Por Guilherme Franco
Muito antes dos sambas-enredo das escolas de samba e dos
trios elétricos fazerem sucesso, quem animava os foliões eram as marchinhas de
carnaval. Alegres e fáceis de aprender, elas exprimem espírito das festas de
rua ao mesmo tempo que fazem crônicas breves de seu tempo, se incorporando à
cultura musical do país.
O auge da marchinha coincide com o auge do rádio, entre as
décadas de 1930 e 1960, antes que a televisão começasse gradualmente a ocupar
espaço na criação de modas e tendências associadas à música. Desde as primeiras
composições, na década de 1920, as estrofes eram cheias de duplo sentido,
deboches e em alguns casos, preconceitos.
A historiadora Rosa Araújo, juntamente com o jornalista
Sérgio Cabral, fez uma pesquisa na qual ouviram mais de 1.300 composições entre
as décadas de 1920 e 1970 para criarem o espetáculo teatral “Sassaricando: e o
Rio inventou a marchinha”. Como verdadeiras crônicas do cotidiano da época, as
marchinhas abordavam praticamente todos os assuntos: comportamento, vida
doméstica, família, economia, clima, serviços urbanos, história do Brasil,
entre outros.
De acordo com ela, não havia temática proibida à época
quando o assunto eram as marchinhas de carnaval, o que valia era a criatividade
e a brincadeira. As canções eram como cartuns, uma maneira rápida e vívida de
cristalizar um aspecto engraçado ou paradoxal de uma situação qualquer.
“Elas faziam a crônica dos temas cotidianos com sarcasmo e
bom humor, de tudo que atrai a atenção do povo. Não havia preocupação com
questões político-sociais. No carnaval tudo é festa e alegria, pois são dias em
que o Brasil está de perna para o ar”, explica.
Segundo a historiadora, as sátiras estavam adaptadas ao
contexto político do momento. “Naquele período ninguém tinha noção do
politicamente correto, o feminismo estava nascendo e o racismo era velado. No
entanto, as pessoas sabiam que existiam esses preconceitos, mas foram noções
que se desenvolveram com mais clareza no século XXI”.
Rosa Araújo entende que as marchinhas de carnaval ainda vão
animar por muitos anos os foliões. “Elas são eternas, um patrimônio nacional.
Serão sempre bem-vindas, pois retratam a história do Brasil”, crê.
Entre as marchinhas mais conhecidas com viés preconceituoso
estão “Cabeleira do Zezé“— em que a homofobia está presente ao se perguntar se
o “Zezé” é “transviado” e mandando cortar seus cabelos — e “Maria Sapatão” — em
que se confunde identidade de gênero e orientação sexual. No caso da marchinha
“O Teu Cabelo Não Nega”, música da década de 30, o verso “Mas como a cor não
pega, mulata/ Mulata eu quero o teu amor” é ilustrativo de um racismo nada
implícito.
Para a militante feminista e autora do blogue “Que Nega é
Essa?”, Aline Ramos, o fato das letras terem sido criadas num contexto político
diferente do atual não significa que elas eram aceitas pelos grupos
minoritários. “A diferença está na maneira em que essas pessoas se organizavam
para reivindicar seus direitos e apontar o preconceito. Precisamos encarar as
marchinhas como dispositivos culturais com forte poder de mensagem. E se essa
mensagem violenta um grupo social de algum modo, ela deve ser revista”, opina.
“Homofobia, racismo, transfobia e machismo matam do mesmo modo que matavam no
passado”, completa.
Aline aponta os novos blocos de rua como um fator que pode
ganhar força e se diferenciar das letras compostas nas últimas décadas. “Atualmente,
esses blocos não possuem um apelo popular grande, mas são manifestações que
estão surgindo de grupos que não estão satisfeitos com o que está estabelecido.
Imagina que legal estar no bloco das negas empoderadas em vez do bloco da nega
maluca?”, conclui.
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