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quarta-feira, fevereiro 23, 2011

Da série “Vale a pena ler de novo”: o nascimento do Hip Hop Nacional


O rapper e ator Ice-T e sua mulher, a modelo Nicole 'Coco' Austin

É quase uma lenda. Corria o ano de 1995. O rapper americano Ice-T havia chegado ao Brasil para uma série de shows com seu projeto paralelo de rock pesado, o Body Count.

O autor de “Cop Killer” queria conhecer rappers daqui, e Primo Preto, então apresentador do programa “Yo! MTV Raps”, o levou até a região do Capão Redondo (Zona Sul de São Paulo) para um passeio com Mano Brown, dos Racionais MCs.

A certa altura, o americano estava impressionado com as imagens de pobreza que via.

Mano Brown aproveitou a deixa: “E então, truta? Você não acha que era aqui que o rap devia ter nascido?...”

Ice-T riu amarelo e não disse nada.

Pois é: em matéria de inspiração, o hip hop nacional é até mais que Primeiro Mundo. É impossível ignorar a projeção que o gênero alcança hoje no Brasil.

Depois do estouro dos Racionais em 97, não pararam de surgir nomes com talento em rimas e batidas.


Alguns, como DMN, fundado pelo vocalista Eli Efi em 1988, e Posse Mente Zulu, só surpreendem quem chegou no meio da festa.

São veteranos que chegaram a “bater lata” na estação São Bento do metrô, onde os primeiros manos se reuniam na década de 80.

Outros, como De Menos Crime, Consciência Humana e RZO, já conquistaram gente como os roqueiros santistas do Charlie Brown Jr., que costuma convidá-los para abrir seus shows em São Paulo.

E não pense que os grupos são todos crias dos Racionais. A diversidade de discursos e estilos é crescente. Grupos como o RZO têm adaptado vocais americanos, inspirados em artistas como Busta Rhymes e Redman. O resultado, como atestam as 200 mil cópias vendidas do single “O Trem”, de 1997, é só sucesso.

Além de tentar espelhar a desigualdade econômica e social do país, as letras e idéias do movimento hip hop influenciam uma parcela cada vez maior de jovens. A música passa a ter um peso político inédito na atual geração.

E o que é mais impressionante: ao contrário das canções de protesto da década de 60, escritas em sua maioria por jovens ligados ao meio universitário, como Chico Buarque ou Caetano Veloso, o rap é feito por quem nasceu nas favelas, cohabs e cortiços das grandes cidades brasileiras.

Os novos ídolos são muitas vezes filhos de empregadas domésticas, lavadeiras, porteiros, seguranças, pedreiros...


Nascido e criado na periferia da Zona Sul paulistana, Altair Gonçalves, o Thaíde, cresceu ouvindo rádio AM, sambas de malandragem e de breque, forrós e música brega, além de gringos como Commodores, Temptations e Barry Manilow.

Mas aquele que, ao lado de seu ex-parceiro DJ Hum, seria um dos pilares do hip hop nacional, não imaginava que o seu destino seria apresentado no início dos anos 1980 pelo programa televisivo “Comando da Madrugada”, do Goulard de Andrade.

“Era madrugada. (...) Estava tocando The Big Through Down e o Goulard de Andrade falou assim: E nós estamos aqui num baile da Chic Show – tradicional equipe de som dos anos 70 e 80 – e vocês não têm idéia do que estes crioulos fazem lá embaixo. Vem comigo! Aí a câmera foi descendo, e aquele som aumentando. Foi quando eles mostraram o Nelson Triunfo e outros caras dançando break. Falei comigo mesmo, taí, é isso aí que nós somos” , relembra.

O pernambucano Nelson Triunfo e sua equipe Funk Cia já naquela época se apresentavam em programas de TV e, principalmente, no centro da capital paulista, na Rua 24 de Maio.

Foi aí que Thaíde e seu amigo Mario viram pela primeira vez ao vivo e à cores a dança flexiva-robótica do break. O impacto foi tamanho que montaram o grupo Black Panthers, de vida curta.

Em seguida, nasceu a Dragon Breakers, que se apresentou no programa de TV Barros de Alencar, onde Thaíde conheceu Marcelinho, da Furious Breakers. Sugeriu, então, que a Dragon e a Furious se unissem e se transformassem na Back Spin Crew. E foi o que aconteceu naquele 1984 que terminava.

Thaíde já riscava algumas letras e rimas em cima de outras músicas. O estímulo para a composição partiu de amigos como Cláudio (que também frequentava a Archote, casa noturna em Moema) e Marco Tadeu Telésforo, que se firmou como parceiro de suas primeiras músicas (“Corpo Fechado”, “A Noite”, “Algo Vai Mudar”, “Homens Da Lei” e “Falsidade”).


Foi também na Archote que Thaíde conheceu Humberto Martins, o DJ Hum, discotecário da casa.

Nessa época, a Back Spin resolve não ficar na mesma área do Nelson Triunfo, que já sofria com o constante arrocho da polícia, e fez do Parque do Ibirapuera seu primeiro quartel-general.

Ali se juntam outras equipes de dança, além da rapaziada do skate e da bike. Isso até que um dos dançarinos sugerisse um novo terreiro para o break: a estação de metrô São Bento. Começava ali a geopolítica do hip hop brasileiro.

Segundo Thaide, nem sempre era possível curtir o som direto dos aparelhos que levavam para a estação de metrô: ou porque os seguranças não deixavam utilizar a energia elétrica da estação ou porque as pilhas acabavam.

Assim, aproveitando sua experiência com atabaques, Thaíde começou a segurar a percussão tocando em latas de lixo e improvisando rimas.


“Com o passar do tempo, isso já por volta de 1987, sem que nós procurássemos ninguém, todo mundo começou a ir à estação São Bento. Nunca ligamos para um jornal, revista ou emissora de televisão, e de repente o local estava cheio de jornalistas querendo fazer matérias. Grande parte disso eu acho que se deve à presença do pessoal do underground, que havia nos descoberto antes e tinham bastante contato com a mídia. Os caras do Fábrica Fagus e o Skowa sempre estavam por lá e acho que foi o pessoal do Fábrica que levou o Nasi, vocalista do Ira!, para conhecer o lugar”, explica.

E foi por meio do Nasi e do Fábrica Fagus que Thaíde participou da festa My Baby (com destaque para o hip hop), realizada naquele ano de 1987, no finado Teatro Mambembe.

No meio da fuzarca, ele foi intimado a apresentar um som. Leva “Consciência”, que tem as bases feitas pelo Nasi e pelo Fábrica. É a primeira vez que entra em um estúdio, como é também sua estréia em palco.

Aplaudido, com direito a bis, Thaíde é surpreendido por Pena Schmidt, diretor artístico da gravadora multinacional CBS (hoje Sony), que o convida a gravar um disco. Surpreendentemente, o rapaz que não sonhava ser artista recusa o convite. Explica que ainda não está pronto.

Mas nesta mesma festa, Thaíde se encontra com DJ Hum e o intima a firmarem uma parceria profissional. “Um não sabia fazer scratch direito, e outro não sabia rimar direito”, ironiza. E está dada a largada a um dos casamentos artísticos mais frutíferos do rap nacional.


Somente um ano depois da formação, a dupla sobe no palco pela primeira vez. Segundo Thaíde, diferentemente do que se pode pensar, era a turma do underground quem arrumava lugares para os rappers debutantes se apresentarem. A periferia iria comparece somente muito tempo depois.

O ano de 1988 é crucial para a carreira da dupla. A gravadora Eldorado convida Rôo, d’O Credo, um dos grupos pioneiros da São Bento, a selecionar outros nomes daquela cena nascente para gravar um LP.

E assim foi feito: O Credo, Código 13, MC Jack e Thaíde & DJ Hum cravam cada um duas faixas em “Hip Hop Cultura De Rua”. A coletânea alcança a marca de 60 mil cópias vendidas e faz de “Corpo Fechado” seu grande abre-alas. Além desta, Thaíde & DJ Hum gravam “Homens De Lei”, ambas produzidas por Nasi e André Jung (Ira!).

O sucesso de “Corpo Fechado” e do disco garante à dupla uma dezena de shows pelo Brasil e o tapete vermelho para o primeiro álbum individual.

Produzido por Nasi e Jung, “Pergunte A Quem Conhece” (Eldorado, 1989) reúne músicas como “Consciência”, “Cláudio, Eu Tive Um Sonho”, “Homens De Lei”, “Minha Mina” (que tem, originalmente, uma citação de “Você”, do ídolo Tim Maia, mas como o autor não autoriza, têm de destruir os 1.500 LPs da primeira prensagem) e “Corpo Fechado”.

O êxito comercial do disco leva a dupla pelo Brasil afora e a programas de rádios e de TV.


No entanto, o segundo disco de carreira, “Hip Hop Na Veia” (Eldorado, 1990), não repete o caminho de seu antecessor e decepciona a gravadora. “Precisávamos dizer que o hip hop não era uma cultura de moleques. Pregávamos a consciência e a responsabilidade”, afirma ele. O LP traz as músicas “Luz Negra” e “Por Um Triz”.

Do outro lado, e no mesmo ano, os Racionais MCs injetam novo tônico ao incipiente rap nacional com seu disco de estréia, “Holocausto Urbano”.

Descontentes com a Eldorado, Thaíde & DJ Hum assinam com a independente TNT, que lançou em 1992 “Humildade E Coragem São Nossas Armas Para Lutar”. A independência deu resultado com o disco repercutindo bem, ancorado pelas músicas “A Noite” e “Nada Pode Me Parar”.

No início dos anos 90, o hip hop ganha mais vozes (Gabriel, o Pensador, GOC, Rappin Hood, Pavilhão 9) e até um evento oficial com apoio da Prefeitura de São Paulo (Mostra Nacional de Hip Hop, 1993).


Em paralelo, Thaíde & DJ Hum moldam uma homenagem ao povo tupiniquim, materializada no álbum “Brava Gente” (Hip Hop Brasil, 1994), e mais um petardo, “Afro-brasileiro”, lançado em single pelo então recém-criado selo da dupla, o Brava Gente.

A música integrou o disco seguinte, “Preste Atenção” (Brava Gente/ Eldorado, 1996), que revelou um dos grandes sucessos do rap nacional, “Senhor Tempo Bom”, uma faixa memorialística com recortes da infância e da adolescência de Thaíde, e dos cenários da música negra brasileira dos anos 1970 e 80.

Outros marcos deste CD foram “Malandragem Dá Um Tempo” e “Desabafo De Um Homem Pobre”, que revela o período de maior dificuldade emocional e financeira que o autor passava na época que antecedeu à gravação.

O êxito comercial do álbum liquidou a crise de Thaíde, realimentando sua fé artística, e garantiu nos anos seguintes um grande circuito de shows pelo país.

Em nova gravadora, a dupla lança “Assim Caminha A Humanidade” (Trama, 2000), no mesmo ano em que DJ Hum viaja para Cuba e Thaíde para Assaré (CE), onde conhece o cordelista Patativa do Assaré, encontro que marcou sua carreira artística.

Ainda em 2000, ele substituiu KL Jay, dos Racionais MCs, no comando do programa televisivo Yo!, da MTV.


No período em que o hip hop ganha mais espaço (Casa do Hip Hop em Diadema, Academia Brasileira de Rimas, documentários teses, livros, novos discos e artistas), a parceria entre Thaide e DJ Hum apresenta ranhuras, mas “Assim Caminha A Humanidade” é uma tentativa de superar a fase braba.

Como remédio, convidam os camaradas do rap para festejar o momento que o “ritmo e poesia” nacionais vivem.

SNJ, RZO, SP Funk, Sabotage, Estado Crítico, Xis, Nelson Triunfo e Quelynah participam do CD, que trouxe músicas como “Sangue Bom” e “O Desafio Do Rap Embolada”.

As divergências e os projetos individuais superam os planos da dupla que, naquele mesmo ano, colocou um ponto final na parceria.


Outro pioneiro do hip hop nacional, Nelson Gonçalves Campos Filho, nasceu em 28 de outubro de 1954, em Triunfo, região serrana incrustrada no sertão de Pernambuco.

Viveu uma infância entre o campo, onde trabalhava como agricultor, e a cidade, origem de um ecletismo musical que unia o maracatu mais tradicional a outros ritmos negros regionais, mas também ao soul e ao rock.

Aos 15 anos, mudou-se para Paulo Afonso, em busca de estudo e trabalho, sendo auxiliar de topógrafo na Usina de Paulo Afonso. Mas lá iniciou também suas andanças pelas festas, que viriam a ser as festas black.

Foi pioneiro nessa cultura, tornando-se o primeiro nordestino a dançar igual a James Brown e formando o lendário grupo de dança “Os Invertebrados”.

Em 74, Nelson Triunfo se mudou para Brasília (DF), onde concluiu o ensino médio e tornou-se topógrafo, ao mesmo tempo em que se especializava em festas e andanças.

Viveu na Ceilândia, em Sobradinho e em outras cidades, mas conheceu e passou a ser conhecido nas festas black, fazendo shows com a “Super Som 2000”, incendiando as festas de Brasília, na beira do Paranoá, e correndo todas as cidades satélites com sua dança invocada.

Ele também promove caravanas aos bailes do Rio de Janeiro, que na época era o centro da música e da cultura black nacional, graças ao movimento “Black Rio”. Lá fica conhecido como “O Homem Árvore”, apelido que ganhou de Toni Tornado, por conta de sua imensa cabeleira afro.


Em 76, já formado, segue rumo a São Paulo, em busca do sonho de viver da black music. Forma o grupo “Funk & Cia” e começa então a participar de todos os bailes da periferia, promovendo um intercâmbio inédito entre as diversas tribos organizadas, numa época em que os jovens evitavam ir aos bailes fora de sua região, por conta da rivalidade.

Aprofunda o intercâmbio com o Rio e torna-se um dos grandes responsáveis pelo crescimento dos bailes blacks de São Paulo.

Na virada entre os anos 70 e 80, Nelson Triunfo torna-se também o pioneiro da chamada “cultura de rua” no Brasil, ao levar sua dança para as ruas do Centro Velho (inicialmente em frente ao Teatro Municipal).

Ele é obrigado a mudar-se de ponto várias vezes, mas resiste à repressão policial e vai formando aos poucos uma legião de dançarinos de rua, até que acaba sendo aceito por alguns comerciantes, por impulsionar o comércio de discos e artigos ligados à cultura black, que se concentrava na Rua 24 de Maio e nas Grandes Galerias.


É naquele local que muitos dos futuros b-boys paulistas travaram contato com o hip hop.

Em meados dos anos 80, aliando sua música e dança à sua experiência de militância no movimento negro, ele começa a realizar trabalhos de formação política com os jovens da periferia.

Na gestão da prefeita Luiza Erundina, do PT, participa de diversos programas educacionais, culturais e sociais, de onde se destacam as oficinas de educação e cultura do projeto “RapEnsando a Educação”, que corre as escolas de toda a periferia.

Em 84, ele surpreende o público da avenida e da tevê sambando de fato e de direito, exibindo seus passos mirabolantes, que misturavam o samba ao soul, ao funk e ao break.

Ganha então o Estandarte de Ouro, como melhor passista do samba paulistano, desfilando pela escola de samba Vai Vai. É convidado para fazer a abertura da novela “Partido Alto”, onde, involuntariamente, passa a difundir seus passos diariamente, em horário nobre.

Nos anos 90, ele é chamado para trabalhar na Prefeitura Municipal de Diadema, trabalho que daria origem à Casa do Hip Hop, hoje referência nacional em trabalhos sócio-culturais.


Ao longo de sua carreira já se apresentou ao lado de vários artistas de renome, como Tony Tornado, Gerson King Kombo, Paula Lima, Sandra de Sá, Leci Brandão, Tim Maia, Gilberto Gil, Jimmy Cliff e tantos outros, sendo inclusive convidado a receber James Brown em sua primeira visita ao Brasil.

Em Triunfo, sua cidade natal, ele foi homenageado com a inauguração de um centro cultural que leva o seu nome. Nelson Triunfo continua na ativa até hoje.


Um dos principais grupos de rap e hip hop brasileiros de todos os tempos, os Racionais MCs surgiram no final da década de 1980, em São Paulo, tendo na linha de frente os rappers Mano Brown (Pedro Paulo Soares Pereira), Ice Blue (Paulo Eduardo Salvador), Edi Rock (Edivaldo Pereira Alves), e nas carrapetas o DJ Kl Jay (Kleber Geraldo Lelis Simões).

A primeira gravação dos Racionais MCs foi em 1988, quando o selo Zimbabwe Records (especializado em música negra) lançou a coletânea “Consciência Black”. Neste LP, apareceram os dois primeiros sucessos do grupo: “Pânico na Zona Sul” e “Tempos Difíceis”. As duas canções apareceriam dois anos depois em “Holocausto Urbano”, primeiro disco solo do grupo de rap.

No LP, o grupo de rap paulistano denuncia em suas letras o racismo e a miséria na periferia de São Paulo, marcada pela violência e pelo crime. O álbum tornou os Racionais MCs bem conhecidos na periferia paulistana - o grupo fez uma série de shows pela Grande São Paulo. Ainda naquele ano, o conjunto fez dois na Febem.

Em 1991, os Racionais MCs abriram para o show do pioneiro Public Enemy, um dos mais famosos grupos de hip hop norte-americano, no Ginásio do Ibirapuera, em São Paulo.

A popularização na periferia de São Paulo fez com que os integrantes dos Racionais MCs passassem a desenvolver trabalhos especialmente voltados para comunidades pobres, dentre os quais um projeto criado pela Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, em que o conjunto realizou palestras em ecolas sobre drogas, racismo, violência policial, entre outros temas.

No final de 1992, foi lançado “Escolha O Seu Caminho”, segundo LP do grupo.


No ano seguinte, participaram do projeto Música Negra em Ação, realizado no Teatro das Nações em São Paulo, e gravaram LP “Raio X Do Brasil”, terceiro disco do conjunto, lançado em uma festa na quadra da escola de samba Rosas de Ouro – para um público estimado de 10 mil pessoas.

Canções deste disco como “Fim De Semana No Parque” e “Homem Na Estrada” (ambas de Mano Brown) fizeram grande sucesso em bailes de rap e nas rádios do gênero em todo o país.

Principal atração do Rap no Vale, um concerto de rap realizado no final de 1994, no Vale do Anhangabaú (centro de São Paulo), e que terminou em confusão e quebra-quebra, os membros do grupo foram presos pela polícia sob a acusação de incitação à violência – a violência policial é um tema recorrente nas letras do grupo.

Ainda naquele ano, a gravadora Zimbabwe lançou a coletânea “Racionais MCs”.

Populares, os Racionais MCs participaram nos anos seguintes de vários concertos filantrópicos em benefício de aidéticos, campanhas de agasalho e contra a fome, além de atuarem em protestos como o contra a Abolição dos Escravos no Brasil.

No final de 1997, foi lançado o disco “Sobrevivendo No Inferno”, pelo selo Cosa Nostra Fonográfica (do próprio grupo), que vendeu mais de 500 mil cópias. Dentre os grandes sucessos deste álbum estão “Diário De Um Detento”, “Fórmula Mágica da Paz”, “Capítulo 4, Versículo 3” e “Mágico De Oz”.


Com este disco, os Racionais MCs deixavam de ser um fenômeno na periferia paulistana para fazer sucesso entre outros grupos sociais. Apesar disso, o grupo adotou uma postura antimidiática.

Um exemplo notório foi a cerimônia de premiação do Video Music Brasil, da MTV brasileira, quando Mano Brown provocou a platéia presente no evento, ao dizer que a mãe dele já teria lavado a roupa de muitos daqueles boys, e ressaltou que o público dos Racionais MCs continuaria sendo o da periferia.

Eles continuam a se apresentar em clubes e quadras de escola de samba de comunidades carentes pelo Brasil. O disco chegou a marca de 500 mil cópias vendidas somente com distribuição do próprio grupo (nas bancas de jornal, bailes, clubes, quadras, shows e camelôs).

Na música “Gente Da Gente”, do Negritude Júnior, o pagodeiro Netinho e o rapper Mano Brown cantam juntos os problemas da periferia de São Paulo: “Essa gente já sofre demais/ São tratados como animais/ E só querem um pouquinho de paz/ E precisam ouvir Racionais”, sugere o sambista.

Em “Fim De semana No Parque”, composição dos Racionais, Brown e Netinho dão novamente o seu recado: “Pode crer, Racionais MC’s e Negritude Júnior juntos. Vamos investir nós mesmos (na periferia) e mantendo distância das drogas e do álcool.”

A mensagem não ficou só no discurso. Amigos desde a adolescência, os dois frequentavam, no final dos anos 80, os bailes funks da equipe Chic Show, em Santo Amaro.


Mano Brown, líder do grupo de rap Racionais MC’s, e Netinho, do grupo de pagode Negritude Júnior, querem agora reverter um pouco do que ganharam com o sucesso em prol da comunidade dos bairros pobres onde viviam.

Hoje nomes famosos na música brasileira, o Racionais e o Negritude vendem milhares de discos e têm até griffe. Os dois grupos passaram a usar o prestígio e a fama para ajudar a construir centros de artes e esportes a fim de afastar crianças carentes das ruas e das drogas.

Mano Brown ajuda a manter uma escolinha de futebol para 300 crianças de sete a 16 anos na Cohab Adventista, no Capão Redondo, onde morava até o ano passado. Planeja construir ainda uma quadra de esportes, um centro de treinamento de boxe, uma escola de música e uma rádio comunitária para formar DJs (disc-jóqueis).


Já o projeto de Netinho está em atividade há cinco anos. Quando ainda não era famoso, criou uma escola na Cohab de Carapicuíba, na Grande São Paulo, com 30 crianças.

Agora, o projeto Família Negritude abriga mais de 300 crianças e oferece aulas de reforço escolar, inglês, informática, música, percussão, dança e teatro, além de serviços de psicólogos e fonoaudiólogos.

“Até o ano 2000, pretendemos atender 1.500 alunos”, comemora José de Paula Neto, o Netinho, 28 anos, que gasta mensalmente R$ 16 mil com a manutenção da escola.

As idéias sobre projetos sociais nasceram em rodas de bate-papo em finais de semana na Cohab Adventista. E o exemplo dos dois amigos acabou sendo reproduzido também por outros grupos de rap – como o DMN, por exemplo –, que organizam desde debates sobre a questão racial a campanhas de arrecadação de roupas e alimentos.

Brown e Netinho moraram na infância e adolescência no mesmo bairro da zona sul, o Parque Ipê, nas proximidades da Cohab Adventista.

Mesmo depois do sucesso, o vocalista do Negritude continuou frequentando a região, onde seus pais ainda residem. E sempre que pode passa na casa do amigo rapper para provar o feijão de dona Ana Soares, mãe de Brown.

Esse mundo da Cohab retratado nas canções dos dois amigos é praticamente desconhecido pela classe média. As Cohabs são conjuntos habitacionais formados por dezenas de prédios com pequenos apartamentos e minúsculas janelas que chegam a lembrar o presídio do Carandiru. São verdadeiras cidades.

A metade dos cerca de 500 mil moradores de Carapicuíba, por exemplo, vive nesses prédios.

Nessas áreas, não existem cinemas, teatros, bibliotecas, parques de diversões, praças ou qualquer outro tipo de opção de lazer. Netinho, hoje morador de Alphaville, um condomínio luxuoso na Grande São Paulo, cresceu na Cohab de Carapicuíba e hoje fala do local com orgulho. Recentemente, lançou a campanha 100% Cohab, com a venda de camisetas, bonés e CD. O dinheiro arrecadado vai para o projeto Família Negritude.


Até há pouco tempo, Netinho animava os “pagodes na Cohab no maior astral”, como diz uma de suas composições mais famosas, em frente à lanchonete – a Carolina –, agora nacionalmente conhecida de tanto ser citada por ele.

Já Mano Brown dizia que jamais sairia do prédio humilde em frente ao campinho de terra onde gostava de jogar peladas na Cohab Adventista. No entanto, acabou se mudando, em 1999, para um apartamento de classe média na mesma região.

Brown e Netinho seguiram rumos diferentes na carreira musical, mas já estiveram no mesmo barco. O mais famoso rapper brasileiro tocava repique de mão em casas noturnas. Negros e de origem pobre, os dois têm a mesma história de vida.

Brown, que não conheceu o pai, desde menino trabalhou como balconista em farmácia e ajudante em supermercado. Netinho vendeu doces em estações de trem dos sete aos dez anos de idade. Teve um irmão que foi assassinado por um policial.

Os dois viram muitos amigos se acabarem no crack e na cocaína. Outros foram mortos pela polícia ou por gangues rivais. O nome do centro esportivo criado por Brown vai levar o nome de Geovani Caetano de Lima, um desses amigos mortos em 1998.

Geovani é irmão de Guilherme, vocalista que acompanha o Racionais na música “Jorge De Capadócia”, gravada no disco “Sobrevivendo No Inferno”. “Estivemos muito perto de desandar. Foi por um fiozinho. Eu, o Brown, o Ice Blue... Tive uma base familiar e isso ajudou muito. Mas meu irmão morreu por um desvio de percurso”, lembra Netinho.

Apesar da barra de vida, o vocalista do Negritude Júnior é um bonachão, boa praça, canta músicas fáceis e previsíveis que falam de amor e diversão.


Mano Brown é contundente e radical e chega a chocar os ouvidos da classe média com letras duras e agressivas que atacam a polícia, o sistema e a playboyzada.

Netinho aparece na mídia a toda a hora. Brown, por outro lado, se recusa a falar com a “grande imprensa burguesa”, apesar de aparecer nos clipes da MTV. “Isso era um sonho que a gente tinha desde pequeno, ao ver na tevê os grupos de rap americano”, costuma dizer.

Mesmo em favor de uma boa causa, como a divulgação do seu centro esportivo, ele não mudou de idéia. Apesar da diferença de estilos, os dois são manos, segundo a linguagem do rap e do movimento hip hop que define os moradores pobres da periferia.

Os líderes dos Racionais e do Negritude estão engajados no movimento negro, têm um discurso afiado contra o racismo e o preconceito e querem ampliar seus projetos na área social.

Hoje, não há um estudante de escola pública na periferia que não conheça as músicas dos Racionais.

“O rap atingiu a maturidade. O Brown sabe que não adianta só reclamar e criticar o sistema. Agora, o pessoal acredita que tem a solução dos problemas. Eles estão indo nas escolas, dando palestras, ensinando. Cada um tem que fazer a sua parte. E nós estamos fazendo”, argumenta Netinho.

Na política, os manos têm posturas um tanto diferentes. Brown assume posição partidária, sempre fez campanha por Lula e por outros candidatos do PT. Netinho diz que é simpatizante da esquerda, mas toca para qualquer candidato que lhe paga. Cada um à sua maneira, eles estão fazendo política social.

Brown, que está sempre acompanhando as obras, agora tem ido atrás de amigos jogadores de futebol como Viola, Edinho e Marcos Assunção para conseguir ajuda. Precisa de R$ 150 mil para ampliar o projeto.

“Eu gosto daqui e sou fã do Mano Brown. Meu sonho é ser cantor”, diz Uandel Nunes da Silva, 11 anos, aluno da segunda série, que ainda não sabe ler nem escrever.


Netinho, presidente do Família Negritude, também visita duas vezes por semana o seu projeto. Analisa as contas, faz pagamentos e conversa com as crianças. Depois de ganhar uma área de 29,6 mil metros quadrados da Prefeitura de São Paulo, está ampliando o programa. O custo total é de R$ 1,6 milhão.

“Vamos buscar parcerias com empresas. O ideal hoje era que cada companhia se encarregasse de cuidar de algum projeto no seu bairro. Os empresários precisam olhar um pouco mais para a comunidade. Se cada um der sua contribuição, a gente muda essa realidade”, sinaliza Netinho.

O hip hop tem hoje uma presença forte na periferia e vem mostrando preocupação com a área social. Organizado nos quatro cantos de São Paulo, o movimento se espalha para outros Estados.

Os Racionais MCs seriam apenas um dos dez mil grupos de rap que atuam hoje na periferia paulistana, não só na música mas também em movimentos sociais e até em articulações políticas.

Os rappers se reúnem nas chamadas posses (que teria o mesmo sentido de gangues ou turmas, só que com um caráter pacífico). Nesses locais, são realizados shows, campanhas de arrecadação de roupas e alimentos para famílias carentes, mobilizações para reivindicar parques e bibliotecas e até debates sobre marxismo.


Na Cidade Tiradentes, extremo da zona leste de São Paulo, por exemplo, um grupo de rappers está dando aulas de música, capoeira e pintura – além de noções de higiene e reforço escolar – para crianças que vivem em um conjunto de prédios abandonados, no meio do lixo e dos ratos.

Nas últimas eleições, os rappers tiveram até um candidato próprio a deputado estadual em São Paulo: o professor de História Edmilson Souza, do PT, que não conseguiu se eleger, mas teve seis mil votos. A maioria dos manos se considera de extrema esquerda.

“Apoiamos o PT, mas ele também deixa a desejar. É o menos pior de todos os partidos. Infelizmente, nossa relação com os petistas só se estreita em época de campanhas porque a gente leva público para eles”, diz Markão II, integrante do grupo DMN.

Markão, ex-office-boy e ajudante de marceneiro, é um dos responsáveis pelo Projeto Rappers, organizado em conjunto com a ONG Geledés. “Falamos a realidade dos pretos e pobres da periferia. E levamos essa discussão para escolas, faculdades e centros comunitários”, explica.

“O rap nacional é uma pista para perceber que a ruptura social no Brasil está ficando cada vez mais grave”, aponta o antropólogo Pedro Guasco, da USP, autor da tese “Num País Chamado Periferia”, resultado de uma pesquisa que incluiu quatro meses morando na região de Capão Redondo.

Aos poucos, o hip hop brasileiro se aproxima da organização partidária e dos cargos eletivos. Pouco antes das eleições presidenciais de 1998, um evento no centro de São Paulo reuniu mais de 10 mil jovens para um show de rap que lançava o apoio oficial do movimento aos candidatos do Partido dos Trabalhadores (PT).

O momento mais esperado foi quando Mano Brown ergueu o braço de Lula, depois de dizer que a escolha era entre ele e “o playboy”, referindo-se ao presidente Fernando Henrique Cardoso. O próprio Mano Brown já chegou a ser cotado pelo PT como possível candidato a deputado estadual.


Um outro setor do qual o rap brasileiro se aproxima cada vez mais é o movimento negro. “O hip hop é hoje um de nossos braços mais importantes”, diz Milton Barbosa, um dos fundadores do MNU (Movimento Negro Unificado), uma das maiores organizações do gênero no país.

Desde seu surgimento, nos anos 70, numa Nova York violenta como nunca (inspiradora de filmes como “Desejo de Matar”, estrelado por Charles Bronson), o rap impôs a discussão da questão negra.

Os EUA viviam então a ressaca de conflitos raciais que incluíram desde o pacífico movimento pelos direitos civis de Martin Luther King até a militância armada dos Panteras Negras.

No Brasil, o debate se intensificou após a projeção do grupo americano Public Enemy, na segunda metade dos anos 80. Grupos como os Racionais e DMN admite Chuck D & Cia. como influência maior. Os ícones Malcom X e Martin Luther King tornaram-se leitura de cabeceira.


Essa importação de idéias incomoda muita gente até hoje. O sambista Ney Lopes, estudioso da cultura negra e autor de seis livros sobre o tema, considera o rap “uma moda passageira, uma música que não se baseia numa forma brasileira. As formas de expressão, para serem revolucionárias, têm que ter nelas mesmas um conteúdo de transformação. Não basta cantar ao som de uma música americana”.

Mas o que põe realmente o dedo na ferida é o ataque que muitos rappers fazem hoje à miscigenação, especialmente aos casamentos inter-raciais. “Isso é equivocado até nos EUA”, combate Nei Lopes.

“Os judeus casam com judeus, os japoneses com japoneses, por que todos vem em cima quando os pretos falam em se casar com pretos?”, pergunta Kl Jay, dos Racionais.

Para a professora Lilia Schwarcz, do departamento de Antropologia da USP, a resposta está na apologia ao mestiço, que foi alçado a símbolo da brasilidade a partir da década de 30.

“Essas idéias hoje difundidas pelo rap já existiam, só que eram caladas pelo discurso oficial, que passou a defender a miscigenação. Novidade é esse discurso virar moda”, diz Lilia.

O que mais horroriza os críticos do rap é a possibilidade de essa auto-afirmação se converter em racismo.

Pois Gaspar, MC do Záfrica Brasil, um dos poucos rappers brancos (loiro de olhos verdes) em São Paulo, diz que sim, existe preconceito racial no hip hop. “Já chorei muito por causa disso. ‘Você é um branquelo querendo fazer som de preto’, me diziam. Hoje sou mais aceito”.

Mesmo assim, ele diz não ter ressentimentos. “Eu entendo, porque é um problema que tem 500 anos. Ninguém quer sabe se o papa é virgem e vai pro céu, ele tem é que reparar os erros que a Igreja cometeu ao longo da história”.


O discurso “segregacionista’ também existe em tons menos agressivos. “O problema é que tem negro que vê a loura como status, igual a um carro importado”, aponta LF, do DMN.

Até mesmo o famoso verso de Mano Brown, “preto e branco pobre se parecem, mas não são iguais”, da canção “Racistas Otários Nos Deixem Em Paz”, é reinterpretado por Sandrão, MC do grupo RZO.
“Negro e branco pobre só não são iguais no olhar da sociedade. Na periferia não tem diferença”, diz ele.

“A partir do momento em que há amor e respeito mútuo, eu não vejo nada de errado numa união entre um negro e uma loura”, diz o veterano Thaíde, reproduzindo a voz da razão.

Ele busca na história do Brasil justificativas para sua posição: “Palmares deixou o exemplo. Lá se reuniam todos os marginalizados, não só negros, mas também brancos e índios. Quem controlava a política eram os negros, e nem por isso havia exploração ou desigualdade”.

“Sucesso é cantar em cima de uma laje, na favela mais miserável e ser considerado”, define Sandrão, do RZO.

Apadrinhados pelos Racionais, esses rappers de Pirituba, Zona Oeste de São Paulo, lançaram “Todos São Manos”, seu primeiro álbum oficial pela Cosa Nostra, gravadora de Mano Brown, que já vendeu 200 mil cópias.


O pensamento deles expressa bem a revolução que o rap empreende na estrutura da mídia. Em vez de TVs, revistas e jornais, os rappers dão preferência para as rádios comunitárias, fanzines e a propaganda boca-a-boca nos espaços frequentados pelo público de periferia.

O próprio RZO tem um rap em homenagem às rádios comunitárias em seu CD.

No ano passado, o programa Globo Repórter dedicou uma edição inteira ao hip hop. Mesmo assim, o repórter Caco Barcellos teve de explicar que, infelizmente, os Racionais não davam entrevista para grandes canais de TV.

Thaíde e DJ Hum foram praticamente os únicos rappers de renome que apareceram. “Muitas vezes é melhor falar do que dar espaço para outros que podem dizer besteira. A mídia é inevitável, a gente é que tem de saber manipular”, raciocina Thaide.

O interessante é que a “mídia paralela” que o rap criou não pára de crescer. A cada ano, mais selos independentes são criados. O grupo GOG, de Brasília, tem o Só Balanço. Thaíde e DJ Hum, o Brava Gente. Kl Jay é sócio de três: Cosa Nostra, 4P (com Xis, ex-MC do grupo DMN, agora formando dupla com Dentinho) e Raízes (com Rappin Hood, do Posse Mente Zulu).


Alguns grupos têm optado pelas multinacionais ou por grandes selos de rap, principalmente para distribuir discos. As estrangeiras organizam pequenos selos, cujo controle é entregue a pessoas do meio hip hop. É o caso da Sony, que criou o Black Groove, a cargo de Primo Preto.

“O rap é um som que você tem que viver. No samba ainda dá pra mentir, mas no rap não”, explica William Santiago, diretor artístico da Zâmbia, uma verdadeira Motown brasileira, responsável pelo lançamento dos Racionais e do Negritude Jr., entre outros.

“Independência, no seu próprio selo, vem em todos os sentidos: você sabe quantas cópias prensou, divulga seu trabalho, dá entrevistas para quem quiser, vai aonde bem quer”, argumenta Kl Jay.


O surgimento dos selos tem possibilitado a emergência de grupos como o Posse Mente Zulu, cujo maior hit é um rap do MC Rappin Hood, de 86, “Sou Negrão”.

Por que tanta demora? “Por causa de um monte de gente safada que só quer saber de lucrar em cima dos grupos”, diz ele.

Para driblar os problemas há uma “cooperativa” surgindo: a Companhia Paulista de Hip Hop, iniciativa do MH2O (Movimento Hip Hop Organizado) e de seu idealizador, Milton Salles, produtor que ajudou a criar os Racionais.

A Companhia já congrega cerca de dez grupos. Seu primeiro lançamento foi o single “H. Aço”, do DMN, que ficou mais de cinco anos sem gravar depois do sucesso do LP “Cada Vez Mais Preto”, de 1993.

Coletâneas organizadas pelos artistas de maior sucesso, dando um empurrãozinho para grupos iniciantes, também tem revelado talentos. É o caso da “Rima Forte”, com produção do DJ Hum, que traz SP Funk e Pseudônimos MCs, ou do CD “GOG Convida”, com grupos do Distrito Federal.

Esse trabalho em equipe não é novidade.

Em 1989, quando surgiu o MH2O, a principal recomendação para os grupos de rap, gangues de break e grafiteiros era a formação das posses, associações que congregassem jovens para desenvolver a cultura hip hop.

Das dezenas de posses que surgiram naquela época, muitas existem até hoje, mesmo reduzidas. Os grupos De Menos Crime e Consciência Humana, de São Mateus, fazem parte da posse DRR (Defensores do Ritmo de Rua ou Domínio do Raciocínio Real).


O Posse Mente Zulu, hoje com três integrantes, era uma posse com quatro grupos, na região do Ipiranga.

O Záfrica Brasil também participa de uma posse desde o ano passado, a Conceitos de Rua.

Em recente viagem à Itália, o grupo gravou até um CD. Detalhe: eles saíram do Brasil sem arranhar sequer um portunhol e participaram de quarenta eventos graças ao apoio do hip hop italiano, o que mostra o caráter internacionalista do movimento – alguém aí lembrou o velho socialismo?

Os shows de Racionais e de outros grupos não tem reunido menos do que três mil pessoas Brasil afora (eles já estiveram em Manaus uma meia dúzia de vezes, a convite do DJ Marcus Tubarão).

As festas promovidas semanalmente pelas emissoras FM em São Paulo e no interior do estado chegam a atrair 5 mil pessoas, mesmo sem a presença de astros como Mano Brown.


Em março do ano passado, o I Festival Internacional de Rap, produzido em São Paulo por Ice Blue, teve mais de 15 mil pagantes. Só perdeu para o show de rap que lembrou os 300 anos da morte de Zumbi, em 1995, que atraiu 50 mil pessoas.

Em tempos de agitação popular e insatisfação com o Governo, a voz do hip hop se torna cada vez mais importante no jogo político brasileiro.

Com o bordão “É Deus no céu e nóis na fita”, inspirado em um verso do Racionais, o locutor Nuno Mendes apresenta diariamente na 105 FM o Espaço Rap, programa que, entre as 17h e as 22h, tem chegado ao terceiro lugar de audiência na Grande São Paulo – primeiro lugar em Campinas –, tocando praticamente só rap nacional.


Regularmente, Nuno lê mensagens de ouvintes na base do “eu queria mandar um salve para os manos do X 84”. Xis, na gíria de cadeia, é a cela. E são muitas as cartas que vem dos presídios de toda a região. Às vezes, mais da metade do que Nuno lê toda noite.

“Quem está na cadeia gosta de ouvir a verdade. Ninguém lá fica ouvindo É O Tchan”, ataca o rapper W-Gi, do Consciência Humana, de São Mateus, Zona Leste de São Paulo, que já fez vários shows em penitenciárias e unidades da Febem.

É um tipo de trabalho social sem sombra de demagogia. A música-título do último CD do Consciência, “Entre A Adolescência E O Crime”, que já vendeu cerca de 70 mil cópias, foi composta justamente por um rapper que passou nove anos preso.

É difícil encontrar um grupo de rap brasileiro em que não haja pelo menos um caso de parente ou amigo que está ou esteve “do outro lado do muro”.

Não por acaso, “e aí, ladrão?” é hoje o cumprimento da moda no movimento hip hop em São Paulo.

“É como o nigger, termo antes pejorativo que os brancos americanos aplicavam aos negros e que estes subverteram a seu favor. Entre amigos, um negro pode chamar o outro de nigger, mas um branco não pode fazê-lo sem causar ofensa”, explica o antropólogo americano Derek Pardue, que pesquisa semelhanças entre o hip hop brasileiro e o dos EUA.


Com “ladrão” acontece a mesma coisa. Já dizia um velho ditado racista, que as pessoas politicamente corretas fingem desconhecer: “Branco correndo é atleta, preto correndo é ladrão!”

Após mais de um século de abolição da escravatura, os manos resolveram dar o troco usando o rap como munição. É esperar pra ver até onde o hip hop nacional vai nos levar.


(Texto publicado no fanzine Fight The Power, de Minas Gerais, em abril de 1999, editado pelo MC Kabessa. Um resumo da matéria entrou como um dos capítulos do livro “Funk: a música que bate”, de 2000)

Um comentário:

Unknown disse...

essa materia é show mano muito loka msm!!!
eu sou da periferia e pode pá que os mlk aqui é fmz vlw pela postagem desse artigo é noisss....
salve aqui do bonde da bertina ...flw...