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segunda-feira, junho 29, 2009

Um ano sem Alberto Simonetti Filho


Alberto Simonetti, Rogelio Casado, Durango Duarte, Edu do Banjo, Afonso Toscano, eu e Engels Medeiros, durante o relançamento do Candiru no Bar do Armando

Na última quinta-feira, 25, fez um ano de falecimento do meu querido mano Alberto Simonetti Filho. Vítima de câncer no intestino, o advogado, que tinha apenas 62 anos, deixou além da mulher, Maria do Carmo Ribeiro Simonetti, três filhos: Alberto Simonetti Neto, Luiz Alberto Simonetti e Maria Luíza Simonetti. Todos advogados, tutti buona gente.

Presidente por quatro vezes da OAB-AM, Simona, como era mais conhecido, foi exemplo de administrador e empreendedor, tendo, em suas sucessivas gestões, deixado pelo menos quatro obras de grande envergadura: a sede social e o clube de campo da OAB, o prédio da Escola de Advocacia e o estacionamento para os advogados, nas proximidades do fórum.

Um dos fundadores da Banda Independente Confraria do Armando (BICA), o Simona não era festejado apenas entre os advogados. Era uma personalidade de grande popularidade na capital e no interior do Amazonas, sempre engajado no bom combate em prol da sociedade civil.

Eu o conheci em 1978, por conta de uma quizumba envolvendo o engenheiro Carlos Almeida e um bate-pau da repressão, e ficamos amigos pelo resto da vida. Dotado de uma memória privilegiada e de um bom humor permanente, Simona foi a minha principal fonte de informação sobre a maioria dos hilariantes “causos políticos” protagonizados pelo saudoso senador Fábio Lucena, de quem ele foi advogado por quase duas décadas.

Nos anos 90, a gente se encontrava praticamente quase todo santo dia, de segunda a sexta, no Bar do Armando, para colocar as fofocas em dia. O Simona era um boêmio diferente: não encarava nenhum tipo de bebida alcoólica nem demais aditivos químicos para estados alterados de consciência (limitava-se a beber coca cola diet e detonar sanduíches de x-porco em escala industrial), mas era sempre o mais divertido e bem falante da turma. Seu único vício era o cigarro, que fumava sem qualquer sentimento de culpa. Que nem eu e Felix Valois.

Nos finais de semana, como num passe de mágica, Simonetti simplesmente desaparecia de Manaus. A única exceção era no sábado magro de carnaval, dia de desfile da BICA, em que ele nunca deixou de comparecer. É que ele havia construído uma Passárgada particular, em Autazes, onde se refugiava sempre que havia uma oportunidade.

O “condado de Autazes”, como ele se referia à sua bela residência no município, era ponto de peregrinação permanente de empresários, políticos, membros do judiciário e da população humilde, em geral, a quem o advogado assistia com a maior abnegação do mundo. Se quisesse, Simona teria sido prefeito do município. Ele nunca quis.

Em 2001, aproveitando o feriado da Semana Santa, aceitei seu convite para conhecer o condado de Autazes. Era um motivo mais do que nobre: além de acompanhar pela primeira vez a encenação da Paixão de Cristo pelas ruas de Autazes, eu poderia fazer uma reportagem a respeito para a revista Amazônia 21 e, assim, ajudar a divulgar a cultura popular do município.


Jô, eu, Dinari e a barriga do Davi Almeida, no barco "a jato" do Simona

Como o esquema era boca livre total, sugeri ao advogado levar mais dois convidados (Jô e Davi Almeida) e ele concordou. No dia combinado, eu, Dinari, Jô e Davi embarcamos no barco “a jato” do Simona, no Porto da Ceasa. Batizado de “Comandante Lucas”, em homenagem ao seu primeiro neto, o barco era um colosso em termos de estabilidade, velocidade e conforto. Basta dizer que, entre outros requintes, era dotado de poltronas de avião.

Além do Simona, que estava pilotando o barco, a “tripulação” era formada por dona Maria, Neto, Beto e Sandra. O serviço de bordo também estava impecável: dezenas de sanduíches e pacotes de salgadinhos de todos os tipos (castanha de caju, amendoim, doritos, baconzitos, etc), refrigerantes, cervejas em lata, uísque, vinho tinto, vinho branco e champanhe. Em termos de tratar bem seus convidados, Simona era marrento.

Devia ser uma 8h da manhã. Simona consultou o GPS, a carta náutica, fez uma série de cálculos mentais e cantou a pedra: por volta de meio-dia a gente estava em Autazes. Aí, deu uma reduzida, e saiu “cantando pneu” em direção ao encontro das águas.

Fiquei meio cabreiro: a distância fluvial de Manaus a Autazes é de 324 km. Para cumprir aquele horário pré-estabelecido, o barco teria que desenvolver uma velocidade média de 80 km/h, o que é uma temeridade em se tratando de navegar pelo traiçoeiro Rio Amazonas, cheio de troncos de árvores boiando.

Parece que adivinhando meus pensamentos mais sombrios, o “comissário” Neto colocou logo uma cerveja em lata estupidamente gelada em minhas mãos. Seria a primeira das vinte latinhas que eu iria detonar ao longo da viagem.

Nesse dia, o Simona estava viajando sem a presença do Piloto, seu secretário informal, responsável pela manutenção das embarcações (nessa época, o Simona devia ter uma meia dúzia de barcos) e verdadeiro senhor das águas, conhecedor dos furos, igapós e paranás da região com a intimidade de um tucunaré borboleta.

Mais: pela primeira vez, Simona ia fazer um atalho, ou seja, em vez de seguir pelo rio Amazonas e subir o rio Autaz-Açu, ele ia entrar pelo furo do Cuia até o rio Autaz-mirim, de lá embicar pro lago do Cuia, e só então atingir o rio Autaz-Açu, um pouco abaixo da cidade. Desse jeito, o tempo de viagem seria encurtado em três horas.

Tudo estava correndo de acordo com o planejado. Além de pilotar o “a jato” com a perícia de um experimentado lobo do mar, Simona ia me apontando e dando o nome de cada acidente geográfico. Não tenho certeza, mas a impressão que tenho é que ele possuía um mapa cartográfico dentro da cabeça.

De repente, a gente entrou no rio Autaz-mirim, que tem uma cor cinzenta, quase cor de chumbo, lembrando muito o rio Andirá, em Barreirinha, e, dali a meia hora, adentramos no lago do Cuia, que causa espanto pela grandiosidade. Por trás da copa de árvores, visualizamos ao longe a cidade de Autazes.

Simona voltou a consultar o GPS, a carta náutica, fez uma série de cálculos mentais e voltou a cantar a pedra: dali a vinte minutos a gente estava em Autazes. Devia ser umas 11h30. Ele pediu ao Neto para ir até a proa e localizar o furo do “Quem diria!”, nossa passagem para o rio Autaz-Açu.

E aqui cabe uma explicação: o lago do Cuia possui uma centena de “furos”, cada um com no máximo três metros de largura. Somente o furo do “Quem diria!” dá acesso ao rio Autaz-Açu. Todos os outros começam e desembocam no lago. Trata-se de uma espécie de labirinto aquático do Minotauro e se você não tiver nenhum fio de Ariadne escondido na manga é melhor não se aventurar na brincadeira.

Neto olhou, olhou, olhou e disse que não estava encontrando nenhum ponto de referência. Simona reduziu a velocidade do barco e saiu margeando o lago, olhando atentamente para os “furos”. Não havia uma mísera placa de sinalização. Na verdade, ele já havia feito aquele percurso dezenas de vezes, mas sempre com o Piloto no comando do barco.

Não sei se foi uma samaumeira ou uma castanheira que lhe despertou a atenção, o certo é que Simona falou “pode deixar, Neto, o furo é aquele ali” e avançou destemidamente em direção à pequena abertura entre as árvores, quase invisível a olho nu. Depois de meia hora navegando, saímos, ou melhor, entramos de novo em alguma parte do lago.

Pela primeira vez na viagem, percebi que o Simona ficou nervoso, já que havia perdido qualquer ponto de referência. A gente agora não sabia se havia boiado acima ou abaixo do furo – o lago do Cuia tem vários quilômetros de extensão com uma vegetação absolutamente uniforme. Simona olhava para um lado, para o outro, mas parecia estar perdido. Já levemente bêbado, eu estava achando aquilo tudo muito divertido.

Começamos a navegar em busca de alguma alma viva naquele mundão perdido. Depois de meia hora, encontramos uma fazenda. Neto deu a segunda má-notícia do dia: o combustível estava no fim. Simona o instruiu a ir até a fazenda pedir informações e conseguir um galão de gasolina.

Neto desceu do barco, com a água no meio da canela, foi até a fazenda e conversou com um peão. Voltou com a informação, mas sem o combustível – o dono da fazenda tinha ido de barco pra cidade, não havia gasolina nem pra fazer remédio. Pelo que disse o peão, a gente estava do outro lado do lago. Teríamos que cortá-lo em linha reta e entrar em um “furo” perto de uma samaumeira. O diabo é que toda samaumeira tinha um “furo” ao lado.

Chegamos ao outro lado do lago por volta das 12h30. Mesmo com toda economia (o Simona dava uma boa arrancada e colocava na “banguela”), a gente só teria combustível para mais meia hora de navegação. Se pegássemos um outro “furo” errado, corríamos o risco de nunca mais sair do lago do Cuia pelo resto da vida. Por mim, tudo bem, o chato era as cervejas acabarem primeiro do que o combustível...

Simona reduziu a velocidade do barco e saiu de novo margeando o lago, olhando para os “furos” com a acuidade de um cirurgião fazendo operação de catarata a laser. Nada. Os “furos” eram absolutamente iguais. As samaumeiras eram absolutamente iguais. As margens do lago eram absolutamente iguais.

Pra nossa sorte, Neto localizou naquele mundão de água e floresta, a uns 800 metros de distância (ele tem uma visão de águia), uma família ribeirinha em um motor de rabeta devagar-quase-parando que, provavelmente, estava se dirigindo para a cidade. Simona levou o barco até eles, que nos ensinaram a localização exata do “furo”.

O “furo” do “Quem diria!” ficava a menos de 20 metros de distância do primeiro “furo” que entramos. Quer dizer, o Simona errou por pouco – mas, em termos de armadilhas sinuosas dos rios amazônicos, esse pouco significou mais de uma hora de navegação quase à deriva. Navegação por estas bandas não é coisa de amadores.

O certo é que em menos de 20 minutos entramos no rio Autazes-Açu e dali a cinco minutos já estávamos no pontão de combustível em frente ao cais do porto, para reabastecer o valoroso “a jato”. A maravilhosa estada em Autazes, claro, compensou com juros e correção monetária pelo sufoco inicial. Falo disso outro dia.

Pô, Simona, mas por que você se foi, bicho? Muitas mortes tenho morrido antes que a sua acontecesse para deixar-me mais só vivendo a minha. Tantos já se foram atraídos pela Grande Noite... Arthur Virgilio Filho, Fábio Lucena, Nestor Nascimento, Antonio Paulo Graça, Teodoro Botinelly, Rosendo Lima, Silvério Tundis, Alberto Aleixo, Jefferson Peres...

E, de repente, você resolveu encontrá-los, sem nos pedir licença. Pois é, grande Simona, que bruxaria foi essa tua, tão repentina, de inventar de ser eterno? Que sonho, no avesso do sonho, de virar pura memória – fino cristal que se dissolve no pródigo ar manauense, quando a gente ainda tinha tanta coisa pra fazer?

Que bom te ver na casa dos sessenta, cada vez mais brodão, companheiro, esperneando, reluzindo, trabalhando, acontecendo, perturbando a cena morta deste país de opereta – as mãos, a tua mão, incidental e múltipla, traduzida na defesa inconteste dos direitos humanos dos menos favorecidos –, em incêndios de sofrida beleza, gestos, gritos, berros, uivos, as mãos, as tuas mãos que eram capazes da maior ternura.

Polir o vitral do outono foi o teu maior ímpeto de viver. O condado de Autazes sabe disso. Atingidos de todos os lados em que a morte põe ovos, quase não há palavra agora que ouse contar ao mundo o luxo de tua lenda. Até breve, querido amigo. Porque enquanto eu resistir, não deixarei que esqueçam as tuas histórias. Qualquer dia a gente se vê por aí.

Um comentário:

Beto disse...

"Brodão" Simão,

De fato foi uma aventura inesquecível, álém de muito divertida...

Ainda me emociono todos os dias ao lembrar de meu "imorrível" pai, a quem devo absolutamente tudo que sou.

nada é igual, as coisas já não têm o mesmo sabor. Para mim, Autazes hoje, é só Autazes, descoloriu, azedou.

Mas nossa vida tem que seguir no trilho em que ele nos encarrilhou.

muito obrigado por toda sua homenagem, carinho e sobretudo a salutar amizade que ficou entre nós.

saudações e sempre às ordens.

Beto Simonetti

PS:. Um ano da passagem de meu pai se dará em 25 próximo (julho).