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quarta-feira, abril 08, 2015

Um parlamentar mudo


Félix Valois

Pensei que já havia visto de tudo nesta vida. Nos festivais, os bois voam; na República, os ladrões são senhores; no mundo, o terrorismo bota banca. O quê, então, haveria de me faltar à contemplação?

Assim pensando, eis que sou tomado de monumental surpresa, que veio acabar com essa minha tola pretensão de onisciência, digo melhor, de onivisão, porque de conhecimento mesmo, bem sei das minhas limitações e carências.

E qual teria sido o fato causador de tamanha perplexidade, capaz de abalar a serena placidez da minha velhice?

É simples: li nos jornais que, na Câmara Municipal de Manacapuru, os ilustres edis aprovaram uma resolução (não sei o termo técnico é exatamente esse), por via da qual proibiram um de seus pares de usar da palavra por noventa dias.

O homem pode até comparecer às sessões do augusto parlamento, desde que mantenha a boca rigorosamente fechada, sem nem ao menos piar, sob pena, suponho, de que lhe cassem a palavra, ou, talvez, o mandato.

Meu caro leitor, eu lhe pergunto: onde é que já se viu uma coisa destas? Um parlamentar que não pode discursar é tão escasso quanto um trevo de quatro folhas, sendo que estes parece que surgem por simples deformação genética no reino vegetal, enquanto a outra espécie decorre de deliberada decisão de seres supostamente pensantes.

Cícero, que empolgava o senado romano com sua oratória fulgurante, há de estar repetindo no túmulo sua tradicional advertência: “Até quando, Catilina, abusarás da nossa paciência?”

Claro que nunca deve ter passado pela cabeça do tribuno amordaçar o encrenqueiro Catilina.

Admitamos que a verificação de presença, lá na Câmara de Manacapuru, seja feita pela chamada nominal de seus eméritos componentes.

Quando chegar a vez de o mudo responder “presente”, cuido que só lhe restam algumas alternativas, todas elas bizarras: levantar-se e orgulhosamente bater com a mão no peito, para indicar que está cumprindo sua obrigação elementar; ou levantar uma placa, onde se leia “estou aqui”, agitando-a freneticamente para que o secretário realize a devida anotação.

Pode ele, ainda, se dispuser do artefato, enviar mensagem por código Morse, valendo-se do tradicional telégrafo, que ainda deve ser usado por quem conseguiu realizar a proeza de que se cuida.

Na remota hipótese de que a modernidade cibernética já tenha batido às portas daquele parlamento, poderá então o sem língua usar um celular ou um computador, enviando a tal mensagem de presença por via de uma dessas invenções, úteis mas chatas, a que os aficionados do ramo chamam SMS, e-mail, ou, no amazonês mais puro, simplesmente zapzap.

Essa pândega me fez recordar outras situações folclóricas que a tradição popular incorporou.

Conta-se que, em certo tribunal brasileiro, o acúmulo de papéis estava adquirindo proporções alarmantes. Centenários autos de processo se amontoavam em depósitos insalubres, colocando em risco a saúde do infeliz funcionário que com eles tivesse que lidar.

Foi instituído o clássico “grupo de trabalho” para diagnosticar a situação e sugerir medidas que pudessem resolver o problema. Pagaram-se jetons e diárias, houve reuniões extraordinárias e peritos de alta especialização foram ouvidos. Ao cabo de mais de seis meses de ingentes esforços, o chefe do grupo orgulhosamente assinou o relatório final, recomendando de maneira singela que os papéis que já não tivessem utilidade (o que era praticamente a totalidade) fossem incinerados.

Foram-no? Acredito que sim, pois foi do seguinte teor o despacho final, com a deliberação do presidente da Corte de Justiça: “Tendo em vista que no bojo do material a ser destruído, podem existir documentos que sejam de interesse histórico, autorizo a incineração, desde que todos os papéis sejam devidamente fotocopiados e arquivadas as fotocópias correspondentes. Cumpra-se”.

As cópias, por serem novas, não haveriam de estar mofadas, de forma que Sua Excelência matou dois coelhos com uma só cajadada.

Por essas e outras é que não me provocou espanto a leitura de um texto engenhosamente elaborado por um poeta de língua portuguesa.

Dado à contemplação dos fenômenos naturais, o vate sempre se extasiava com os crepúsculos matutino e vespertino, admirando-lhes a fulgurância das cores e restando empolgado com o processo repetitivo do nascer e do pôr do sol.

Mas era um filósofo o nosso bom poeta. E a dúvida, essa fazedora de sapiências, foi crescendo em seu íntimo, acutilando-lhe a curiosidade.

Resolveu traduzi-la na forma em que era mestre, legando à humanidade estas preciosas reflexões: “Uma coisa neste mundo/ Que não posso compreender/ É o sol nascer de dia e de noite se esconder/ Dia é dia, ora essa/ Que vem cá o sol fazer?/ De noite, sim, que é escuro/ É que devia aparecer”.

Temos, pois, que o episódio de Manacapuru, coloca a terra de Ajuricaba na vanguarda do parlamentarismo moderno.

Acabamos de criar o primeiro parlamento do mundo em que é proibido discursar.

Se tomarmos como exemplo o que acontece no Congresso Nacional, a partir de algumas legislaturas e tendo como parâmetro certos pais da pátria, seremos forçados a convir em que a medida não é de todo descabida.

Antidemocrática, inusitada e inexplicável, mas… da maneira como discursam alguns parlamentares…

Convenhamos mesmo.

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