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sexta-feira, junho 05, 2009

Quarup para um guerreiro querido


De acordo com a tradição dos índios do Xingu, o Quarup – imortalizado por Antonio Callado num dos principais romances da literatura brasileira na década de 60 - é realizado quando morre algum índio respeitado. As aldeias vizinhas são convidadas para a festa e convidados não-índios também são recebidos.

Na festa, que na verdade é um ritual, os mortos são representados por toras de madeira, chamadas quarup, fincadas no centro da aldeia. Na madrugada, contadores de histórias entoam cânticos chorosos, agitando o maracá (espécie de chocalho, herdado por religiões amazônicas como o Santo Daime), e evocam o passado de cada guerreiro morto. A lenda diz que durante o ritual os mortos podem voltar à vida por breves momentos.

Ao pé de cada tora um pequeno fogo é aceso e mantido assim noite adentro. A celebração é o último ritual de passagem, para que os espíritos encontrem um lugar confortável e seguro ao nascer do novo dia, quando o fogo é então apagado, de acordo com a tradição indígena.

Depois de devidamente abastecido com malte escocês, gelo, água Perrier, cigarros, iscas variadas e uma nova coletânea de house music (Deep Heat Collection – só remixes invocados de Adeva, Todd Terry, Milli Vanilli, Kevin Saunderson, Smith & Mighty, Raze, Farley “Jackmaster” Funk, De La Soul, Royal House, Humanoid, Baby Ford, Donnell Rush, Inner City e Bootleggers, entre outros), acho que já posso começar o ritual.

Conheci o Ernesto Coelho em 1972, eu com 16 anos, ele com 17, quando começamos a estudar juntos na mesma classe, no 2º ano de Eletrotécnica, na ETFA. Nas tardes de sábado, ele costumava ir à minha casa para escutar clássicos do rock, que ambos colecionávamos – eu mais ligado em heavy metal, ele mais ligado a hard rock –, conversar fiado e encher a cara de caipirinha. Quando, em 1973, a maioria dos alunos começou a trabalhar no Distrito Industrial, ele foi um dos poucos que não embarcou no modismo.

Lembro de uma tarde em que a gente ouvia “Get Ready”, do Eric Clapton, e ele foi à loucura porque “Get Ready” era um clássico do Temptations, que havia ganho sua versão definitiva com o Rare Earth. Explicar que as músicas tinham o mesmo nome, mas as pegadas eram diferentes (a música de Clapton era um blues quase rock, a do Rare Earth, um rock com cara de blues, e as duas letras completamente diferentes), quase nos levou a um afogamento etílico. O sacana gostava de polemizar e, em termos de música, era um roqueiro fundamentalista.

Outra vez, ele foi lá pra casa e coloquei pra tocar “Jumpin’ Jack Flash”, com o Leon Russel, do concerto para Bangladesh (aquela iniciativa pioneira do George Harrison, em 1971, para ajudar as vítimas da fome e da guerra na região sul da Ásia) e quase que sai porrada. Ernesto não gostou de ouvir a seqüência – “Youngblood” – e se arretou todo, achando que o Leon Russel havia “destruído” a versão original do The Coasters. Imagino o que ele não deve ter achado da versão do Bad Company, em 1976...

O certo é que eu, Ernesto e Alcion Castelo Branco (primo do jornalista Castelo, editor do semanário Repórter, e do coronel James, ex-comandante da PM, e filho do ex-prefeito de Benjamin Constant, Alcindo Castelo Branco) formávamos uma trinca da pesada nos tempos da ETFA. O Alcion era meu amigo de infância desde os quatro anos de idade (ele também é um ano mais velho do que eu), já que era meu vizinho na Rua Waupés, atual Castelo Branco.

Mesmo quando depois, aos 10 anos, me mudei para a Rua Parintins, ainda assim continuamos a nos ver semanalmente, nas matinês do Cine Ipiranga, ou em visitas de cortesia de um na casa do outro. Sua mãe, Dona Zuzu, era uma artista plástica de mão cheia. Além do paisagismo ribeirinho, ela pintava as mais belas índias da face da terra. Seu único irmão, Alcenir, é um dos maiores guitarristas da cidade, conhecido no meio musical como “Magri”. Foi o Alcenir que me mostrou pela primeira vez o trabalho dos albinos Johnny e Edgar Winter, que curto até hoje.


(Da esquerda pra direita: Alcion, Chico Fera, eu, Zé Klein e o coronel James, durante o lançamento do meu livro “Folclore Político do Amazonas”, no Bar do Armando)

Que eu lembre, Alcion foi o primeiro sujeito que conheço a se interessar por futebol americano (que ele, apropriadamente, chamava de “brutebol”). Em 1970, ele arrumou uma bola oficial do esporte e todo sábado ia lá pra nossa casa, na rua Parintins, tentar nos convencer (eu, Simas, Mário Adolfo, Aloisinho, Zé Alfredo, Clóvis, Zé Carlos, Hércules, Luiz Lobão, Chico Porrada, Sidão) a participar daquela estupidez.

Como o sacana tinha uma força descomunal, ele era capaz de abraçar a bola de encontro ao peito e levar a mesma de sua área até ao gol adversário, mesmo sendo agarrado pela cintura por uns cinco moleques meio taludos. Era um trombador de respeito, tanto no ataque quanto na defesa. Na primeira vez que o tentei derrubar – me atirando em suas pernas – e quase fico sem um dos braços, voltei a me dedicar ao velho e inocente joguinho de futebol de botão.

Adolescentes, eu e Alcion fizemos algumas molecagens juntas – inclusive ouvir 35 vezes seguidas a música “Happy Man”, do Chicago, a bordo de sua Brasília amarela, enquanto procurávamos duas garotas pelas quebradas de Educandos. Não localizamos as vagabundas, claro, mas em compensação nunca mais esqueci da letra da música: “Merely by chance / Very unsuspected / You caught my heart / Unprotectin’ me / Now I’m fallin in love with you” (“Por mero acaso / Bem insuspeitado / Você prendeu meu coração / Me deixou desprotegido / Agora, me apaixonei por você”).

Mais tarde, na ETFA, quando ambos estudávamos na mesma sala de aula, Alcion ficou muito mais próximo do Ernesto, talvez assustado com a minha súbita conversão etílica e minha adesão integral à prática de “caboquear”, capitaneada pelo Ivaldo Gamas Barros (falo disso outro dia).

Ele acabou entrando na UTAM depois que eu saí, fez pós-graduação em engenharia elétrica em Itajubá (MG), com especialização em sistemas de segurança e proteção de pára-raios em redes de alta voltagem, e se aposentou como funcionário da Eletronorte no final dos anos 90 (o safado ainda pegou aquela mamata de se aposentar com 25 anos de serviço público por trabalhar em ambiente de alto risco...)

O certo é que de 2005 pra cá, eu só conseguia lhe localizar via Ernesto (que o próprio Alcion havia batizado de “grande cacique Ernesto Papavaca”). Mas agora, com a partida do Ernesto, essa tarefa ficou bem mais difícil. E o Alcion é um irmão querido, cuja estima pretendo manter pelo resto da vida.

Separados a partir da universidade, eu e Ernesto continuamos nos vendo com certa freqüência e trocando informações sobre rock, humorismo e música pop, tanto que, em 1982, ele me levou para escrever uma coluna de humor no jornal A Notícia, onde permaneci por quase um ano. Quer dizer, foi o Ernesto que me iniciou na chamada “grande imprensa” – fato devidamente creditado no livro “Amor de BICA”, lançado há quatro anos.

Voltamos a trabalhar juntos no Amazonas em Tempo, nos anos 90, quando eu era editor do caderno de cultura e ele repórter do caderno de esportes (o editor era o Flávio Seabra). Nesse meio tempo, Ernesto havia se transformado em um respeitado DJ, graças aos ensinamentos do mestre Raidi Rebelo, de quem ele havia se transformado em uma espécie de assistente informal.

Ernesto não chegou a renunciar inteiramente ao rock, mas se transformou em um “cristão-novo” da música disco/ house/ techno. Uma de suas últimas façanhas foi me presentear com 30 CDs de MP3 com mais de 1.500 hits de disco & house music – a maioria dos quais eu nunca havia escutado antes.


(Minha irmã Silane e meu primo Lincoln durante um réveillon no Solarium. No segundo plano, Ernesto e seus dois DJs auxiliares, Fernando e Lucivaldo)

Nos últimos três anos, Ernesto era presença constante como DJ nas festas que eu promovia, fosse em lançamentos de livros, fosse em comemorações de aniversários de algum familiar. No mínimo, a cada três meses, ele era requisitado para agitar algum fuzuê no Solarium.

Era uma maneira de ele obter uma grana a mais e eu, de curtir algumas músicas que só ele possuía. Eu era louco para colocar nas mãos o seu acervo de rockabilly. Ele sempre insistiu que se eu pegasse aquela “mina”, iria lhe desprezar. Bobagem.

Independente de qualquer coisa, Ernesto seria meu personal DJ pra sempre (e ele sempre soube disso). Além disso, se ele estivesse mesmo fodido e mal pago, como reportou o Holanda, ainda assim teria pelo menos uma dúzia de amigos para lhe pagarem as despesas. Só para citar alguns: Raidi Rebelo, Bosco Saraiva, Jairo Beira-mar, Alcion Castelo Branco, Gil Barbosa, Mario Dantas, Engels Medeiros, Carlos Almeida, Paulo Saraiva, Sebastião Peixoto, Reinildo Cunha, Mário Adolfo, Flávio Seabra, Aldisio Filgueira e esse vosso escriba.

A gente se falou pela última vez no dia 19 de dezembro do ano passado, durante o lançamento do meu livro “Alô, Doçura!”, no Solarium Eventos, onde ele foi o DJ residente. A festa terminou com o dia amanhecendo e todo mundo encharcado de álcool. Nunca imaginei que seria a última vez que o abraçaria. Ernesto ainda discotecou no reveillon da nossa família, no dia 31 de dezembro, mas não participei da fuzarca porque havia saído de barco com alguns amigos para ver a queima de fogos na Ponta Negra.

Nesses 38 anos de amizade, nunca vi o bom Ernesto Coelho se queixar de nada – só vim saber que ele era hipertenso e diabético pela matéria do Nelson Brilhante, no jornal A Crítica. Também não sabia que ele estava desempregado – pra mim, no lançamento do livro “Alô Doçura!”, ele disse que havia tirado férias de A Crítica para tocar um novo projeto e que gostaria muito que eu também participasse. Ficamos de conversar depois do carnaval.

Sua tragédia particular começou na segunda semana de fevereiro. Depois de sentir um certo desconforto e procurar um médico, Ernesto Coelho foi internado em uma clínica em virtude de sua taxa de glicose ter ido pras cucuias.

Enquanto ele estava internado, os ladrões invadiram sua casa (ele morava sozinho, quase em frente da sede do Libermorro) e saquearam tudo que puderam: discos, aparelhagem de som, equipamentos de sonorização e iluminação, computadores, diários escritos a mão, roupas, mobílias, o caralho a quatro.

Quando ele saiu da clínica, chegou em casa e constatou a presepada, o coração não resistiu. Infarto agudo do miocárdio. Assim que soube do acontecido, o presidente do GRES Reino Unido, Jairo Beira-mar, cancelou a festa na quadra da escola, que ocorreria naquele sábado. Ernesto era responsável pela mídia impressa da escola e foi velado na quadra da Reino Unido. Foi enterrado no domingo.

Eu só soube do ocorrido na segunda-feira seguinte, por meio de um comentário do Dudu Monteiro de Paula, no programa local do Globo Esporte. Juro que não acreditei. Aliás, não acredito até hoje. Pra mim, ele apenas viajou e qualquer dia vai chegar aqui em casa perguntando se tenho “a música Teenage Rampage, do Sweet, na versão original” (Sim, Ernesto, claro que tenho. Aliás, estou acabando de ouvir.).

De qualquer forma, a hora ainda é de chorar a partida prematura desse amigo querido. E repetir aquele velho chavão celebrizado pelo cartunista Jaguar: “Com tanto filho da puta pra morrer, por que logo o Ernesto?...”. Que tristeza! Que raiva! Que ódio! Que merda!


(A hora do “Parabéns Pra Você” nos 85 anos do velho, no ano passado, com a Dulce batendo palmas e o Ernesto apenas observando)

Um comentário:

Anônimo disse...

Mestre Simão,

Ha muito tempo atras comprei seu livro O Manual do Canalha, e o mesmo, assim como a biscate do bairro, passou pela mão de quase todos os meus amigos e seguiu rumo ao desconhecido ajudando e aconselhando a quem precisasse.
Recentemente descobri na internet a existência de uma outra obra, Alo Doçura. Procurei e não encontro em nenhum lugar. Como faço para comprar os dois livros? Existe em alguma loja virtual?
Meu e-mail é guirabelo1111@hotmail.com e ficaria muito grato se pudesse encontra-los para comprar!!!

um grande abraço
Guilherme