou
regulamentos. É tão livre que, por mais de trinta carnavais,
desfilou pelas ruas do Rio de Janeiro o Bloco do Eu Sozinho, que se
tornou famoso e era esperado a cada ano, embora fosse sempre igual.
O
mesmo cidadão que, solitário, usava um chapéu tirolês, a parte
superior de um fraque e uma larga calça de algodão estampado.
Portando a tabuleta que identificava seu bloco, cantava sempre a
mesma melodia, que a cada ano deixava claro o quanto lhe irritavam as
multidões.
Outra
modalidade que contribuiu para o aparecimento das escolas de samba
foi o rancho. Era uma espécie de cordão mais organizado e com
presença feminina. Possuía instrumental mais rico, com violões,
cavaquinhos, flautas e clarinetes.
Um
coro entoava a marcha do rancho e havia certa coreografia nas
apresentações. O porta-estandarte era obrigatório, bem como um
mestre de harmonia para a orquestra, um de canto para o coro e o
terceiro para a coreografia.
Havia
muita rivalidade entre os ranchistas no Rio de Janeiro, cada um
querendo ser mais importante do que o outro.
Quando
Tia Ciata brigou com Hilário Jovino, o mais conceituado ranchista da
cidade, só de birra e para provocá-lo, criou um rancho bastante
anarquista.
Com
repolhos, tomates e cebolas no seu estandarte, a partideira deu-lhe o
nome de O Macaco É Outro.
Hilário
Jovino, claro, ficou mordido.
Dos
ranchos sérios e famosos, o que mais contavam com a simpatia popular
eram o Mimosas Cravinas, Flor do Abacate, Ameno Resedá e Kananga do
Japão, apesar de existirem muitos outros.
Nenhum comentário:
Postar um comentário