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sábado, fevereiro 05, 2011

Parece que foi ontem

Parece que foi ontem, mas a história rolou em alguma tarde de sábado de setembro de 1966.

Minha família havia se mudado recentemente para uma nova casa, na rua Parintins, quase no canto com a rua Borba, na média Cachoeirinha.

Eu tinha dez anos, fazia o 4.º ano primário no grupo escolar Getúlio Vargas e era viciado em HQs, hábito aprendido com meu primo José Alberto Batista, o Cazuza, que trabalhava como balconista da Livraria Acadêmica.

Morando desde os sete anos de idade na casa da tia Maria, mãe do Cazuza, aprendi a interpretar textos e desenhar histórias em quadrinhos por insistência das minhas primas (Raquel, Rossicler, Rosinete e Socorro), que usavam como material didático os gibis em consignação que o Cazuza trazia para ler em casa.

Nunca me passou pela cabeça que os gibis deveriam ser devolvidos no dia seguinte ou seriam descontados do salário do abnegado balconista.

Pra virar um “ladrão” de gibis, foi conta de multiplicar: bastou eu descobrir em que gaveteiro da casa o Cazuza entocava aquelas preciosidades.

Depois de muito chafurdar, sem despertar suspeitas a respeito de minhas intenções malévolas, descobri que ele mocozava os gibis na terceira gaveta de um armário de roupas que havia no corredor – e havia mais de dez armários de roupas na imensa casa da Tia Maria, espalhados por lugares inimagináveis.

Descoberta a mina, virei um garimpeiro infatigável. Não deu outra.

Fiquei viciado em gibis e, como soe acontecer nesse tipo de coisa, eu comecei a procurar outros adictos para repartir o vício comigo.

Minhas irmãs mais velhas, Simone e Silene, foram as escolhas naturais.


Socorro, Rossicler, Cazuza, sua esposa Lia, e Dani, filha dos dois

Não sei quantos gibis roubei do Cazuza para dar às meninas, mas foram centenas.

Ele não ter me dado muita porrada, diz mais do caráter dele do que do meu.

Quando deixei a casa da tia Maria, aos dez anos, para voltar a morar com meus pais, o Cazuza deve ter respirado aliviado.

Parei de dar prejuízos, claro, mas minha dívida para com ele continua impagável. Nos dois sentidos.

O certo é que com a quantidade de gibis acumulados em casa, eu poderia dar o grande salto – deixar de ser um simples viciado, para começar a “traficar” revistas de HQ. E foi isso que comecei a fazer.


Um de meus esportes favoritos, na época, passou a ser trocar gibis na porta do cine Ipiranga, logo após a sessão das 13h.

Não havia, nas trocas de gibis, o caráter de usura que hoje é a pedra de toque dos relacionamentos sociais: todo mundo querendo levar vantagem.

Naquela época, era perfeitamente normal você trocar um gibi do mês, novinho em folha, recendendo a leite, por um gibi de dez anos atrás, todo detonado, apenas porque você ainda não havia lido aquela história.

Como os gibis acabavam passando de mão em mão, era possível você ler uns 100 gibis em cinco meses apenas trocando os seus 20 gibis iniciais.

Não consigo imaginar escambo mais perfeito do que aquele.

Era uma média de 20, 25 moleques, cada um com cerca de 20 revistas na mão.

Você chegava junto e pedia para ver o acervo. Escolhia as que lhe agradavam.

O sujeito olhava o seu acervo. Escolhia as que lhe agradavam.

Aí, começavam as negociações propriamente ditas, com ênfase na data de lançamento de cada gibi.

- Esse meu “Capitão Marvel” de 1958 por esse seu “Super Homem” de 1963?... Só se você me der também esse “Bolinha” de 1961...

- Esse “Fantasma” colorido de 1965 por esse “Flexa Ligeira” de 1967? Só se você trocar esse “Kid Colt” de 1960 pelo “Aí, Mocinho!” de 1966...

No final da peleja, saía todo mundo satisfeito.

Aquele era um ritual sagrado cumprido todos os domingos e a gente sempre ia pra casa tendo alguma coisa nova pra curtir.

Minhas namoradinhas da época nunca entenderam porque eu perdia tanto tempo fazendo aquilo em vez de ficar do lado de suas casas, naquele beco mal iluminado, lhes encoxando pra valer, na maior fissura, na maior aflição, enquanto o seu lobo (pai) não vinha.

Eu, particularmente, até hoje não sei como responder. Mas que era bom ler gibis, isso era.

Quero crer que todo mundo que participou daquela presepada, hoje continua gostando de ler e que conseguiu evoluir profissionalmente. É no que acredito, sinceramente.


Apaixonado pela Ursula Andrews desde que ela surgira do meio do mar trajando um minúsculo biquíni (para os padrões dos anos 60!) no inesquecível filme O Satânico Dr. No, eu andava caçando a versão HQ do filme como um cavaleiro templário vagava pela Terra Santa em busca do Santo Graal.

Nesse sábado, em companhia da Simone e da Silene, fui pela primeira vez à feira livre da Cachoeirinha, que funcionava na rua J. Carlos Antony, em frente ao grupo escolar Carvalho Leal, estrategicamente localizado a apenas um quarteirão de nossa nova casa.

Enquanto elas escarafunchavam as barracas de estivas, legumes e verduras, eu fiquei literalmente hipnotizado em frente a uma quantidade indescritível de gibis à venda, arrumados displicentemente sobre folhas de jornais estendidas no chão.

Profissional do escambo, até então eu não sabia que se vendiam gibis usados.

Havia umas dez “bancas” improvisadas – ou mais de 250 gibis! – administradas por moleques da minha idade.

Uma delas era comandada por Roberval Wilkens (aka “Val”), um moleque de cabelos no ombro e um ar invocado de guerreiro apache.

Sua banca era frequentada basicamente por adolescentes femininas em busca de Capricho, Grande Hotel, Sétimo Céu, Noturno, Ilusão, Encanto, Fascinação, Carinho e outras revistas de fotonovelas.


Minhas irmãs colecionavam aquele tipo de revista e como Val era sócio de meu primo Giovanni Bandeira no empreendimento, deduzi que meu primo estava surrupiando algumas revistas das meninas para vender na feira. Mas não denunciei a presepada.

Para quem não se recorda mais, a fotonovela apresenta uma narrativa que utiliza em conjunto a fotografia e o texto verbal.


Como nas histórias em quadrinhos desenhadas, cada quadrinho da sequência corresponde a uma cena da história, ou seja, cada fotografia era acompanhada de uma mensagem textual, com balões ilustrando os diálogos.


A característica principal das histórias era a intriga sentimental, geralmente apresentando uma heroína de origem humilde que luta por um amor difícil e complicado, alcançando seu objetivo de felicidade no final da narrativa.

Alguns personagens das fotonovelas eram famosos como Michella Roc, Sandro Moretti, Rosana Galli e Franco Gasparri. Na falta de gibis novos, eu lia muita fotonovela.

Em dupla ou separados, Val e Gigio aplicavam semanalmente o golpe da “sacola plástica” nas livrarias Acadêmica e Colegial.

O golpe era simples, mas exigia precisão e sangue frio.

Você comprava um gibi, pagava e recebia a revista dentro de uma sacola plástica.

Aí, em vez de ir embora pra casa, você entrava de novo na livraria.

Daí, era só driblar a vigilância dos balconistas e colocar dentro da sacola plástica quantos gibis coubessem.

Dependendo do tamanho da sacola, era possível surrupiar até cinco gibis de uma só tacada.

Como a sacola vinha com o logotipo da livraria, nenhum balconista tinha coragem de parar o punguista eventual para conferir o conteúdo da sacola.

Por conta disso, aquela era uma das poucas bancas da feira da Cachoeirinha que vendia gibis novinhos em folha.

Val e Gigio eram dois ladrões de respeito.

A banca comandada pelo Antônio Luiz (aka “professor Lua”) era especializada em gibis de terceira linha, ou seja, literatura trash da pior qualidade. Explico melhor.

Havia os gibis clássicos de primeira linha, quase todos editados pela Ebal (Editora Brasil América), RGE (Rio Gráfica Editora) e La Selva: Tarzan, Superman, Fantasma, Mandrake, Batman, Zorro, Cavaleiro Negro, Flecha Ligeira, Nick Holmes, Rock Lane, Thor, Homem de Ferro, Aí, Mocinho!, Buck Jones, Kit Carson, Don Chicote, Ferdinando, Brucutu, Flash Gordon, Jerônimo, Pernalonga, Recruta Zero, Dick Tracy, Texas Kid, Frajola e Piupiu, Kid Colt, Reis do Faroeste, Gunsmoke, Cheyenne, etc.


Esses eram os mais valiosos na hora de fazer escambo.

Havia os gibis de segunda linha, editados pelas editoras Vecchi, O Cruzeiro e Abril: Gasparzinho, Brasinha, Bolinha, Luluzinha, Pimentinha, Bolota, Tininha, Brotoeja, Riquinho, Robin Hood, Kid Colt, Cisco Kid, Tex, Skorpio e todos os personagens clássicos do Walt Disney.


Na base da camaradagem, era possível trocar dois gibis de segunda linha por um de primeira linha.

E, finalmente, havia os gibis de terceira linha, quase todos de desenhistas nacionais e editados por pequenas gráficas de fundo de quintal: Kripta, Histórias do Além, Sobrenatural, Combate, Pesadelo, Drácula, A Filha do Drácula, Lobisomen, A Múmia, Capitão Mistério, etc.


Também na base da camaradagem, era possível trocar três gibis de terceira linha por um de segunda linha.

O meu futuro amigo Antônio Lua era o rei dos quadrinhos trash.

Nesse dia, descobri a versão HQ do filme do James Bond em uma das bancas.

Perguntei o preço. Um índio baniwa, com cara de poucos amigos, resmungou qualquer coisa, que, a mim, me pareceu uma pequena fortuna.


Argumentei que aquilo era o preço superfaturado de um gibi novinho em folha, ainda na prateleira da livraria.

O índio resmungou outra coisa que, na língua dele, devia significar “quer comprar, compra, cara-pálida, não quer, vai tomar onde as patas tomam!”.

Saí de lá cuspindo fogo.

Passei o resto da tarde convencendo minhas irmãs a me emprestarem uns caraminguás para inteirar com a merreca da minha mesada e ir comprar o maldito livro.

Aquilo havia virado uma questão de honra.

Não sei quais foram as bases do acordo para receber o empréstimo, mas lembro que passei uns três meses fazendo trabalhos escolares delas duas.


Sim, a Ursula Andrews, saindo do mar em um minúsculo biquíni (para a época, porra, para a época!), valia o sacrifício...

Retornei à feira livre por volta das sete da noite. O baniwa estava empilhando as revistas para ir embora.

Ele era o último dos moicanos, os outros vendedores de gibis já haviam se mandado.

Sem dizer uma palavra, contei a grana na frente dele, entreguei, remexi a pilha de gibis, retirei “O Satânico Dr. No”, coloquei debaixo do braço e já ia meter o pé na carreira quando o índio escroto me interpelou:

– Escuta aqui, bicho! Não dá pra ti me ajudar a levar essas revistas até a minha casa? É aqui perto, ali na Borba quase no canto da Parintins...

Como era o meu caminho natural, resolvi ajudá-lo.

Dividimos os mais de 60 gibis em duas pilhas, cada um colocou a sua na cabeça e fomos conversando até a casa dele.

O baniwa tinha doze anos e se chamava Mário Adolfo.

Era o único homem em uma prole de sete irmãos (ele, Mércia, Marilúcia, Marília, Mary Jane, Maud e Mônica). Sua mãe, Dona Inês Aryce de Castro, era viúva.


Mary Jane, Mônica, Mário Adolfo, Maud, Marília, Mércia e Marilúcia, durante o aniversário de 90 anos de Dona Inês, celebrado em agosto do ano passado, em Goiânia

Ele também era viciado em gibis, mas aqueles não eram dele, eram do Chico Costa, um vizinho meio “unha-de-fome”. Daí os preços salgados e a impossibilidade de barganhar. Se baixasse o preço, Chico Costa descontava na sua (dele) comissão.

A sinceridade do baniwa desarmou completamente o meu instinto homicida. Confesso que ainda estava com ânsia de esganá-lo.

O certo é que, já me sentindo menos otário (comprar um gibi pelo, sei lá, quase o dobro do preço de capa, só mesmo gostando muito da Ursula Andrews de biquíni...), resolvi entrar no jogo.

Falei que era novo na rua, não conhecia ninguém, estava meio perdido.

Mário Adolfo me convidou para jogarmos bola na manhã de domingo, num campinho que havia perto de sua casa, onde me apresentaria para a garotada do lugar.

Resumindo: sem sequer me conhecer direito, virou uma espécie de salvo-conduto naquele território (pra mim) ainda meio hostil.

Esse tipo de coisa, ninguém esquece. Ainda mais, quando só se tem dez anos.

No dia seguinte, por volta das 9h da manhã, Mário Adolfo passou em casa.

Fomos até o campinho, que ficava por detrás de uma vila de madeira, na rua Borba, a uns 30 metros da residência dele.

Nos anos 80, a vila e o campinho se transformariam na quadra coberta do GRES Andanças de Ciganos.

Lá conheci meus primeiros amigos do pedaço: Sidão Ribeiro, os irmãos Fábio, Fernando e Chico Costa, Becão, Renan, Zequinha, Nôca, Negão, Neguinho, Tião, Rener, Luiz Lobão et caterva.

Nesse dia, após uma estreia desastrada do novo ponta-de-lança (eu, evidentemente), o time do Mário Adolfo, que era goleiro, levou uma sonora goleada.


Enquanto aguardávamos uma nova oportunidade (os jogos eram no sistema “ganha, chama”, mas, por causa da quantidade de times, quem perdesse esperava uns 40 minutos para jogar de novo), ficamos conversando sentados ao pé de uma mangueira.

Mário Adolfo pegou um graveto, limpou a areia com os pés, e, sem parar de conversar, desenhou a cara do Fantasma.

Eu fiz a mesma coisa, mas desenhei o Águia Negra. Mário ficou entusiasmado:

– Égua, bicho, tu também sabe desenhar?...

Deve ter sido um alumbramento mútuo, pois esquecemos completamente o futebol para discutir enredos imaginários de HQs, que gostaríamos de desenhar (trabalho ao qual nos entregaríamos de corpo e alma pelos próximos seis anos).

Desse dia em diante, nos transformamos em verdadeiros blood brothers (“irmãos de sangue”), apesar de o sacana ser botafoguense doente e adorar Lupicínio Rodrigues enquanto eu sou vascaíno sadio e prefiro o Led Zeppelin.

Aliás, a própria Dona Inês me tem como filho até hoje – e a recíproca desse amor filial é verdadeira. Não é pouca porcaria.

No sábado seguinte, eu havia me transformado em auxiliar do Mário Adolfo na venda de gibis usados na feira da Cachoeirinha.

Nessa foto abaixo, peguei alguns de meus gibis e fiz uma simulação de como era a nossa banca na feira-livre.


Nessa outra, fiz uma simulação de como era a banca de Gigio e Val.


A qualidade dos nossos gibis (meus e do Mário Adolfo) era muito melhor, não era não?

Parece que foi ontem, mas já faz 45 anos.

E guardo o livro do James Bond comigo até hoje, como se fosse uma espécie de talismã.



Na tarde da última quinta-feira, eu estive na casa do Mário Adolfo para auxiliá-lo a colocar sua roupa de astronauta e adentrar no fantástico mundo da web.

Aluno aplicado, ele já aprendeu a scannear e postar fotos no Facebook, e também já começou a fazer seu próprio blog.

Daqui a dois meses, o mais novo desbravador dos sete mares da internet vai precisar ter um domínio completo sobre essas ferramentas.

O fato é que eu e Mário Adolfo vamos estrear um portal de humor na web, ressuscitando o assaz desbundado Candiru, o jornal de maior penetração da Amazônia, e com uma seção inteiramente voltada para as histórias em quadrinhos.


A presepada deverá rolar depois do carnaval.

O New York Times informará.

Ah, antes que eu me esqueça. O Mário Adolfo fez aniversário ontem e seu filho caçula, o publicitário Marcus Vinicius, fez aniversário no dia 1º.

Aos dois, os meus parabéns e votos de sucesso em suas respectivas vidas amorosas e carreiras profissionais!

Noblesse oblige.

Um comentário:

Blog do Mário Adolfo disse...

Meu irmãozinho Simãozinho!
Você me fez chorar de saudades me levan do por essa viagem que "parece e que foi ontem..." Nós realmente somos irmáos de sangue e, vc não deve ter visto, mas editei um CURUMIM sobre o Dia do Amigo" (isso existe) e dediquei a vc. No Recado do Editor,um editorialzinho que eu escrevo para as crianças, falei sobre a nossa amizade e disse que, em mais de 40 anos, nunca tivemos uma rtusga, uma palvra áspera, um ato de intolerância. O que a gente pensou em dia fazer acaamos não rea.izado: tomar cerveja no quintal enquanto nosso filhos corriam pelo gramado brincando juntos. Mas o destino tratou de manter nossa ligação, mesmo sem a nossa autorização: você tem um filho que se chama Marfc us Viníocius. Eu também. O teu filho é publicitário. O meu também. Sem contar que vc era o meu habeas-corpus para escapar da Teresa (Teka) às sextas-feiras. "Vou beber com o Simão!": E ela:"Ah, com o Simão pode".
Fica com D

eus e obrigado por manter no seu coração a chama da nossa amizade imortal. Hasta la victória. Siempre!"