Em
uma das reuniões preparatórias de fundação de uma nova escola de
samba, um sambista sugeriu o nome: Catedráticos do Salgueiro. Do
alto de sua sabedoria, o compositor Noel Rosa de Oliveira contestou:
“Não dá. Esse nome vai destroncar a língua do pessoal do morro.
Proponho Acadêmicos do Salgueiro”. Estava batizada a escola.
Assumido
no desfile de 1958, quando Nelson Andrade sintetizou no slogan “Nem
melhor, nem pior, apenas uma escola diferente!”, o destino do
Salgueiro ficou evidente já em seu surgimento.
Ao
contrário da maioria, oriunda de blocos, a Acadêmicos é fruto da
união de três pequenas escolas do morro do Salgueiro.
Na
primeira metade dos anos 30, os foliões de lá se dividiam entre as
escolas de samba Azul e Branco, Unidos do Salgueiro e Depois Eu Digo.
As
três escolas eram patrocinadas, de forma igualitária, pelo
industrial Antônio Almeida Valente de Pinto, que assinava grandes
quantias nos Livros de Ouro de cada uma, chegando mesmo a doar a sede
do Bloco Verde e Branco (que passaria a ser a Depois Eu Digo).
O
presidente da Azul e Branco era o português Eduardo Teixeira e os
principais destaques eram o diretor de harmonia, o compositor Antenor
Gargalhada (Antenor Santíssimo de Araújo), e o sambista Paolino
Santoro, que todos conheciam como Italianinho do Salgueiro.
A
ala de baianas da Escola já era prestigiada e veio depois a
enriquecer igual setor da Acadêmicos do Salgueiro.
Cidadão Samba de 1938, Antenor tinha voz possante, o mesmo acontecendo com o
Italianinho, famosos por serem ouvidos no morro inteiro, quando
abriam a garganta.
Embora
não tivesse visto a Acadêmicos do Salgueiro nascer – morreu em 17
de janeiro de 1941 –, Antenor Gargalhada é reverenciado como o
primeiro grande sambista salgueirense.
A
Azul e Branco tem um dos mais bonitos episódios da história do
samba.
No
carnaval de 1947, pouco antes do desfile, soube-se que a
porta-bandeira Ceci não podia comparecer. Desesperado, um dos
diretores, seu Neca da Baiana, lembrou de Finoca, que desde menina
saía na Escola. Foi busca-la na Ala dos Lordes e ela, apesar de
grávida, não hesitou em tornar a bandeira e representar a
agremiação, desfilando como se deve.
Tudo
ia bem, até que, em um volteio mais rápido, a porta-bandeira teve
de se apoiar no mestre-sala Ranulfo. Ela ainda tentou prosseguir, mas
foi impossível. Hoje, Adelaidinha, que nasceu naquele momento, em
pleno carnaval, é uma das passistas do Salgueiro, na qual desfila ao
lado de... Finoca, é claro.
Lá
no alto do morro, no Terreiro Grande, D. Elvira Arantes, Anacleto
Português e seu Amaro adotaram as cores azul e rosa na fundação da
Escola de Samba Unidos do Salgueiro.
Em
seguida, uma figura imensa, um homem enorme e simpático, sorridente
e comunicativo, chega ao morro e adere ao grupo.
Líder
nato, usando calças sujas cujas bocas cobriam os sapatos, ganha logo
o apelido que faria famoso: Casemiro Calça Larga (Joaquim Casemiro).
Ele
organizava festas, ensaios, os conhecidos piqueniques na ilha de
Paquetá, bailes animados e rodas de samba.
Partideiro
de responsa e grande improvisador, Casemiro Calça Larga era
respeitado por todos.
A
mais fraca das três era a Depois Eu Digo, oriunda de um bloco de
mesmo nome.
Seus
sambistas, em menor número, ganhavam em qualidades dos das vizinhas:
Servan Heitor de Carvalho, Pedro Ceciliano, o Peru, Paulino de
Oliveira, Carivaldo Mota, João Sete, Olímpio Correia da Silva, Mané
Macaco, além de outros.
A
exemplo das coirmãs do morro, a Depois Eu Digo não conseguia se
destacar. Se uma era forte na bateria, outra tinha melhores
compositores e a terceira possuía excelentes passistas. Com os
talentos diluídos, o morro do Salgueiro estava enfraquecido.
Foi
quando, em 1953, Geraldo Babão convocou em samba todos os
batuqueiros.
As
baterias desceram unidas, arrastando o povo para a Praça Saenz Peña,
numa soma de cores e bandeiras, o estopim da fusão.
Após
várias reuniões – Calça Larga, a princípio, não aderiu, mas
reconciliou-se depois –, nome e cores escolhidos, nasceu glorioso,
a 3 de abril de 1953, o Grêmio Recreativo Escola de Samba Acadêmicos
do Salgueiro.
O
historiador e escritor Haroldo Costa sabe a história do Salgueiro em
todos os seus capítulos. É parte de muitos deles. De ver, ouvir,
participar. E de contar.
Histórias
saborosas, como a da busca desesperada de doações que
possibilitassem o desfile, com Mané Macaco e Peru passando o Livro
de Ouro até para o presidente Getúlio Vargas (que assinou) e para
as mulheres do Mangue, a zona do meretrício (que contribuiriam,
desde que a Escola desfilasse para elas).
Compromisso
assumido, dinheiro em caixa, no domingo de carnaval, com a desculpa
de cortar caminho rumo à Praça Onze, a dupla de sambistas foi
conduzindo, por aqui e por ali, os componentes, que, ao perceberem,
estavam na Rua Carmo Neto, no coração da zona, com o mulherio
aplaudindo e sambando descontraidamente, em “trajes de trabalho”,
ou seja, quase nenhum.
Em
1956, o Salgueiro teve seu samba-enredo, “Brasil, Fonte Das Artes”,
de Djalma Sabiá, Caxiné e Nilo Moreira, gravado por Emilinha Borba.
Era a primeira vez que uma cantora profissional gravava um
samba-enredo, que acabou sendo tema musical na recepção à Seleção
Brasileira, campeã mundial de futebol em 1958.
No
mesmo ano, também pela primeira vez, uma escola de samba gravava um
disco, cabendo a honraria ao Salgueiro, pelo selo Todamérica.
“Navio
Negreiro” foi o enredo de 1957, com samba de Djalma Sabiá e Amado
Régis.
Em
1958, surge o lema salgueirense, “Nem melhor, nem pior, apenas uma
escola diferente”, abrindo o desfile do enredo “Exaltação aos
Fuzileiros Navais”, samba de Djalma Sabiá, com Carivaldo Mota e
Graciano Campos.
As
inovações começam em 1959, com o casal Marie Louise e Dirceu Nery,
responsáveis pelos figurinos sobre Debret, no enredo “Viagem
Pitoresca e Histórica ao Brasil”, que rendeu à Escola o segundo
lugar.
No
ano seguinte, Fernando Pamplona, o figurinista Arlindo Rodrigues (foto) e o
aderecista Nilton de Sá completam o chamado quinteto infernal do
Salgueiro.
Em
1960, o enredo era “Quilombo dos Palmares”, com samba de Noel
Rosa de Oliveira e Nescarzinho. O Salgueiro foi para a avenida como
favorito, desfilando de forma a modificar a estética carnavalesca
das escolas de samba.
O
júri deu-lhe um frustrante terceiro lugar, mas o concurso foi
anulado e as cinco primeiras colocadas foram consideradas campeãs.
Na garganta dos salgueirenses ficou um gosto de ganhou-mas-não-levou.
Em
1961, com o enredo “Vida e Obra de Aleijadinho”, desfilava pela
primeira vez uma jovem de presença marcante, chamada Isabel Valença.
Geraldo
Babão fez um grande samba para o carnaval de 1962, intitulado “O
Descobrimento Do Brasil”, que ajudou a Escola a chegar perto da
vitória, ficando de novo em terceiro lugar.
Mesmo
com título dividido em 1960, os salgueirenses consideram que a
Escola foi campeã pela primeira vez em 1963, o ano de “Chica da
Silva”. O belíssimo samba-enredo de Nescarzinho e Noel Rosa de
Oliveira musicou o desfile perfeito.
Haroldo
Costa conta: “Quem vinha puxando o samba era o próprio Noel Rosa.
A bateria de 200 homens sacudia o povo nas arquibancadas (...) a ala
dos importantes representava 12 pares de nobres, dançando uma polca
ao ritmo do samba, coreografada por Mercedes Batista (...) O inegável
é que o impacto foi irresistível. Não bastasse tudo isso, ainda
tinha Paula em momento de esplendor, sacudindo o colo farto,
balançando os ombros, o público aplaudindo de pé (...) Casemiro
Calça Larga rodopiava seus cento e tantos quilos com a leveza de um
menino, orientando alas, apontando passistas como Narcisa, Roxinha e
Gargalhada, incentivando as baianas, empurrando a escola para a
vitória que se desenhava inteira e total, no impressionante ritmo
mantido pela bateria sob o comando de Tião da Alda”.
Isabel
Valença era uma rainha na luxuosíssima fantasia de Chica da Silva.
Tornou-se símbolo do Salgueiro, que chegou ao título à frente da
Mangueira e do Império Serrano.
Virou
moda ser salgueirense e, em 1964, o enredo “Chico-Rei” conquistou
o segundo lugar.
Em
1965, ano do IV Centenário do Rio de Janeiro, o enredo foi “História
do Carnaval Carioca – Eneida”, homenagem à cronista paraense,
grande carnavalesca.
O
samba de Geraldo Babão, a presença eletrizante das Irmãs Marinho,
a majestade de Isabel Valença, o final saudando todas as escolas com
suas bandeiras, transformaram-se no segundo campeonato do Salgueiro,
que a partir de então foi reconhecido oficialmente como grande
escola.
Ela
fez outros desfiles sensacionais – “Dona Beja, Feiticeira do
Araxá”, “Bahia de Todos os Deuses” e “Rei da França na Ilha
da Assombração”, entre outros –, sempre dentro de sua filosofia
de não quer ser nem pior, nem melhor: apenas uma escola (e que
escola!) diferente.
Desde
os primeiros tempos, quando ainda estava pulverizada em três
pequenas escolas, o Salgueiro contou com compositores da melhor
qualidade. Iniciada por Antenor Gargalhada – que um dia não deixou
Noel Rosa sem resposta (Noel fez um samba convidando Mangueira,
Favela e Estácio para acordar o Salgueiro. Gargalhada respondeu
cantando: “O Salgueiro não está adormecido, /quem é a Vila pra
nos acordar?”) – a dinastia teve seguidores, com igual valor e
talento, nas várias gerações futuras.
Noel
Rosa de Oliveira, Bala (João Nicolau Carneiro Filho), Carivaldo
Mota, Nescarzinho do Salgueiro, Djalma Sabiá, Zuzuca, Caxiné,
Manoel Rosa e muitos outros, em toda a história da Escola, foram
dignos herdeiros de Gargalhada.
Mas
nenhum deles como Geraldo Soares Carvalho, o Geraldo Babão.
Ele
nasceu em 1926, no Terreiro Grande, um dos pontos mais conhecidos do
Morro do Salgueiro. Tornou-se compositor de melodias inesquecíveis e
originais.
Isso
por um simples detalhe: enquanto os demais autores compõem seus
sambas com harmonia em cavaco ou violão, Geraldo tirava notas
musicais da flauta, o que lhe permitia nuances melódicas únicas.
Tocava
horas a fio pelas vielas do morro, e a saliva que saía da boca para
não machucar os lábios em contato com a flauta lhe rendeu o apelido
que o consagraria no carnaval carioca: Geraldo Babão.
O sambista representou para o Salgueiro o unificador que Cartola foi para a
Mangueira.
Em
1953, depois que as três escolas do morro do Salgueiro não
obtiveram bom resultado no carnaval, Geraldo Babão, que já pregava
a união do trio em apenas uma grande escola, para enfrentar as
demais, de igual para igual, desceu o morro cantando um samba feito
por ele no ano anterior: “Vamos embalançar a roseira, /Dar um
susto na Portela, no Império, na Mangueira. /Se houver opinião, o
Salgueiro apresenta / Uma só união”.
Foi
a palavra de ordem decisiva para o nascimento dos Acadêmicos do
Salgueiro, que deve ainda a Geraldo uma série de lindos sambas, de
terreiro e de enredo, como “Vida e Obra de Aleijadinho”, “O
Descobrimento do Brasil”, “Chico-Rei” e “História do
Carnaval Carioca – Eneida”.
Entre
os sambas-enredos, dos muitos maravilhosos do Salgueiro, o justo
destaque para “Chica Da Silva” é obrigatório.
Considerado um
dos dez melhores de todos os tempos, foi composto por Nescarzinho do
Salgueiro (Anescar Pereira Filho) e Noel Rosa de Oliveira.
Com ele,
Isabel Valença virou mito na fantasia de Chica da Silva e o
Salgueiro ganhou seu primeiro título no carnaval carioca.
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