Por Felix
Valois
Conversava
eu com Márcio André Assumpção, jovem empresário amazonense. Ele degustava sua
cerveja, enquanto eu cumpria meu compromisso com o governo da Escócia. O papo
descambou para os longínquos tempos da minha juventude, mais especificamente
sobre como era Manaus naquela época. Talvez por falta de talento da minha
parte, vi que, em determinados momentos, meu interlocutor manifestava uma
surpresa, quase dúvida, sobre a veracidade do que era relatado. Eu entendia
perfeitamente essa perplexidade. É, de fato, muito difícil compreender (e mais
ainda visualizar) a brutal transformação da cidade num período que,
historicamente, pode ser considerado insignificante. Foi gritante.
Como
pode a juventude assimilar a verdade de que a nossa cidade só passou a ter
fornecimento regular de energia elétrica no ano de 1962? É que, vencidos os
áureos tempos da “belle époque”, mergulhamos em um marasmo econômico
assustador. Em termos de população, deveríamos ter algo em torno de trezentos
mil habitantes, o que traduz um violento choque quando sabemos que hoje a cidade
abriga quase dois milhões e meio de pessoas. Mas era assim mesmo. Naquele ano
eu cursava a segunda série da faculdade de direito. Quando sozinho, estudava à
luz de vela ou de um lampião à querosene. Tínhamos, na escola, um grupo mais
chegado de colegas e amigos. Marlene Peres, Almir Barbuda, Flaviano Guimarães,
Alfredo Cabral e eu. Quando era possível, nos reuníamos para estudar e
facilitar, através da troca de ideias, o entendimento das intrincadas lições
contidas nos herméticos livros da ciência jurídica. Invariavelmente íamos para
a casa da Marlene. E não era só por cortesia. Lá podíamos desfrutar do luxo da
iluminação proporcionada por um candeeiro Aladim...
Nas
ruas, a escuridão era total, salvo quando, por mera dádiva da natureza, o luar
quebrava as trevas. Chegava a ser atemorizante. Não dá para esquecer que,
voltando para casa, às onze da noite, uma espécie de paredão negro se me
apresentava a partir da esquina das ruas Epaminondas e João Coelho, ao
contemplar o estirão de descida da rua Leonardo Malcher, em cujo início
morávamos. Quando muito um velório ocasional fornecia a lúgubre iluminação dos
círios queimando. O que não era vantagem nenhuma porque, se aquele fraco feixe
de luz se projetava para o exterior, a própria existência do defunto era motivo
para exacerbar as superstições místicas que a religião impunha.
O
regulamento da faculdade exigia que usássemos paletó para assistir às aulas.
Era cruel. Não só pelo custo, que não era pequeno, sabendo que éramos
estudantes quase sempre lisos qual bunda de índio remador. Mas também porque o
trajeto para a escola era feito a pé, pois o transporte público era de uma
precariedade impressionante. Saía eu lá da margem do igarapé de São Raimundo,
atravessava as famosas três praças (da Saudade, do Congresso e de São
Sebastião) para desembocar numa quarta e última (a da Polícia), até chegar à
rua Miranda Leão, acesso final para vetusta Jaqueira da Praça dos Remédios.
É certo
que umas kombis, conhecidas como “expressos”, faziam uma rota denominada João
Coelho/Joaquim Nabuco. Era possível tomar uma delas em frente ao bar Balalaica
e saltar atrás da igreja dos Remédios. O difícil era ter o dinheiro da
passagem. Já tive oportunidade de relatar que dona Idalina, a gentil e maternal
cantineira da faculdade, muitas vezes se ofereceu para pagar por mim, com pena,
talvez, daquele jovem que, envergando um paletó de não muito bom gosto, fazia o
longo trajeto sob a inclemência do sol vespertino desta augusta cidade de
Manaus.
Velhos
tempos. Novidade mesmo para o Márcio André foi ele ficar sabendo que, então, os
alunos que não estudavam podiam ser reprovados e que as escolas públicas eram,
em tudo e por tudo, superiores às particulares. E que ninguém respondia a
processo criminal por chamar um gordo de balofo ou um magrelo de cotonete de
orelhão. Também não havia a síndrome do politicamente correto, com todas as
“liberalidades” daí decorrentes. Não me cabe dizer se era melhor ou pior. Posso
apenas afirmar que era diferente. E, também, que é impossível não ter saudades
dos igarapés de águas límpidas em que se podia mergulhar, sem configurar
tentativa de suicídio. Mas acho que já estou sendo saudosista. É melhor parar
por aqui.
Um comentário:
Excelente texto. poucos acreditam nisto, só quem viveu. muitas saudades disto tudo. parabens
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