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sábado, janeiro 03, 2009

O Boi da Faceira


Melquíades Júnior

Lá vem boi, aiá, vem boi nós queremos ver. E quando dá fé o boi já vai longe, e fica registrado para ninguém esquecer que o Boi Pai do Campo da Faceira chegou para ficar, ir, passear e voltar. Agora Mestre Chico e sua turma deram de aparecer na televisão, na tela do cinema.

O documentário “Brinca Faceira”, produzido e recém-lançado em Limoeiro do Norte, pelo programa Petrobras Cultural, mostra a história, canções e precursores do bumba-meu-boi da comunidade limoeirense de Faceira. A produção audiovisual faz um dos poucos registros que se tem do folguedo que tem mais de dois séculos nas ribeiras jaguaribanas.

Feito a água do rio que desce, a brincadeira do bumba-meu-boi foi passando de geração para geração, povoado para povoado, até bater no município de Russas e, daí, para onde hoje é Limoeiro do Norte, na localidade de Faceira. Foi quando João Caboclo construiu com suas próprias mãos o boi, feito de ripa de madeira assada. João é o tio do atual Mestre da Cultura Chico Nogueira e o principal incentivador do auto do boi no lugar.

“Lembro quando vi pela primeira vez, com medo do dotô e da Catirina, subi na biqueira de uma casa com medo dela. Era uma grande algazarra, num tinha criança que ficasse parada, todos corriam em disparada louca”, fala o brincante João Caboclo - poucos anos antes de morrer - em entrevista ao compositor Eugênio Leandro, também de Limoeiro do Norte, produtor e principal idealizador do documentário.

O filme começa no ano de 1995, quando Eugênio visita a comunidade de Faceira já decidido a realizar ali um grande projeto audiovisual. Até então vivo, João Caboclo, “rapaz velho” (como chamam os homens ‘de idade’ que nunca casaram) respeitado pela comunidade Faceira, conta como começou o boi pai do campo e as brincadeiras. Era tudo menino dançando no terreiro, animando festa de casamento, festa junina ou somente a própria alma, quando não tinha o que comemorar.

Enquanto mostra um por um dos atuais integrantes do boi-bumbá, o documentário insere pesquisadores da cultura local como padre Francisco Pitombeira, escritor Gilmar Chaves (atualmente secretário da Cultura de Limoeiro), professor (hoje vice-governador) Francisco Pinheiro, o pesquisador das expressões culturais Osvaldo Barroso, sociólogo –“o boi faz parte do inconsciente coletivo da comunidade”. É na frente da câmera que também se dá o diálogo de brincantes de comunidades diferentes, quando Chico Nogueira e Antonio Manoel, do boi-bumbá do município cearesnse de Quixeré, relembram como era “o boi de antes, para o de agora”.

Singularidades

Foi trabalho de pesquisa e suor situar as singularidades do boi-bumbá da Faceira, em meio a tanta boiada de reisado pelo país. Ainda assim, conforme o professor Pinheiro, “não encontramos cultura do boi sem a cultura da pecuária”. E gado era o que não faltava pelas paragens do Rio Jaguaribe, visto que em 1763 estavam registradas mais de 600 fazendas de gado nos terrenos marginais.

Se o boi historicamente esteve inserido na economia migratória (interiorizando o sertão, a pecuária difundiu-se pelos povoados), não é difícil entender que entrou nas expressões culturais de seus dependentes, o que pode ser conferido nos bois de Manaus, Maranhão, Ceará, sempre com um pé na cozinha, ou na oca, e o outro na sala (nos anos 1600, o “boeuf-gras” francês, depois restabelecido por Napoleão Bonaparte, saía coroado em cortejo pelas ruas, homenageando pessoas nas portas de suas casas).

Brinca Faceira é o primeiro documentário de Eugênio Leandro e Vera Costa, sua irmã e co-produtora do filme. Mais do que a qualidade técnica do trabalho (com alguns pequenos erros primários), seu maior mérito está na preocupação com o registro histórico do tradicional reisado, que nos alimenta a esperança no flagrante de crianças tão pequenas cantando e fazendo valer o boi. Mas não basta filmar, tem que interagir com o filme: o programa Petrobras Cultural, que contemplou 171 entre 3.380 projetos de audiovisual de todo o país.

E Boi Pai do Campo da Faceira não sai da tela, mas vai para todo lugar. É um verdadeiro cortejo circular da comunidade limoeirense que teima em preservar o boi, cantando a sátira, o trabalho, a terra, o amor. Os versos curtos rimados da boca sem dente de seu José Romão caem no inconsciente musical popular .

O boi remendado de pano, arames e cano PVC faz que vai-não-vai para cima do povo. Mostra que dentro de todo boi há um homem. Ou que dentro de cada homem há um boi.

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