Félix
Valois
Pensei
que já havia visto de tudo nesta vida. Nos festivais, os bois voam;
na República, os ladrões são senhores; no mundo, o terrorismo bota
banca. O quê, então, haveria de me faltar à contemplação?
Assim
pensando, eis que sou tomado de monumental surpresa, que veio acabar
com essa minha tola pretensão de onisciência, digo melhor, de
onivisão, porque de conhecimento mesmo, bem sei das minhas
limitações e carências.
E
qual teria sido o fato causador de tamanha perplexidade, capaz de
abalar a serena placidez da minha velhice?
É
simples: li nos jornais que, na Câmara Municipal de Manacapuru, os
ilustres edis aprovaram uma resolução (não sei o termo técnico é
exatamente esse), por via da qual proibiram um de seus pares de usar
da palavra por noventa dias.
O
homem pode até comparecer às sessões do augusto parlamento, desde
que mantenha a boca rigorosamente fechada, sem nem ao menos piar, sob
pena, suponho, de que lhe cassem a palavra, ou, talvez, o mandato.
Meu
caro leitor, eu lhe pergunto: onde é que já se viu uma coisa
destas? Um parlamentar que não pode discursar é tão escasso quanto
um trevo de quatro folhas, sendo que estes parece que surgem por
simples deformação genética no reino vegetal, enquanto a outra
espécie decorre de deliberada decisão de seres supostamente
pensantes.
Cícero,
que empolgava o senado romano com sua oratória fulgurante, há de
estar repetindo no túmulo sua tradicional advertência: “Até
quando, Catilina, abusarás da nossa paciência?”
Claro
que nunca deve ter passado pela cabeça do tribuno amordaçar o
encrenqueiro Catilina.
Admitamos
que a verificação de presença, lá na Câmara de Manacapuru, seja
feita pela chamada nominal de seus eméritos componentes.
Quando
chegar a vez de o mudo responder “presente”, cuido que só lhe
restam algumas alternativas, todas elas bizarras: levantar-se e
orgulhosamente bater com a mão no peito, para indicar que está
cumprindo sua obrigação elementar; ou levantar uma placa, onde se
leia “estou aqui”, agitando-a freneticamente para que o
secretário realize a devida anotação.
Pode
ele, ainda, se dispuser do artefato, enviar mensagem por código
Morse, valendo-se do tradicional telégrafo, que ainda deve ser usado
por quem conseguiu realizar a proeza de que se cuida.
Na
remota hipótese de que a modernidade cibernética já tenha batido
às portas daquele parlamento, poderá então o sem língua usar um
celular ou um computador, enviando a tal mensagem de presença por
via de uma dessas invenções, úteis mas chatas, a que os
aficionados do ramo chamam SMS, e-mail, ou, no amazonês mais puro,
simplesmente zapzap.
Essa
pândega me fez recordar outras situações folclóricas que a
tradição popular incorporou.
Conta-se
que, em certo tribunal brasileiro, o acúmulo de papéis estava
adquirindo proporções alarmantes. Centenários autos de processo se
amontoavam em depósitos insalubres, colocando em risco a saúde do
infeliz funcionário que com eles tivesse que lidar.
Foi
instituído o clássico “grupo de trabalho” para diagnosticar a
situação e sugerir medidas que pudessem resolver o problema.
Pagaram-se jetons e diárias, houve reuniões extraordinárias e
peritos de alta especialização foram ouvidos. Ao cabo de mais de
seis meses de ingentes esforços, o chefe do grupo orgulhosamente
assinou o relatório final, recomendando de maneira singela que os
papéis que já não tivessem utilidade (o que era praticamente a
totalidade) fossem incinerados.
Foram-no?
Acredito que sim, pois foi do seguinte teor o despacho final, com a
deliberação do presidente da Corte de Justiça: “Tendo em vista
que no bojo do material a ser destruído, podem existir documentos
que sejam de interesse histórico, autorizo a incineração, desde
que todos os papéis sejam devidamente fotocopiados e arquivadas as
fotocópias correspondentes. Cumpra-se”.
As
cópias, por serem novas, não haveriam de estar mofadas, de forma
que Sua Excelência matou dois coelhos com uma só cajadada.
Por
essas e outras é que não me provocou espanto a leitura de um texto
engenhosamente elaborado por um poeta de língua portuguesa.
Dado
à contemplação dos fenômenos naturais, o vate sempre se extasiava
com os crepúsculos matutino e vespertino, admirando-lhes a
fulgurância das cores e restando empolgado com o processo repetitivo
do nascer e do pôr do sol.
Mas
era um filósofo o nosso bom poeta. E a dúvida, essa fazedora de
sapiências, foi crescendo em seu íntimo, acutilando-lhe a
curiosidade.
Resolveu
traduzi-la na forma em que era mestre, legando à humanidade estas
preciosas reflexões: “Uma coisa neste mundo/ Que não posso
compreender/ É o sol nascer de dia e de noite se esconder/ Dia é
dia, ora essa/ Que vem cá o sol fazer?/ De noite, sim, que é
escuro/ É que devia aparecer”.
Temos,
pois, que o episódio de Manacapuru, coloca a terra de Ajuricaba na
vanguarda do parlamentarismo moderno.
Acabamos
de criar o primeiro parlamento do mundo em que é proibido discursar.
Se
tomarmos como exemplo o que acontece no Congresso Nacional, a partir
de algumas legislaturas e tendo como parâmetro certos pais da
pátria, seremos forçados a convir em que a medida não é de todo
descabida.
Antidemocrática,
inusitada e inexplicável, mas… da maneira como discursam alguns
parlamentares…
Convenhamos
mesmo.
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