“No
livro de nossa história / Tem conquistas a valer / Juro que não
posso me lembrar / Se for falar da Portela / Hoje não vou terminar”
(Monarco).
Todos
os portelenses conhecem os versos de Monarco exaltando as conquistas
do Grêmio Recreativo Escola de Samba Portela.
No
subúrbio de Madureira, qualquer moleque assobia pelas calçadas,
enquanto canta mentalmente o samba de Chico Santana, “Portela é
despida de vaidade/ Vitória, para Portela, é banalidade”.
E
desde há muitos anos, outro velho samba, caído no domínio público,
de autor já esquecido, convoca os batuqueiros: “Levanta cedo,
trata de te preparar/ Vamos para a Portela/ Que o reino do samba é
lá”.
Quando
a imponente águia-símbolo da escola azul-e-branco – as cores do
manto de N. Sª. da Conceição, sua madrinha – abre as asas sobre
a pista do desfile, o sortilégio se refaz a cada ano.
O
surdo de marcação bate, a bateria vira, vem a réplica do surdo de
resposta e, em alguma nuvem confortável, sisudos senhores se ajeitam
e tratam de olhar com atenção (e, obviamente, criticar) o que os
meninos de hoje estão fazendo com a brincadeira que eles criaram
para animar os domingos de Oswaldo Cruz, Bento Ribeiro e toda a
Madureira.
Na
metade dos anos 20, sob uma frondosa mangueira, na Rua Joaquim
Teixeira, no subúrbio carioca, três amigos reuniam-se para
conversar. O assunto era sempre o mesmo.
Os
blocos Quem Fala de Nós Come Mosca e Baianinhas de Oswaldo Cruz, nos
quais eles e outros amigos se divertiam, já não existiam mais. O
que fazer para solucionar o problema, que afinal era de todos?
Antônio
da Silva Caetano, dentre os três, era o mais bem preparado
intelectualmente. Cursara o secundário no Colégio Salesiano, onde
começou como corneteiro na banda, passou para o saxofone, depois
para o pistão, fixando-se no violão.
Seu
xará, Antônio Rufino dos Reis, viera de Minas Gerais, já tendo
tomado gosto pela dança e pela música. Chegara quase menino ao Rio
de Janeiro e, sem estudo, iniciou-se como servente de pedreiro,
morando em quarto alugado e tomando refeições, na casa de Paulo da
Portela, de quem se fez muito amigo.
Paulo,
o mais elegante e falante do trio, lustrador de móveis por profissão
e líder nato, era quem mais se preocupava em criar algum tipo de
diversão para a turma, órfãos que estavam, sem os blocos
carnavalescos.
Paulo,
Caetano e Rufino: fundadores da Portela.
A
união dos três talentos – a capacidade de idealizar e criar de
Caetano, a mineirice de Rufino, responsável pela administração do
dinheiro do empreendimento, e a habilidade de Paulo,
relações-públicas nato e perfeito, quando ainda não existia a
profissão ou o termo – foi o fator que determinou o sucesso da
grande ideia: fundar uma escola de samba.
Em
11 de abril de 1926 foi registrado o documento que oficializava o
Conjunto Carnavalesco Escola Samba de Oswaldo Cruz, constituído por
Paulo da Portela, Antônio da Silva Caetano, Antônio Rufino dos
Reis, Álvaro Sales, José da Costa, Galdino, Claudionor, Manoel
Bam-Bam-Bam Gonçalves, Antônio Portugal, Cláudio Bernardo da
Costa, Angelino Poró Vieira e Candinho, entre outros.
Quando
o mangueirense Zé Espinguela, em 1929, promoveu um célebre concurso
para escolher “o melhor samba”, o Conjunto de Oswaldo Cruz venceu
com uma composição de Heitor dos Prazeres.
A
presença dele no grupo incomodava alguns, por ser Heitor “gente
nova na escola, vindo do centro da cidade”, e por ter, pouco
depois, conseguido mudar o nome da agremiação para Quem Nos Faz É
O Capricho.
Em
1930, por causa de uma disputa de autoria, abandonaria o grupo, após
ter sido agredido gravemente por Manoel Bam-Bam-Bam, que tomou
partido de Rufino, autor de “Vai, Mesmo”, samba do qual Heitor se
apossou e gravou.
Mas
a futura grande escola ainda dava passos nada largos.
Instalada
no nº 412 da Estrada do Portela, não tinha como pagar os aluguéis
para o comerciante português Sérgio Hermógenes Alves, considerado
pelos veteranos o verdadeiro patrono da Escola.
Ele gostava tanto do
pessoal que “se esquecia” de cobrar, ou então se limitava a
receber em serviços: alguém batia bumbo na porta de seu armazém,
chamando a freguesia.
Em
1931, já como Vai Como Pode, Rufino contava as dificuldades:
“Descemos do trem na Central e fomos desfilando até a Praça Mauá,
dali viemos pela Rua Larga (Marechal Floriano) para a Praça Onze.
Chegamos às duas e meia da manhã. Demos uma volta e viemos embora
para a Central. Aí não cantamos samba, viemos só no assovio e no
arrastar da sandália”.
Alcides
Dias Lopes, o Malandro Histórico
Paulo
da Portela era sempre quem puxava o samba, ajudado por João da Gente
e Alcides Lopes, o “Malandro Histórico”.
Até
1935, a Vai Como Pode sempre fez bonito nos desfiles, ganhando
naquele ano o primeiro campeonato.
Foi
quando, em 1º de março, o delegado Dulcídio Gonçalves se negou a
reconhecer a agremiação com “aquele nome chulo” e, de certa
forma, impondo, sugeriu que o novo nome acompanhasse o endereço.
Surgiu, então, o Grêmio Recreativo Escola de Samba Portela.
No
ano seguinte, ocorre uma dissidência entre Paulo da Portela e
Antônio Caetano, tendo o segundo se afastado da Escola. Mesmo com a
forte liderança de Paulo, a Portela se ressentiu da ausência de
Caetano e ficou em terceiro lugar.
Em,
1937, ano da eleição de Paulo da Portela como Cidadão Samba do Rio
de Janeiro, foi seu título que conseguiu levar a Escola a um
vice-campeonato.
Sem tempo, dinheiro e em crise interna, e Rufino
também se desentendendo com Paulo, a Portela mal se armou com o
enredo “O Carnaval”, mas a forte presença do Cidadão Samba à
frente influiu na decisão dos jurados.
Em
1938, não houve julgamento e, em 1939, a Portela foi campeã com o
enredo “Teste do Samba”.
No
ano seguinte, ficou em quinto lugar e velhas inimizades determinaram
a saída de Paulo da Portela da Escola em 1941.
Ele
e Heitor dos Prazeres estavam em São Paulo participando de uma
promoção carnavalesca e chegaram, em cima da hora, para desfilar na
Portela. Como não estavam vestidos de azul e branco, o mestre-sala
Manoel Bam-Bam-Bam, que mantinha a velha rixa com Heitor, proibiu que
desfilassem.
Paulo
retirou-se e nunca mais voltou à Portela, embora o incidente não
impedisse que a Portela fosse campeã.
A
escrita de campeã absoluta do carnaval carioca continuou nos sete
anos seguintes, vencendo sempre, até ter a hegemonia quebrada pela
grande rival vizinha, a Império Serrano, também de Madureira, em
1948.
A
Portela se tornara realmente importante. Paulo morreria em 1949,
coberto de homenagens pela Escola que fundara.
Natalino
José do Nascimento, o lendário Natal da Portela, já era o
destacado patrono e iniciava a construção do, talvez, maior
patrimônio de todas as escolas de samba.
Inovando
sempre, buscando fórmulas para superar as outras escolas, abrigando
uma invejável Ala de Compositores – na qual, em breve, despontaria
um menino chamado Paulinho da Viola, que se tornaria sinônimo de
Portela – a Azul-e-Branco desperta polêmica em 1964, ao abrir o
desfile com um grupo de violinistas encasacados, no enredo “O
Segundo Casamento de D. Pedro II”.
Em
1966, o próprio Paulinho, na única incursão no gênero, faz o
samba-enredo “Memórias de Um Sargento de Milícias” e leva a
Escola a ganhar mais um campeonato.
Em
1970, a Portela encerra a década novamente como campeã, a velha
águia alçando voo com mais um título, que encerrava um ciclo de
vitórias continuadas.
Estamos
em um quintal de subúrbio em Madureira. O local é bem espaçoso e
algumas árvores oferecem sombra, nas manhãs de domingo, dia da
reunião habitual. Aos poucos, os convidados vão chegando e se
ajeitando nas mesas e cadeiras.
As
roupas, sempre em tons de azul e branco. O cumprimento à dona da
casa, Doca, famosa pastora da Portela, é obrigatório. A reunião
semanal da Velha Guarda da Portela celebra um rito de preservação
cultural.
Monarco
fere as cordas do cavaquinho, afinando um clássico ré-sol-si-mi.
Casquinha confere o tantã, enquanto Cabelinho aperta as tarraxas do
surdo. Argemiro abre a cervejinha para limpar a garganta. Alberto
Lonato chega, veteraníssimo, saudando a todos.
Aos
poucos, o time está completo, ao redor de mesas sob as árvores.
Sempre na companhia de Eunice, Doca já abandonou a cozinha, e assim
começa uma verdadeira festa da música popular brasileira.
O
“pagode”, como os velhos sambistas sabem (uma reunião de amigos
festejando o samba, não um gênero, como se convencionou,
recentemente), pega fogo.
O
que vale para aqueles senhores, guardiães de uma cultura ameaçada,
é a beleza e a qualidade dos sambas que cantam, a maioria da
Portela, mas nada impede que Cartola, Silas de Oliveira, Anescar do
Salgueiro e Martinho da Vila sejam lembrados.
O
timbre agudo da voz das pastoras destaca-se dos graves masculinos.
Nos rostos, a alegria de sempre, da celebração da vida, o prazer de
exibir talentos na criação de sambas memoráveis, os próprios e os
de seus majestosos pares.
Quando
alguém lembra Paulinho da Viola, é o paraíso. Foi ele quem
resgatou o grupo de veteranos, produziu seu disco, passou a
convidá-lo para participar de alguns shows e até para a Europa já
o levou.
A
foto, de 1970, contém a saudade de alguns integrantes da Velha
Guarda da Portela, que já se foram. Feita na ocasião da gravação
do disco, quando os ensaios aconteciam na casa de Iara, no subúrbio
de Oswaldo Cruz.
Um
jovem Paulinho da Viola, à esquerda, observa o grupo. Em pé, ao seu
lado: Aniceto, Alberto Lonato, Chico Santana, atrás dele, encoberto,
Antônio Caetano, e também Armando Santos, Vicentina (quem já não
tinha provado de seu famoso feijão, na Portela?), o sobrinho dela e
Manacéa. Agachados estão Casquinha, o neto de Iara, a própria
Iara, Monarco, Alcides Lopes (o Malandro Histórico), Cláudio e
Miginha.
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