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quinta-feira, abril 16, 2020

Dabacuri



Faz tempo que não posto nada aqui. Sacanagem minha com meus 25 leitores registrados em cartório. Mas é que perdi tantos amigos nesse começo de ano que resolvi dar um tempo.

Foi na semana passada que uma amiga querida deu o toque: “E se em vez deles, fosse você? A gente ia se privar dos textos que você pesquisou? Isso é sacanagem...”

Pois é. Eu queria fazer uma surpresa. Lançar um puta livro sobre a cultura popular de Manaus. Mas que surpresa é essa, por favor? Não é melhor mostrar logo a porra do livro aqui na web, que dá pra todo mundo acessar?

Foi por causa dela que resolvi mostrar o primeiro livro, “Dabacuri”, e o resto da tropa. São textos longos. Foda-se. Vou começar do começo. Com a apresentação. Vamo que vamo!

Vou começar com um quadro do meu querido e saudoso Roland Stevenson, pintor chileno, meu camarada. Ele era um gênio.


A imagem que ele fazia das Amazonas era exuberante. Visitei algumas vezes seu studio ali na Av. Constantino Nery. Conversávamos muito, ríamos muito, discutíamos muito. Uma das pessoas queridas que se foi, como se vão as coisas boas que a gente ama.


Num lugar que não se sabe bem ao certo onde, talvez nas planícies frias da margem esquerda do rio Danúbio, na Bulgária, numa época que fica entre a mitologia e a história, viveram as mulheres chamadas Amazonas. Eram frias, belas e bárbaras. Não toleravam os homens, a não ser quando os capturavam para se reproduzirem. Amazonas vem de “amazon”, em grego: “as que não têm seio”. Porque, de tão apaixonadas pela guerra, dizem, arrancavam um dos seios para melhor manejar o arco e a lança.

A Grécia mitológica é povoada de histórias dessas mulheres extremadas, descendentes do deus da guerra Ares (Marte, entre os latinos) e da ninfa Harmonia. O incrível herói Hércules esteve nesse reino encantado com a missão de se apoderar do cinto de Hipólita, a rainha. Quase teve êxito. Hipólita apaixonou-se por ele e lhe daria de boa vontade o cinto, não fosse suas guerreiras terem iniciado uma rebelião, fomentada, aliás, pela deusa Hera, uma ciumenta amiga de Hércules. O prodigioso Hércules mata Hipólita para conseguir o cinto e retira-se de Temiscira, capital do reino das guerreiras, combatendo furiosamente. Pelo menos assim é a lenda.

Em 1539, as Américas estavam ainda mal descobertas. E o mito das Amazonas não era muito mais fantástico que as terras para onde se dirigiam aventureiros como Dom Francisco de Orellana, que vinha à misteriosa América, como disse um de seus poetas, realizar “un sueño heroico y brutal”. Orellana era um dos comandantes de Francisco Pizarro, o sombrio e inclemente conquistador do Peru. Este ouvira falar do Eldorado, um país fantástico de cidades de ouro, além dos Andes. E para lá, numa tropa com 4 mil índios escravos, 300 soldados, 150 cavalos, cães e porcos, despachou, no Natal de 1539, alguns de seus homens – entre os quais Orellana – sob o comando de seu irmão Gonzalo.

A viagem deste segundo Pizarro foi um roteiro de misérias. A escalada dos Andes custou à expedição mais que o pior dos combates. Tiveram de comer frutos desconhecidos e raízes, solas de sapatos e arreios. Já na encosta leste dos Andes, Gonzalo Pizarro faz uma parada estratégica e manda cinquenta homens em busca de alimentos. No comando envia Orellana, do qual esperaria socorro, em vão: o cavalheiro foge para a imortalidade. Vai descobrir o rio das Amazonas.

Do rio Coca, onde estava Gonzalo Pizarro, Francisco Orellana chegou ao rio Napo. Após uma jornada de 600 quilômetros pelo rio Napo, sob a ameaça constante dos índios omáguas, ele atingiu um caudal barrento que chamou de rio Orellana. E o seguiu, abandonando Gonzalo à sua própria sorte. O rio barrento era o Solimões, cujo nome é uma referência aos nomes dos povos que originalmente habitavam suas margens, os índios Sorimões (ou ainda Joriman ou Sorimão), termo derivado da palavra latina solimum, referência ao veneno utilizado nas pontas de flechas e dardos destes povos.

Os navegantes seguiram pelo rio Solimões por mais 1.200 quilômetros até a sua confluência com o rio Negro, que alcançaram no dia 3 de junho de 1542. O rio nascido daquele “encontro das águas” foi designado pelos membros da expedição como Grande Río, Mar Dulce e Río de la Canela. Orellana alegou ter encontrado em suas margens grandes caneleiras, árvores das quais se obtem a canela, uma das especiarias mais importantes e desejadas na Europa da época. A árvore, no entanto, não é nativa da América do Sul e só podia ser encontrada, à época, no Oriente. Outras plantas semelhantes, no entanto, como o loureiro e o pau-rosa, são nativas da região, e Orellana poderia estar se referindo a elas. Depois de muito viajar, numa segunda-feira, conta frei Gaspar Carvajal, cronista da viagem, Orellana e seus homens chegaram a um povoado indígena, em cuja praça se erguia um palanque representando uma cidade murada. Perguntando aos índios, “por cual memoria tenían aquello”, responderam que os habitantes da aldeia eram servidores das “icamiabas” (na língua dos índios, “mulheres sem marido”).

Diz frei Carvajal que um índio prisioneiro informou serem elas todas solteiras. Moravam sete dias rio Nhamundá acima, em setenta povoados, com muralhas que se comunicavam por estradas bem guardadas. Diz Carvajal: “El Capitán (Orellana), le preguntó sí estas mujeres parían; el indio dijo que si. El capitán le dijo que, como, no siendo casadas, ni reside hombre entre ellas, se empreñaban. Él dijo que estas indias participan com indios em tiempos, y quando les viene aquela gana (...) por fuerza los traen a sus tierras y los tienem consigo aquele tiempo que se les antoja, y después que las hayan preñadas les tornam a enviar a sua tierra (...); y después, cuando vienne el tiempo que han de parir, que si paren hijo le matan y le envian a sus padres, y si hija la crían com muy gran solemnidade”.

Descendo mais, na foz do rio Nhamundá, Orellana teria travado feroz encontro com essas guerreiras. Não tinha jeito ruim a batalha naquele dia 24 de junho, dia de São João. Dos bergantins, os homens de Francisco Orellana estavam esvaziando de inimigos, com rajadas de arcabuz e de balestra, as brancas canoas vindas da costa. Mas aí, a bruxa deu as caras. Apareceram as mulheres guerreiras, tão belas e ferozes que eram um escândalo, e então as canoas cobriram o rio e os navios saíram correndo, rio abaixo, como porco-espinhos assustados, eriçados de flechas de proa a popa e até no mastro-mor.


As capitãs lutaram rindo. Se puseram à frente dos homens, fêmeas garbosas, e já não houve medo na aldeia de Conlapayara. Lutaram rindo e dançando e cantando, as tetas vibrantes no ar, até que os espanhóis se perderam para lá da boca do rio Tapajós, exaustos de tanto esforço e assombro. Tinham ouvido falar destas mulheres, e agora acreditam. Elas vivem ao sul, em senhorios sem homens, onde afogam os filhos que nascem varões. Quando o corpo pede, dão guerra às tribos da costa e conseguem prisioneiros. Os devolvem na manhã seguinte. Ao cabo de uma noite de amor, o que chegou rapaz regressa velho.

Orellana e seus soldados continuarão percorrendo o rio mais caudaloso do mundo e sairão ao mar sem piloto, nem bússola, nem carta de navegação. Viajam nos bergantins que eles construíram ou inventaram a golpes de machado, em plena selva, fazendo pregos e bisagras com as ferraduras dos cavalos mortos e soprando o carvão com botinas convertidas em foles. Deixam-se ir sem rumo pelo rio das Amazonas, costeando a selva, sem energias para o remo, e vão murmurando orações: rogam a Deus que sejam machos, por mais machos que possam ser, os próximos inimigos.

A história ou o mito maravilhoso das icamiabas dominou o resto da viagem. Orellana rebatizou o grande rio: de rio das Canelas passou a chama-lo de rio das Amazonas. O espanhol voltou à América, em 1550, como governador-geral do território por ele descoberto. Mas morreu de malária, com 44 anos, na costa da atual Guiana Francesa, depois de dois meses no labirinto de ilhas do arquipélago de Marajó, procurando, em vão, a entrada do rio das Amazonas.

Realidade ou ficção, a lenda das amazonas/icamiabas se enraizou de tal forma no imaginário da população nativa que passou a fazer parte do folclore da região. Foi por causa desse folclore que a Província de São José do Rio Negro se transformou em Amazonas, após se desmembrar da Província do Grão-Pará, em 1850, e posteriormente toda a região que abrange a maior floresta tropical do planeta passou a se chamar Amazônia.

Mas afinal de contas o que é folclore? Segundo a Carta do Folclore Brasileiro, aprovada pelo I Congresso Brasileiro de Folclore, em 1951, “constituem fato folclórico as maneiras de pensar, sentir e agir de um povo, preservadas pela tradição popular, ou pela imitação, e que não sejam diretamente influenciadas pelos círculos eruditos e instituições que se dedicam ou à renovação do patrimônio científico e artístico humano ou à fixação de uma orientação religiosa e filosófica”.

Na verdade, todos os povos possuem suas tradições, crendices e superstições, que são transmitidas através de lendas, contos, narrativas, provérbios e canções. Esses veículos de expressão popular são transmitidos de uma geração a outra e passam a pertencer a um determinado povo de tal modo que desconhecemos os seus autores.

As lendas são estórias contadas por pessoas e transmitidas oralmente através dos tempos. Misturam fatos reais e históricos com acontecimentos que são frutos da mais fantástica fantasia. As lendas geralmente fornecem explicações plausíveis e até certo ponto aceitáveis para coisas que não têm explicações científicas comprovadas, como acontecimentos misteriosos ou sobrenaturais. Muitas dessas lendas são derivações de narrativas mitológicas dos povos europeus – e aqui podemos citar o caso da Yara ou Mãe d’Água, uma sereia da Amazônia que parece ter sido inspirada nas sereias da mitologia grega narradas por Homero, na “Odisseia”. Como diz o dito popular que “quem conta um conto aumenta um ponto”, as lendas, pelo fato de serem repassadas oralmente de geração a geração, sofrem alterações à medida que vão sendo recontadas.

Os mitos são narrativas mais bem elaboradas que possuem um forte componente simbólico. Como os povos da antiguidade não conseguiam explicar os fenômenos da natureza através de explicações científicas, criavam mitos com este objetivo: dar sentido às coisas do mundo. Os mitos também serviam como uma forma de transmitir conhecimentos e alertar as pessoas sobre perigos e ameaças, desvios de conduta, ambição, orgulho, inveja e outros defeitos ou qualidades inerentes ao ser humano. Deuses, heróis e personagens sobrenaturais se misturam com fatos da realidade para dar sentido à vida e ao mundo. Ao contrário da explicação filosófica, que se utiliza da argumentação lógica para explicar a realidade, o mito explica a realidade através de suas histórias sagradas, que não possuem nenhum tipo de embasamento científico para serem aceitas como verdadeiras. Todas as culturas possuem seus mitos. Alguns assuntos, como a criação do mundo, deram origem a vários mitos diferentes.

A origem das superstições está na visão mágica, sobrenatural e irracional que se tem do mundo. Segundo Luís da Câmara Cascudo, as crendices populares “participam da própria essência intelectual humana e não há momento na história do mundo sem a sua inevitável presença”. Algumas dessas superstições são sobejamente conhecidas: passar embaixo de escada dá azar. Coceira na palma da mão é sinal de que há dinheiro chegando. A visita chata vai embora se uma vassoura for colocada atrás da porta. Quebrar um espelho dá sete anos de azar. Se a sua orelha estiver quente ou vermelha, alguém está falando mal de você. Não se deve deixar o chinelo virado de ponta-cabeça porque isso traz mau agouro. Pé de coelho, trevo de quatro folhas e ferradura dão sorte. Bater na madeira três vezes espanta o azar. Faça um pedido para uma estrela cadente e ele vai se realizar.

O folclore também se associa frequentemente às tradições religiosas, acrescentando elementos novos aos rituais tradicionais. Grandes festas populares como o carnaval no Brasil, o mardi gras nos EUA e o dia de São Patrício na Irlanda, são alguns exemplos disso. O sincretismo religioso, isto é, as misturas de rituais e crenças religiosas de várias tradições, quase sempre se faz presente na base constitutiva da cultura popular. A prática de se “benzer” um doente, de se “fechar o corpo” contra males por meio de feitiços, de se “rezar” com folhas de arruda ou de pião roxo para tirar o “quebranto” de uma criança e outras variações semelhantes, são resultado deste sincretismo.


Em linhas gerais, as tradições populares são conservadas através do folclore. Por meio de um folguedo, como o do “boi-bumbá”, toda uma herança imaterial – isto é, um estoque de valores e sabedoria tradicionais – é passado de geração em geração. Entre as lendas e mitos mais conhecidos do Brasil podemos citar os seguintes:

Boitatá – Representada por uma cobra de fogo que protege as matas e os animais e tem a capacidade de perseguir e matar aqueles que desrespeitam a natureza. Acredita-se que este mito é de origem indígena e que seja um dos primeiros do folclore brasileiro. Foram encontrados relatos do boitatá em cartas do padre jesuíta José de Anchieta, em 1560. Na região nordeste, o boitatá é conhecido como “fogo que corre”.

Boto – Acredita-se que a lenda do boto tenha surgido na região amazônica. Ele é representado por um homem jovem, bonito e charmoso que encanta mulheres em bailes e festas. Após a conquista, leva as jovens para a beira de um rio e as engravida. Antes de a madrugada chegar, ele mergulha nas águas do rio para transformar-se em um boto novamente. Por este motivo, a população ribeirinha costuma afirmar que o boto é o pai de todos os filhos de origem desconhecida.

Boiaçu – Cobra grande, também conhecida como “boiuçu”. No lendário amazônico há uma enorme variedade de estórias onde a cobra grande é a figura central, que vira canoas, interdita rios e ilumina as águas escuras com seus olhos de fogo. Uma das mais conhecidas é a dos irmãos gêmeos Honorato e Maria Caninana, nascidos na região do rio Trombetas, no Pará. O poema “Cobra Norato”, do poeta modernista Raul Bopp, ajudou a popularizar a lenda.

Curupira – Personagem travesso do folclore brasileiro, o Curupira é a representação de um menino com cabelos vermelhos, dentes verdes e pés virados para trás. A origem do nome é do tupi-guarani que significa “corpo de menino”. Considerado o protetor da fauna e da flora, o Curupira assobia e deixa pegadas com seus pés virados com o objetivo principal de enganar os exploradores e destruidores da natureza. Quando alguém desaparece nas matas, muitos habitantes do interior acreditam que é obra do Curupira.

Lobisomem – De origem europeia, a lenda do Lobisomem retrata um monstro violento com formas humanas e de lobo, que se alimenta de sangue. Acredita-se que quando uma mulher tem sete filhas e o oitavo filho é homem, esse último provavelmente será um Lobisomem. Outra versão sustenta que um homem foi atacado por um lobo numa noite de lua cheia e não morreu, porém desenvolveu a capacidade de transformar-se em lobo e atacar todo mundo que encontra pela frente. Noutras regiões, a lenda apresenta outras características, visto que o Lobisomem sempre se manifesta em crianças não batizadas. A transformação ocorre nas encruzilhadas em noites de lua cheia por volta da meia noite. Entretanto, ao amanhecer, ele torna-se novamente humano. Somente um tiro de bala de prata em seu coração seria capaz de matá-lo. Uma das variantes desta lenda na região Norte dá conta de que homens e mulheres se transformam em porcos nas noites de sexta-feira.

Mãe-D'água – Conhecida como “Yara” ou “Uiara”, a lenda da Mãe-D’água é de origem tupi e o nome significa “Senhora das Águas”. Esta personagem representa uma sereia belíssima que atrai os pescadores com suas doces canções a fim de matá-los. Antes de ser uma sereia, Yara era uma índia extremamente bela e inteligente que despertava muita inveja na tribo, inclusive de seus irmãos. Assim, com o intuito de acabarem com o problema, os irmãos resolveram matá-la, mas no final foi ela que acabau os matando. Como punição, os outros índios da tribo acorrentaram e lançaram Yara no encontro das águas dos rios Negro e Solimões. A partir daí ela se transformou em uma sereia com objetivo de encantar todos os homens que encontrar e leva-los para o seu reino no fundo do rio. Encontramos na mitologia universal um personagem muito parecido com a Mãe-D’água: a sereia. Este personagem tem o corpo metade de mulher e metade de peixe. Com seu canto atraente, ela também consegue encantar os homens e levá-los para o fundo das águas.

Corpo-seco – É uma espécie de assombração que fica assustando as pessoas nas estradas. Em vida, era um homem que foi muito malvado e só pensava em fazer coisas ruins, chegando a prejudicar e maltratar a própria mãe. Após sua morte, foi rejeitado pela terra e teve que viver como uma alma penada.

Pisadeira – É uma velha de chinelos que aparece nas madrugadas para pisar na barriga das pessoas, provocando a falta de ar. Dizem que costuma aparecer quando as pessoas vão dormir de estômago muito cheio.

Cuca – De origem portuguesa, a lenda da Cuca está associada muitas vezes com o “bicho papão”, ou seja, ela é uma personagem muito temida pelas crianças, pois reza a lenda que se trata de uma velha feia e malvada, com cara de jacaré que raramente dorme. Sua personagem está associada ao rapto de crianças desobedientes e que apresentam resistência para dormir. Por isso, a tradicional cantiga de ninar crianças expõe o seguinte trecho: “Nana neném que a Cuca vem pegar”.

Mula-sem-cabeça – Segundo a lenda, a mula sem cabeça é um monstro do folclore brasileiro que se manifesta quando uma mulher namora um padre e, por maldição, é transformada em mula. Bastante conhecida em todo o Brasil, esta personagem folclórica é representada, literalmente, por uma mula sem cabeça, que solta fogo pelo pescoço e tem como finalidade assustar pessoas e animais.

Mãe-de-ouro – Representada por uma bola de fogo que indica os locais onde se encontra jazidas de ouro. Também aparece em alguns mitos como sendo uma mulher luminosa que voa pelos ares. Em alguns locais do Brasil, toma a forma de uma mulher bonita que habita cavernas e, após atrair homens casados, os faz largar suas famílias.

Saci-Pererê – Nome de origem tupi-guarani, o Saci-pererê é uma das lendas brasileiras mais conhecidas. É representada por um menino negro que possui uma perna só, fuma cachimbo e usa um gorro vermelho, que lhe dá poderes mágicos. Muito brincalhão, o Saci se manifesta tal qual um redemoinho, vive aprontando travessuras e se diverte muito com isso. Adora espantar cavalos, queimar comida e acordar pessoas com gargalhadas. Embora o Saci-pererê seja o mais conhecido, existem três tipos de saci: o Pererê, o Trique e o Saçurá.

Comadre Florzinha – É uma fada pequena que vive nas florestas do Brasil. Vaidosa e maliciosa possui cabelos compridos e enfeitados com flores coloridas. Vive para proteger a fauna e a flora. Junto com suas irmãs costumam aplicar sustos e fazer travessuras com os caçadores e pessoas que tentam desmatar a floresta


Negrinho do Pastoreio – De origem afro-cristã e pertencente ao folclore do sul do País, o Negrinho do Pastoreio representa a história de um menino escravo que foi muito castigado pelo seu patrão. Um dia, quando foi pastorear os cavalos, acabou por perder um cavalo baio. Depois de ter sido martirizado violentamente pelo fazendeiro e jogado semimorto num formigueiro, o Negrinho do Pastoreio reapareceu sem marcas nenhuma pelo corpo, ao lado da Virgem Maria e montado no cavalo baio. Curioso notar que muitas vezes, as pessoas que perderam algum objeto, acendem uma vela e pedem para o Negrinho ajudá-los a recuperá-lo.

Além dos mitos e lendas, o folclore brasileiro apresenta uma grande diversidade cultural. Podemos também considerar como legítimas representações do nosso folclore os ritmos e danças folclóricas (quadrilhas, cirandas, carimbó, capoeira, frevo), comidas regionais típicas (canjica, tacacá, caruru, maniçoba, vatapá), músicas regionais (embolada, siriá, baião, xote, forró), encenações (marujada, bumba-meu-boi, congada, maracatu, cavalhada), representações artísticas (artesanato, confecção de rendas e cestas de palha, pinturas näif), brincadeiras e jogos infantis (trinta-e-um-alerta, boca-de-forno, macaca, barra-bandeira, garrafão), ditos populares (“isso é do tempo do Onça”, “aquilo é um caraxué!”), literatura de cordel, crendices e festas populares (carnaval, festa junina, Festa do Divino, Círio de Nazaré e Folia de Reis).

A palavra folclore foi utilizada pela primeira vez num artigo do arqueólogo William John Thoms, publicado no jornal londrino “O Ateneu”, em 22 de agosto de 1846 (por isso 22 de agosto é o dia do folclore). Ela é formada pelos termos de origem saxônica: “folk” que significa “povo” e “lore” que significa “saber”. Portanto o “folklore” é o saber do povo ou a sabedoria popular. No Brasil, a palavra adaptada tornou-se “folclore”.

Como todo mundo já sabe, o nosso folclore foi resultado da miscigenação de três povos (indígena, português e africano) e da influência dos imigrantes de várias partes do mundo. Por isso, nosso país tem uma tradição folclórica variada, rica e muito peculiar. Em cada região brasileira, o folclore apresenta semelhanças e diferenças.

Um grande estudioso do folclore nacional foi o já citado Luís da Câmara Cascudo, nascido em Natal, no Rio Grande do Norte em 1898 e autor de mais de 150 livros. Ainda hoje, a obra de Câmara Cascudo é uma referência imprescindível para se tratar do folclore, até porque diversas expressões folclóricas brasileiras por ele documentadas já desapareceram e não podem mais ser observadas. O folclore, em especial a partir do século 20, serviu de base para a produção da arte culta brasileira. Os exemplos estão presentes em todas as artes. O pintor ítalo-brasileiro Alfredo Volpi fez das bandeiras das festas juninas um elemento frequente de seus quadros e gravuras. O compositor fluminense Heitor Villa-Lobos aproveitou-se de temas do folclore em sua obra musical.

Na literatura, há no mínimo três autores de importância indiscutível que se utilizaram de elementos da cultura popular. O paulista Mário de Andrade, grande estudioso do folclore, escreveu sua obra-prima, “Macunaíma”, reunindo com olhar irônico e crítico inúmeras narrativas do folclore brasileiro. O mineiro João Guimarães Rosa, autor de “Grande Sertão: Veredas” – um clássico da literatura nacional – tematiza a vida do sertanejo e trabalha tanto elementos característicos de narrativas folclóricas, quanto a própria forma sertaneja de uso da língua portuguesa. Da mesma maneira, o paraibano Ariano Suassuna compôs uma ampla obra teatral baseada na tradição folclórica nordestina. Como exemplo, podem-se citar “O Auto da Compadecida” ou “A Pena e a Lei”, sem falar no monumental “Romance da Pedra do Reino”.


Convém lembrar que o folclore brasileiro – ligado ao universo rural, pois a industrialização do país é recente, em termos históricos – chegou a influenciar nossos meios de comunicação de massa. O ator e diretor Amácio Mazzaropi levou o caipira do interior paulista para as telas do cinema. O animador de programas de auditório Abelardo Chacrinha Barbosa fez enorme sucesso na TV utilizando-se elementos de festas populares do Nordeste, como as disputas entre cordões (o encarnado e o azul), que eram mediados por um velho, a quem Chacrinha personificava (O Velho Guerreiro). Nos meios de comunicação de massa, como o cinema, a estética dos circos mambembes que percorriam o interior do país também pode ser encontrada em produções cinematográficas inusitadas como os filmes de terror de José Mojica Marins, conhecido como Zé do Caixão.

A Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura) considera o folclore sinônimo de cultura popular na medida em que “representa a identidade social de uma comunidade por meio de suas criações culturais, coletivas ou individuais, sendo uma parte significativa da vida cultural de cada nação”. Sustenta também que o folclore não é um conhecimento “cristalizado”, embora tenha raízes nas tradições, que podem ser muito antigas, mas que se transforma a partir do contato entre as culturas distintas, oriundas das migrações, e através dos meios de comunicação, nos quais se inclui ultimamente a internet. Parte do trabalho da Unesco é orientar as comunidades para bem administrarem sua herança folclórica, observando que o progresso e as transformações provocam mudanças que tanto podem enriquecer uma cultura como destroçá-la definitivamente.

Foi para resgatar nosso folclore nativo que tive a iniciativa de organizar este livro, sob a orientação do saudoso artista plástico, antropólogo e escritor Moacir Andrade, presidente da Sociedade para a Defesa da História e das Tradições Populares do Amazonas, falecido em julho de 2016, e contando com a imprescindível colaboração dos livreiros Antônio Diniz e Simas Pessoa. Não é um trabalho acadêmico sobre o folclore. É um livro de recordações que tem como mote o folclore amazonense praticado em Manaus. Dito de outra forma, esta simplória antologia é apenas uma contribuição menor sobre o assunto e visa sobretudo resgatar tanto os nomes dos pioneiros na criação de grupos folclóricos em nossa cidade quanto os daqueles dirigentes abnegados que na atualidade continuam pegando o pião na unha para colocar seu grupo folclórico na rua. Espero sinceramente que esse pequeno objetivo tenha sido alcançado.

Mas por que este livro sobre o folclore manauara se chama dabacuri? Bem, o dabacuri é uma cerimônia ritualística milenar dos povos indígenas do Alto Rio Negro que envolve a troca de conhecimentos entre as tribos dessa localidade sobre culinária, danças, frutos, peixes, artefatos, casas ancestrais, alianças matrimoniais, ritos de passagens, criação da humanidade, dos passáros, dos animais, dos seres míticos, dos astros, das estrelas, dos rios e das matas, numa tentativa de preservar essas informações para as futuras gerações. Acredito que transformar a literatura oral de nossos folcloristas manauaras em uma pequena obra literária acessível a um número maior de pessoas está dentro desse espírito comunitário e preservacionista que sempre moveu os povos da floresta. Por essa ótica, dabacuri e literatura oral são os dois lados da mesma moeda.

Simão Pessoa

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