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terça-feira, junho 02, 2009

Recordando os Anos Dourados


No bairro da Cachoeirinha, as festinhas domésticas chamadas de “brincadeiras” surgiram com o advento da Beatlemania, na segunda metade dos anos 60, fizeram muito sucesso no período de 1970 a 1975, experimentaram um revival em 1977 (por conta do filme “Embalos de Sábado à Noite”, do John Travolta) e, depois, como num passe de mágica, sumiram sem deixar vestígios. Nunca entendi direito o que aconteceu.

Naquela época, eu sabia que ia haver “brincadeira” em casa quando entrava na cozinha, em uma manhã de sábado, e me deparava com um monte de garotas (minhas duas irmãs mais velhas, Simone e Silene, e as amigas delas, Fátima Loura, Graça Câmara, Vaneida Forasteiro, Lílian Reis, as irmãs Thelma, Wanda e Nair Chase, Sulamita Farias, etc ) debruçadas sobre a nossa imensa mesa de refeições, em uma atividade frenética.

Uma delas cortava queijo coalho em quadradinhos perfeitos, outra cortava rodelas de salsicha em lata, outra descaroçava e cortava azeitonas em tirinhas, uma outra enfiava em um palito um pedaço de queijo, um pedaço de salsicha, um pedaço de azeitona e colocava os canapés em um gigantesco prato de papel metalizado.

Simultaneamente, uma garota transformava vários pacotes de pão de forma em pequenos triângulos isósceles, tendo o cuidado de retirar a casca, outra batia no liquidificador maionese, patê de fígado em lata, tiras de bacon e ervas (manjericão, hortelã, salsinha, cebolinha) e uma terceira ia passando o creme resultante nos pedaços de triângulos, formando pequenos “sandubas” triangulares, que eram amontoados em outro gigantesco prato de papel metalizado.

Por último, várias delas se revezavam no preparo de “calcinha de seda” (cachaça, leite condensado e refresco k-suco de cereja, morango ou uva) e de “leite de tigre” (cachaça, leite condensado e chocolate em pó). As bebidas eram armazenadas em garrafas plásticas e colocadas na geladeira.

Os limões pra “caipirinha” também eram cortados e guardados na geladeira porque a bebida tinha que ser feita na hora, senão ficava amarga. O certo é que de tanto provarem essas poções mágicas pra encontrar o “ponto certo”, era comum encontrar no fim da tarde uma ou duas amigas das meninas completamente bêbadas. Uma zorra!

A “brincadeira” começava invariavelmente às 20h30. Boca livre total. Qualquer um podia chegar junto, entrar sem pedir licença, biritar à vontade, comer os canapés e sandubas, tirar uma menina pra dançar e até dar uma de DJ, colocando suas músicas favoritas. Discos, em casa, era o que não faltava. Por baixo, eu cheguei a ter mais de mil LPs. A Simone tinha uns 500 compactos.

Músicas que mais rolavam na encrenca? De nacionais, quase tudo da Jovem Guarda, com destaque para Renato e seus Blue Caps, além de Ronnie Von, Clara Nunes, Elis Regina, Jorge Ben, Quinteto Violado, Benito de Paula, Tim Maia, Martinho da Vila, Novos Baianos, Pessoal do Ceará e Wilson Simonal.

De internacionais, dos Beatles ao Procol Harum (“A Whiter Shade Of Pale” era obrigatória), de Simon & Garfunkel a Elton John, de Rolling Stones a Deep Purple, de Monkees a Nilson, de Chuck Berry a Led Zeppelin, de James Brown a Marvin Gaye. E, a partir de 1974, qualquer música que tivesse um prato vibrando (marca registrada da disco music). É, a galera não era tão exigente assim.

Pra encher a pista? “Celebration”, do Kool & The Gang. Quem era esperto, ainda fazia aqueles toques black de bater rapidamente com as palmas pra baixo nas mãos do parceiro de palmas pra cima e dar uma encostadinha de ombro, enquanto se requebrava em direção a gatinha. Nunca vi nenhuma mulher rejeitar uma dessas paradas.

Pra manter a agitação do pedaço? “Venus”, do Shocking Blue. “My Pledge Of Love”, do The Joe Jeffrey Group. “Disco Inferno”, dos Trammps. “Hot Stuff”, da Donna Summer. “Le Freak”, do Chic. “Ring My Bell”, de Anita Ward. “Rock Your Baby”, de George McCrae. “Don’t Leave Me This Way”, da Thelma Houston. “Don’t Let Me Be Misunderstood”, do Santa Esmeralda. “Reach Out (I’ll Be There)”, da Gloria Gaynor.

Pra desacelerar? “Let The Music Play”, do Barry White. “If You Could Read My Mind”, da Chaka Khan. “Get Down On It”, do Kool & The Gang. “You Make Me Feel (Mighty Real)”, do Sylvester. “Upside Down”, da Diana Ross. “Papa Was A Rolling Stone”, dos Temptations. “Brick House”, dos Commodores. “Kung Fu Fighting”, do Carl Douglas. “You Sexy Thing”, do Hot Chocolate.


A festa acabava impreterivelmente às 2 da madrugada. No dia seguinte, o ambiente era de terra arrasada. Restos de canapés, bitucas de cigarros, capas de disco e copos descartáveis por todo canto. Vômitos nos locais mais insuspeitos. Catinga de urina pra todo lado. E o vaso sanitário, invariavelmente, entupido por algum filho da puta.

Minha única preocupação era com os discos. Confesso que não era o melhor colecionador do mundo. Tratava direitinho deles, mas foi muita festa em casa, muita gente tacando o dedão gorduroso no sensível vinil, um ou outro usando até mesmo para botar o copo de “caipirinha” em cima. Mas os danados resistiram.

Havia “brincadeiras” memoráveis. Na casa da Dodora, filha mais velha do seu Aristides, dono do lendário Top Bar, além das músicas de primeira linha, ainda rolavam atrações especiais, como as sessões de “dublagem” (e nesse quesito, Ratinho era um gênio!).

Um dos hits mais tocados era “Papa Oom Mow Mow”, do The Rivingtons, que eu me esforçava inutilmente para “dublar”, mas ficava parecendo, no máximo, um sujeito tendo um ataque de epilepsia.

Na casa da Solange, irmã do Sidão e da Sôngila, eu ouvi pela primeira vez uma música do The Clevers (acho que era uma versão de “No Reply”, dos Beatles, não tenho certeza) que me deixou completamente pirado. Só muitos anos depois é que fiquei sabendo que aquele era o nome da primeira formação de Os Incríveis.

Na casa da Dorothéia, ali na rua Manicoré, onde fica hoje o Terminal de Integração da Cachoeirinha, aconteciam festinhas praticamente todo sábado (lá em casa era de seis em seis meses e olhe lá!) e rolavam exclusivamente músicas “lentas” (B.J. Thomas, Pholhas, Johnny Mathis, James Taylor, Roberto Carlos). Era o cenário ideal para sessões de “acocho” – o namorico casual da época que hoje virou sinônimo de “ficar”.

Havia uma explicação para a presepada. É que a casa da Dorothéia era de madeira e tinha o piso no estilo palafita, suspenso a um metro do chão. Quer dizer, qualquer agitação mais forte no assoalho fazia o braço da eletrola Nivico “pular” – uma das coisas mais “fuleiras” que podia acontecer em uma “bincadeira” de respeito. O máximo da “fuleiragem” eram discos “furados”, que ficavam repetindo o mesmo trecho de uma música ad infinitum.

Nossa diversão favorita era levar algum compacto dançante (“There It Is”, do James Brown, era o favorito) escondido embaixo da camisa, e, discretamente, quando a sala estivesse completamente lotada de casais dançando de rostos colados, colocar a música pra tocar. Ninguém ficava parado, claro. E a agulha da eletrola só faltava quebrar, de tanto pula-pula no assoalho de madeira, deixando a Dorothéia à beira de um ataque de nervos.

Às vezes tinha tanta gente dançando (“pulando”, seria o termo correto), que a Dorothéia levava uma eternidade para chegar até a eletrola e interromper a esbórnia. O compacto era confiscado e quebrado por ela na frente dos presentes, mas a zoeira compensava a perda. Um dia, um filho da puta qualquer nos dedurou e passamos a ser “personas non grata” da anfitriã. Nunca mais pudemos entrar na “brincadeira”.


Em busca de emoções cada vez mais fortes, a nossa turma (Luiz Lobão, Chico Porrada, Antonio Gordo, Nonato Índio, Gilson Cabocão, Airton Caju, Marcos Pombão, Gilmar Velhota, Áureo Petita, Paulo César Dó, Betinho, Cumbuca, Heraldo Cacau, Renato Doido, Carlinhos, Newton, Nelson, Bolão, Pelado, Clóvis, Fuinha, Bordado, Careca, Alemão e Zé Carlos) começou a freqüentar as “brincadeiras” na Cohab-Am da Raiz – e iniciamos a expansão de nossa network de namoradinhas casuais para além das fronteiras da Cachoeirinha.

O problema é que nessas festinhas mais periféricas, apesar de serem em casas de alvenaria com bons aparelhos de som, a música era “meio boca”, talvez porque a baixa informação dos moradores não ia além de replicar em casa os hits tocados diariamente naqueles programas de rádio vagabundos com suas “paradas musicais” de meia tigela.

A solução foi a gente começar a levar alguns discos para agitar a fuzarca (Gary Glitter, Barry White, Funkadelic, Barrabas, Slade, Led Zeppelin, Deep Purple, Creedence, James Brown, Sweet, Donna Summer, Chic, etc), que as gatinhas jamais tinham escutado antes e, quando ouviam pela primeira vez, ficavam baratinadas.

Isso, mais a habilidade para dançar qualquer tipo de música, de rock pesado a funk melódico, de disco music a mela-cueca (com direito a rostinho colado e mãos espalmadas no buzanfã das meninas), logo fizeram da gente os caras mais assediados do pedaço.

Foi quando surgiu um fenômeno curioso: começamos a ser convidados para participar de “brincadeiras”, com presença exclusivamente feminina, nos mais distantes rincões da cidade, tipo Cafundó do São Francisco e Cohab-Am do Parque Dez. A única exigência era que a gente levasse os discos.

No início era meio constrangedor a nossa galera chegar pela primeira vez naqueles subúrbios distantes e perceber um monte de caras mal encarados, reunidos do outro lado da rua, em frente da casa em que estava rolando a “brincadeira”, onde dezenas de mulheres dançavam alegremente.

É que a gente tinha prioridade na escolha das fêmeas que ia “acochar” – a choldra masculina do lugar só ia entrar pra pegar o resto da xepa depois que a gente tivesse acabado de fazer a feira. Eu, Dó e Renato Doido, que fornecíamos os discos, tínhamos precedência na escolha das gatas em relação ao resto de nossa turma.

Era também um de nós três que escolhia a trilha sonora já que sabia de cor e salteado quais as faixas quentes de cada LP. Se o mulherio valesse a pena, a ênfase seria em músicas lentas, pra todo mundo dançar agarradinho. Se não, música frenética do começo ao fim e fosse o que Deus quisesse.

Na Cohab-Am do Parque Dez, porém, havia um grave problema de logística porque a gente chegava ao local de ônibus e eles paravam de circular à meia noite. A gente descia no ponto final, ali onde hoje é a Rua do Comércio e saía em busca do endereço (e uns 20, 25 machos de macacão Lee pedindo informação não devia ser uma visão muito agradável para os humildes moradores).


Quando a festinha acabava, por volta das 2h da manhã, o nosso retorno para a Cachoeirinha tinha que ser feito a pé, muitas vezes praticamente atravessando o conjunto de cabo a rabo para depois descer a rua Recife até a rua Belém, em frente ao Cemitério São João Batista, e de lá embicar até a rua Parintins, numa maratona de uns 6 km. Parecíamos uma versão ampliada daquela gangue do filme “Selvagens da Noite” (“The Warriors”).

O risco de sermos surpreendidos por marmanjos ultrajados querendo tomar satisfação era uma constante. Não era pra menos. Pô, a gente chegava ao bairro dos caras cheios de marra, acochava as meninas mais bonitas da festa, enchia a cara de birita, dançava de um jeito esquisito e quando ia embora a festa era encerrada! Que palhaçada era aquela?...

Para desestimular os nativos, a gente tinha alguns truques: alguém ia tirar o isqueiro do bolso e deixava cair no chão, de propósito, um cabo de embreagem bem enroladinho. Ou uma luva inglesa. Ou ainda, quando a tensão estava quase insuportável, uma navalha. Aquilo era um indicativo de que a gente podia levar muita porrada, mas também ia tirar o sangue de muita gente.

Felizmente, em dois anos de incursões semanais por essas quebradas, nunca ninguém quis tirar a prova dos nove. Nosso pacifismo só costumava ser posto à prova em bailes de carnavais. Aí, não tinha jeito. Bastava um “alemão” olhar atravessado para um de nós e a alcatéia não pensava duas vezes antes de atacar. Saíam pancadarias infernais de acabar com as festas. Mas isso é uma outra história.

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