Paulo
Mendes Campos
Um
amigo de Kafka conta que este arquitetava o seguinte: um homem
desejando criar uma reunião em que as pessoas aparecessem sem ser
convidadas.
As
pessoas poderiam se ver ou conversar sem se conhecerem. Cada uma
faria o que lhe aprouvesse sem chatear o próximo.
Ninguém
se oporia à entrada ou à saída de ninguém.
Não
havendo propriamente convidados, não se criariam obrigações
especiais para com o anfitrião. E o espinho da solidão doeria mais
ou menos.
É
possível que Kafka não haja escrito esta alegoria por ter percebido
que a mesma já existia corporificada sob a forma de cafés,
restaurantes e bares.
Mas
o episódio pode levar-nos a considerar com súbita estranheza o mil
vezes conhecido: os bares já eram kafkianos quando surgiram no
mundo.
Ou
este, o mundo, é que foi o primeiro bar, quando se encontraram num
jardim duas criaturas desconhecidas, e à mulher, buscando
comunicação, ofereceu ao homem uma fruta.
Naquele
Garden Bar principiaram os equívocos. Foi o primeiro ponto de
encontro. E não durou muito.
Pois
os bares nascem, vivem, parecem eternos a um determinado momento, e
morrem. Morrem numa quarta-feira, como dizia Mário de Andrade.
O
obituário dessas casas fica registrado nos livros de memórias.
Recordá-los,
os bares mortos, é contar a história de uma cidade. Melhor, é
fazer o levantamento das cidades que passaram por dentro de uma única
Idade.
Mesmo
num lugar como Paris, que apesar dos pesares procura preservar a
imagem histórica, os cafés de Léon-Paul Fargue não foram os cafés
de Alphonse Daudet, e este não respirou atmosfera dos cafés de
Stendhal.
O
curioso é que os bares do presente, por seus serviços e por sua
frequência, podem merecer até o nosso entusiasmo, mas não recebem
jamais o nosso amor.
O
bom freguês só ama o bar que se foi. Só na lembrança os bares
perdem suas arestas e se sublimam.
João
do Rio tinha sete anos e se batia contra um enorme sorvete na
Confeitaria Paschoal quando ouvia a Baronesa de Mamanguape exclamar
encantada: “Oh! Senhor Olavo Bilac!”
Esta
cena não se passou conosco, mas é como se tivesse sido. Seu
conteúdo emocional repetiu-se na existência de todas as pessoas que
frequentaram bares e confeitarias. E repetiu-se para o próprio João
do Rio, que num livro de 1912 já escreve sobre a decadência das
casas de chopes; ou simplesmente chopes, como eram chamadas.
Conta
como esses chopes surgiram e morreram, partindo a invenção da Rua
da Assembleia, nas mesas de mármore do Jacó, onde estetas, imitando
Montmarte, inauguraram o prazer de discutir literatura e falar mal do
próximo. Por esse tempo, uma mulher com a voz de barítono, chamada
Ivone, montou um cabaré satânico na Rua do Lavradio, com tudo o que
havia de mais rive gauche, inclusive recitativos macabros de
Baudelaire. Era o Chat Noir, que perdeu o fôlego por falta de verba.
Outros
chopes apareceram nas ruas da Assembleia e Carioca, esmerando-se os
proprietários na invenção promocional; seus chamarizes são
inventariados nessa ordem cronológica de João do Rio: tenores
gringos de colarinho sujo e luva na mão, acompanhados ao piano;
grandes orquestras tocando trechos de óperas e valsas perturbadoras;
depois, árias italianas servidas com sanduíches de caviar, um chope
chegou a apresentar uma harpista capenga mas formosa.
Foi
aí que um empresário genial estreou um cantor de modinhas. Foi de
endoidar: “A modinha absorveu o público. Antes para ouvir uma
modinha tinha a gente de arriscar a pele em baiúcas equívocas e
acompanhar serestas ainda mais equívocas. No chope tomava logo um
fartão sem se comprometer. E era de ver os mulatos de beiço grosso,
berrando tristemente: 'Eu canto em minha viola ternuras de amor, mas
de muito amor...' E os pretos barítonos, os Bruants de nanquín,
maxixando cateretês apopléticos”.
Na
Rua da Assembleia, à meia-noite, Catulo da Paixão Cearense erguia
um triste copo de cerveja para soluçar dorme que velo, sedutora
imagem.
Tudo
isso é narrado ainda no comecinho do século já em afinação de
nostalgia; pois os chopes tinham morrido no início da segunda
década. Uns poucos anos antes, só na Rua da Carioca eram uns dez;
na Rua do Lavradio ficavam de um lado e do outro; alastraram-se pela
Riachuelo, pela Cidade Nova, Catumbi, Estácio, Praça Onze. Num
relampejar brilharam e sumiram as estrelas daquelas noites,
esquecidas pela cidade, “a mais infiel das amantes”.
Mas
o chope deu um jeito e conseguiu sobreviver; só mudou de cara e
personalidade. Quando cheguei ao Rio, era chope o que se tomava em
muitos bares famosos, hoje mortos: Túnel da Lapa, 49, Nacional,
Brahma...
Aí
se misturavam pequenos empregados do comércio, a gente de boa roupa
e até os derradeiros malandros. No antigo Vermelhinho as mesas eram
ocupadas por escritores, jornalistas, pintores, gente do palco e
estudantes da Escola de Belas-Artes.
Suas
figuras mais constantes eram Santa Rosa, com o cigarro pendurado na
boca, Vinícius de Moraes, Rubem Braga, Lúcio Rangel, João Cabral
de Melo Neto costumava chegar, conversar um pouco e, já alegando dor
de cabeça, dar um pulo à Farmácia Normal.
Os
artistas pretos – Heitor dos Prazeres, Ismael Silva, Solano
Trindade, Abdias Nascimento – sentiam-se em casa nas cadeiras de
palhinha do Vermelhinho, assim como os estrangeiros trazidos pela
guerra.
Carlos
Drummond de Andrade, deixando o Ministério da Educação, só
passava de fininho pela Rua Araújo Porto Alegre.
Depois
uma parte da turma atravessou a rua, pegou o elevador e se instalou
no ajardinado terraço da ABI, passando a tomar uísque de fato
escocês, porém milimetricamente dosado pelo garçom suíço
Stuckert – o Estuca.
O
que não se dava nas mercearias enxertadas de uisquerias. Nessas –
Pardellas, Lidador. Grande Ponto, Casa Carvalho, Vilariño – o
uísque era generoso, apesar de amplamente discutível sua
autenticidade.
Grande
animador desses bares foi o médico pernambucano Eustáquio Duarte,
criador do gabarito fosfórico: pleiteou e conseguiu que a dose
chegasse à altura de uma caixa de fósforos colocada em pé ao lado
do copo.
Eustáquio
(Totó Borum para os íntimos) intitulava-se o proletário e era
autor de elaborada classificação psicofísica das mulheres (a
pebologia); essa teoria era o enlevo de todos os frequentadores,
notadamente do poeta Vinícius. Era ainda o médico (mas atribuía a
paternidade a um tal de Fernando C. Pessoa, gerente de hotel na
Bahia) autor de sonetos pornográficos da mais pura linhagem
bocagiana.
Andou
por esses bares ilustres – falo apenas dos que melhor conheci no
centro da cidade – toda uma geração de vários sotaques.
Eneida
(que, antes do Baile dos Pierrots, criou no Vermelhinho um forró
carnavalesco de portas cerradas) era vista a todo momento, com seus
balangandãs tilintantes, entrando no Instituto Nacional do Livro ou
dele saindo.
Rosário
Fusco era onipresente, deixando à porta de todos os bares um táxi à
espera. Hoje esse dom da ubiquidade pertence ao corretor Luís
Antônio Pontual.
Zé
Lins do Rego era detectado à distância por sua gargalhada.
Com
ar de menino levado e lavado, Lamartine Babo já entrava trauteando
uma canção amena.
Ari
Barroso, pelo contrário, turbilhonava para dentro do bar com gestos
e gritos homéricos: parecia que a guerra fora declarada ou que um
ônibus passara por cima dele; mas não era nada.
Por
ali, entre Presidente Wilson e Almirante Barroso, circulou o Rio
artístico, do fim da guerra à guerra fria, mas a verdade histórica
manda dizer que a falta de transporte no fim da tarde foi também uma
determinante desse comportamento boêmio.
Em
dezembro de 1949 foi inaugurado o Juca's Bar, na Rua Senador Dantas:
era o alívio do ar refrigerado que chegava.
Lá
se instalaram rapidamente assessores do Presidente Juscelino, os
irmãos Conde com o Jornal de Letras, os irmãos Chaves, que atraíam
os nordestinos itinerantes.
Olívio
Montenegro era contumaz e Gilberto Freyre costumava dar as caras.
Era
uma mistura sensacional, estimulante. Ali todos os setores tinham
suas embaixadas. Dou uns poucos exemplos:
Rubem
Braga representava a prosa e Vinícius de Moraes o verso; Stanislaw
Ponte Preta, o humorismo; Carlos Leão representava a arquitetura
renovadora, passando a noite a desenhar mulheres mais em bom papel
que um bom mineiro comprava na papelaria ao lado; o Coronel Amílcar
Dutra de Menezes representava o Estado Novo em geral e o DIP em
particular, mas soube tornar-se amigo de velhos inimigos; Antiógenes
Chaves falava em nome das classes empresariais; Zé Lins, em nome do
Flamengo; o Comandante João Milton Prates representava com classe a
Presidência da República; às vezes aparecia Agildo Barata ou outro
rebelde histórico; Luís Jardim, chupitando seu uísque com o
relógio em cima da mesa, era o próprio secretário da UDN; a
jornalista Jane Braga vinha em nome do Texas; Di Cavalcanti era o
ponto alto das artes visuais, embora só admitisse, por tema de
conversa, literatura e mulheres bonitas; estas, por sua vez, estavam
muito bem representadas na pessoa de Tônia Carrero, enquanto Araci
de Almeida era o samba em pessoa.
Mas
algumas brechas iam se abrindo no trânsito compacto do crepúsculo e
os boêmios começaram a deixar a cidade mais cedo e a criar alma
nova na Zona Sul. Em bares que iam igualmente brilhando, apagando-se
e morrendo. Ou pelo menos morriam para eles.
É
o caso do Alcazar e do Maxim's, em Copacabana; do Jangadeiro e do
Zeppelin, em Ipanema; do Clipper, no Leblon.
No
Alcazar (em cima morava o poeta Augusto Frederico Schmidt) ia o
pessoal que não perdia o cinema das dez e muito menos o chope da
meia-noite às duas da manhã; o Maxim's, com Sílvio Caldas e Araci
à frente, absorveu todos os musicais do Vilariño; no Jangadeiro
aparecia Lúcio Cardoso; ao Zeppelin afluía aos domingos uma boa
torrente das reuniões da casa de Aníbal Machado; no Clipper
imperavam Antônio Maria (fragorosamente) e Dorival Caimmy (de
mansinho).
Mas
estes bares morreram ou mudaram de personalidade como do uísque para
a água, o que é mais antipático que a morte. Como morreram muitos
outros que conheci no breve espaço de um entardecer que durou vinte
anos.
O
bar do Hotel Central, por exemplo, na Praia do Flamengo, que servia
rosbife de tira-gosto e era um encanto; a Brasileira, na Cinelândia,
que era mais uma confeitaria, mas onde encontrei uma tarde o vigoroso
romancista católico Georges Bernanos fazendo um escarcéu de mil
diabos porque não podia escrever com o escarcéu que os garçons
faziam; o Segunda Frente, em Copacabana, que morreu logo depois que
os sócios (um deles era o pintor Raimundo Nogueira) e seus amigos
beberam a última gota do estoque antes de entrar dinheiro na caixa.
São
muitos outros, mas a História dos Bares do Rio, que deveria
ser escrita, precisaria ser contratada por um editor.
Por
fim, ultimamente, morreu o famosíssimo Lamas, no Catete. Foi
devidamente chorado na imprensa e continuará sendo lacrimejado nas
centenas de bares em que se espalham hoje os remanescentes de todos
esses antros de perdição.
Pois
agora, quando desaparece também o Bon Marché (Avenida Copacabana,
esquina de Siqueira Campos), os boêmios do Rio, tangidos pela
demolição imobiliária, vivem pelos descaminhos da diáspora.
Aguentou 73 anos de existência.
Aquela
esquina estava predestinada a libações: em 1892, ao ser inaugurada
ali defronte a estação de bondes houve um lauto lunch, com
brindes de champagne ao Marechal Floriano Peixoto... à Guarda
Nacional... à Armada... ao Exército... à Intendência Municipal...
e à diretoria da Companhia do Jardim Botânico.
Não,
houve mais um, o de honra, erguido pelo Presidente do Senado ao
Marechal Floriano Peixoto e ao engrandecimento da República.
No
Bon Marché, Pixinguinha animou bailes de carnaval.
Por
ali passaram generais, almirantes, escritores, desembargadores,
artistas, jogadores de futebol, milionários, políticos, delegados,
sambistas e o sempiterno Gasolina, que aliás não passou e nunca fez
nada e não saberá aonde ir quando for removido o último tijolo do
prédio.
Viveram
no Bon Marché algumas gerações de bêbados ilustres, de gente que
bebia e se entendia e que continuará se entendendo.
Pois
uma lei rege a harmonia das esferas humanas: Cristo nos convidou a
amar o próximo como a nós mesmos; mas a verdade é que só os
bêbados aturam os bêbados; e só os sóbrios aturam os sóbrios.
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