“Habitada
por gente simples e tão pobre / Que só tem o sol que a todos cobre
/ Como podes, Mangueira, cantar?” (Cartola). “Alvorada, lá no
Morro, que beleza, / Ninguém chora, não há tristeza / Ninguém
sente dissabor”. (Cartola, Carlos Cachaça e Hermínio B. de
Carvalho).
Cartola
sabia muito bem como a gente simples da Mangueira podia cantar.
Quando fez o samba – gravado magistralmente mais tarde por ele e a
filha, Creuza –, conhecia a força dos artistas de sua Escola de
Samba, a inspiração dos componentes da Ala de Compositores, o
lirismo dos poetas, capazes de irem buscar, nos próprios corações,
versos e poemas de embasbacar acadêmicos.
Tanto
sabia que, tempos depois, uniu seu talento ao do velho parceiro,
Carlos Cachaça, e ao do novo, Hermínio Bello de Carvalho, e contou
cantando a beleza das alvoradas mangueirenses, um lugar onde ninguém
chora, não há tristeza nem dissabores. Um lugar que identifica seus
moradores como “gente da Mangueira”, título exibido com orgulho
por quem o ostenta.
Roberto
Marinho e dona Neuma da Mangueira
Gente
como Neuma, a D. Neuma, eterna primeira-dama da Escola e do morro.
Filha de Saturnino Gonçalves, fundador e primeiro presidente da
Mangueira, viu o pai morrer nos braços do amigo Cartola, em 1935, e
assumiu por completo as funções de liderança, que exerce até
hoje.
Famosa
pelo destabocamento verbal, dizendo o que pensa a quem for preciso,
Neuma é uma espécie de Tia Ciata dos anos 50. Durante muito tempo,
única a ter telefone no morro, recebendo recados para todo mundo,
Neuma também abrigou quantos procuraram ajuda.
Em
sua casa, decisões eram tomadas mais a sério que nas próprias
reuniões de diretoria. Opinião de Neuma sempre teve o peso e
respeito, que muito bamba e valente jamais conseguiu. Falar Neuma é
ouvir Mangueira. E vice-versa.
Neuma
é a memória viva da Escola de Samba e do morro. Da mesma maneira
que é conhecida por todos, conhece todo mundo, sabe quem é quem,
quem fez isso ou aquilo. Não se conta a história da Mangueira –
ou de quem viveu perto dela – sem ouvir a moradora mais famosa.
Que
não tem papas na língua e já descreveu os porres de Noel Rosa no
Buraco Quente, que acabavam sempre com a primeira mulher de Cartola,
a Deolinda, carregando nos braços o franzino autor de “Com Quem
Roupa?”, para um banho na bacia, com direito a talco “nas partes
íntimas”, a fim de curar a carraspana.
Dona
Neuma, figura querida da velha guarda da Mangueira, morreu no dia 17
de julho de 2000, aos 78 anos, no hospital Salgado Filho, no Rio de
Janeiro, vítima de um acidente vascular cerebral.
Outra
memória famosa na Mangueira é a do compositor Nelson Sargento. Sabe
todos os sambas, de todos os compositores do morro.
Certa vez, cantou
para Cartola uns cinco ou seis inéditos. O “Divino” achou-os
muito bonitos e perguntou de quem eram. “São seus”, respondeu
Nelson e emendou brincando: “Se me der parceria, canto mais uns dez
que você não lembra”.
Nelson
Sargento é autor, em parceria com o padrasto, Alfredo Português, do
samba-enredo “As Quatro Estações Do Ano”, que ficou conhecido
como “Primavera”, sem dúvida um dos dez mais bonitos de todos os
tempos.
A
Ala de Compositores da Mangueira sempre foi invejada pelas outras
escolas. O grande número de talentos que exibiu no correr da
história justificou a fama e muitos deles fizeram carreira fora da
Escola.
Compondo
ou cantando, tornaram-se prestigiados não só no mundo do samba, mas
pelo público em geral, sendo bastante destacado o exemplo da única
mulher a fazer parte dessa ala, a cantora e compositora Lecy Brandão.
Nelson
Cavaquinho, Cartola, Geraldo Pereira, Nelson Sargento, Preto Rico,
Carlos Cachaça, Zagaia, Pelado, Jamelão e Zé da Zilda são outros
nomes que chegaram ao sucesso, rompendo os limites da Escola.
As
mulheres tiveram também, ao correr do tempo, importante papel na
história da Mangueira. Além de Neuma, desde os primeiros momentos
como destaque da comunidade popular, o morro já tinha suas líderes.
Tia
Fé, mãe-de-santo afamada e dona de bloco carnavalesco, foi uma
delas, citada pela grande descendência que gerou. Outra foi uma
portuguesa conhecida como Joaquina, que chegou, instalou-se com uma
tendinha, ali por 1920, e quando morreu todos chamavam o local de
Joaquina. Virou nome de bairro, até hoje.
As
três Nair ficaram famosas. Nair Grande, também dona de tendinha,
fumava, bebia e jogava pernada como qualquer homem. Nair Pequena
morreu em plena Avenida Presidente Vargas, enquanto a Mangueira
desfilava, e Nair Brinquinho, assim apelidada por um pequeno defeito
na orelha.
Lina,
a primeira porta-bandeira, ensinou tudo à sobrinha Neide,
considerada a maior de todas.
Dona
de um sorriso que iluminava mais que a decoração do desfile, Neide
ficou conhecida como a grande porta-bandeira da metade do século
passado.
Numa
ocasião, tentada por uma bela oferta em dinheiro vivo, Neide passou
para a Vila Isabel, aonde não chegou a terminar o primeiro ensaio.
Um “comando” da Mangueira foi até lá e a levou de volta pra
casa, na “mão-grande”.
Nanana
foi madrinha da bateria por quase vinte anos. Sabendo tudo de samba,
cabrocha de alta linha, puxava cuíca melhor que muito batuqueiro,
além de ser uma das mulheres mais bonitas da Escola. O filho, Ivo
Meireles, chegou a presidente da Mangueira.
Tereza
Santos, exilada na África pela Revolução de 1964, foi a
responsável por todo o movimento cultural que agitou o morro na
época, ensinando, alfabetizando, orientando, politizando moradores
de todas as idades, lançado as sementes do projeto Mangueira de
Amanhã. E, naturalmente, vestindo verde-e-rosa, nos dias de
Carnaval.
Dona
Zica, a Zica do Cartola, já não vive no morro, mas é mais fácil
encontra-la por lá do que em sua casa em Jacarepaguá.
“Gente
da Mangueira, como pode essa gente cantar?”, perguntava Cartola no
samba.
“Como
pode ficar essa gente sem cantar?”, pergunta a vida.
A
estreia foi na famosa batalha de confetes da Rua Dona Zulmira.
O
bloco infantil da Estação Primeira de Mangueira inovava no carnaval
carioca e, já de início, conquistava a taça Tenente Travassos,
como o melhor grupo da batalha.
De
lá pra cá, os meninos da Mangueira são olhados como o futuro da
escola.
O
vitorioso projeto Mangueira de Amanhã, reunindo a juventude do morro
da Mangueira em atividades esportivas e culturais, além naturalmente
de cultivar os talentos dos futuros sambistas, nasceu há muito
tempo.
Matéria
no Jornal do Brasil de janeiro de 1932, citada pelo historiador
Sérgio Cabral, relata que o dirigente Júlio Dias Moreira formava
então o Bloco Infantil da Estação Primeira, com 65 crianças de 7
a 14 anos, que desfilaria no carnaval de 1933.
Imitada
por outras escolas, a Mangueira ampliou anos depois o projeto
original, implantando no morro classes de ensino primário e
biblioteca, sob um departamento cultural dirigido por Tereza Santos.
Quanto
ao samba de amanhã, ficou em boas mãos, como o próprio Sérgio
Cabral contou, em parceria com Rildo Hora, no samba “Meninos Da
Mangueira”.
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