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sábado, agosto 20, 2011

Duas histórias do Grande Pajé Branco

Orlando Carioca me explicando como se faz um cavalo marinho invertido sem matar a parceira de rir

Outubro de 1983. Comandando uma frente de trabalho de 30 peões, Orlando Carioca estava na região do lago Urucuri, em Codajás, retirando madeira de lei para trazer pra Manaus.

Sua meta era conseguir 500 metros cúbicos de madeira em pranchas, equivalente a 1.500 toras de árvores extraídas.

A derrubada das árvores estava sendo feito no entorno das florestas alagadas para aproveitar as enchentes anuais do rio Solimões e de seus tributários mais próximos.

Para quem não sabe, a derrubada de árvores nas florestas alagadas é um dos trabalhos mais espinhosos do planeta.

Os madeireiros embrenham-se na floresta e cortam as madeiras de lei (cedro, peroba, maçaranduba, mogno, etc) com motosserras individuais, numa espécie de garimpagem na selva, durante o período da estiagem (maio a outubro).

As árvores ficam caídas no chão.

Quando começa o período das chuvas (novembro a abril), ocorre o aumento do nível da água nos rios, que podem chegar a 10 metros ou mais, e os troncos flutuam.

Só então eles são acorrentados uns aos outros e passam a ser rebocados por uma balsa com empurrador até seu destino final.


Diariamente, Orlando Carioca, acompanhado de dois mateiros, saía de voadeira pelos paranás para acompanhar o trabalho dos peões em picadas distantes até 10 quilômetros do acampamento principal.

Numa dessas viagens, ele percebeu que o som de uma motosserra vindo lá dos confins da floresta estava meio diferente.

– Quem é qui está derrubando árvore aqui nessa colocação? – perguntou ele a um dos mateiros.

– O compadre Pernambuco. Por que? – questionou um dos mateiros.

– Deve ter acontecido alguma coisa. O som da motosserra é de quem está serrando o vazio... – explicou Orlando Carioca.

Eles pararam a voadeira na beira do paraná e entraram na mata.

Uns cinco quilômetros depois, encontraram Pernambuco se esvaindo em sangue e a motosserra rugindo no chão a uns dois metros de distância.

O sujeito explicou o que havia acontecido.

Ao enfiar a motosserra num tronco de cedro, a máquina resvalou e veio em sua direção, atingindo-lhe no meio do joelho.

Sua rótula saiu inteira.

Ele estava com a rótula guardada no bolso.

Supostamente descendente dos índios Katukina, do alto Juruá, Orlando Carioca improvisou um torniquete de cipó na coxa de Pernambuco, orientou os dois mateiros a construírem uma padiola com pedaços de galhos e conduziram o ferido até a voadeira.

Meia hora depois, estavam chegando ao acampamento principal.

Orlando Carioca pegou a rótula de Pernambuco, esterilizou com água quente na caçarola de fazer café, depois lambuzou a mesma de terramicina, o único antibiótico existente no acampamento.

Na sequência, esterilizou com álcool o buraco aberto no joelho de Pernambuco, encheu o buraco de terramicina e reposicionou a rótula no local.

Aí, fez Pernambuco beber meia garrafa de cachaça Praianinha.

Com Pernambuco já meio grogue, Orlando colocou um pedaço de pano na boca do sujeito recomendando que ele “mordesse com vontade”, pediu para os dois mateiros imobilizarem o paciente e começou a costurar o ferimento, a sangue frio, com uma agulha de costurar bola de futebol e linha de pesca, grossa que só papel de embrulhar prego.

Depois de dar quinze pontos no ferimento, cobriu o mesmo com folhas de capeba embebidas em óleo de copaíba, e enfaixou o joelho do paciente com gaze.

Pernambuco passou três meses com a perna imobilizada.

Diariamente, Orlando Carioca trocava as folhas de capeba embebidas em óleo de copaíba do joelho avariado.

Seis meses depois do acidente, Pernambuco já estava participando de acirradas disputas de futebol no campinho próximo do acampamento.

Orlando Carioca passou a ser chamado pelos mateiros de “o grande pajé branco”.

E, graças ao medo imposto aos trabalhadores pelos seus poderes sobrenaturais, nunca se derrubou tanta árvore em tão pouco tempo na história de Codajás.

Quase que a região do lago Urucuri se transforma em um novo Saara.


Arnaldo Botelho, eu, Rogelio Casado, Orlando Carioca e Afonso Toscano, durante um lançamento do jornal Candiru no Bar do Armando

Fevereiro de 1996. O empresário Arnaldo Botelho foi incumbido pelo então prefeito de Maués, Sidney Leite, de perfurar um poço artesiano na comunidade Nova Vida, no coração da Terra Indígena Andirá-Marau.

Maués tem uma população de aproximadamente 50 mil habitantes dos quais ao menos 5 mil são indígenas da etnia sateré-maué.

Eles são conhecidos pelo manuseio do guaraná, planta que é cultivada no município e vendida como matéria-prima de refrigerantes e como estimulante natural.

Na Terra Indígena, vivem aproximadamente 8 mil índios de várias etnias distribuídos nas calhas dos rios Andirá, Marau e Abacaxis.

Vivo como sempre, Arnaldo Botelho incumbiu seu braço direito, Orlando Carioca, de executar a tarefa.

Comandando uma equipe de 20 trabalhadores, o “grande pajé branco” deixou a cidade de Maués em um barco entupido de matéria prima, ferramentas e mantimentos (cimento, seixo, perfuratriz, brocas, sacos de feijão, arroz, macarrão, etc) e entrou no rio Marau.

A região do rio Marau tem pouco mais de 3,2 mil índios sateré e é composta por pequenas comunidades de casas de madeira cobertas com palha.


Há muito tempo os sateré deixaram de viver em malocas.

Na maioria das comunidades indígenas da Amazônia, as malocas foram combatidas por missionários religiosos que viam as casas coletivas como redutos de “promiscuidade”.

Na região do Marau, a maior parte da população divide-se entre católicos e evangélicos.

As habitações ficam no alto de um pequeno morro e se dispõem ao longo de quase um quilômetro mata adentro.

Depois de quase um dia de viagem, o piloto da embarcação descobriu que estava mais perdido do que cachorro quando cai do caminhão de mudança.

Sem se afobar, Orlando Carioca pediu que ele encostasse o barco no porto da comunidade Paraíso, uma instalação erguida na selva por missionários católicos, e foi pedir informações.

– Bom dia, cacique! Como é que eu faço pra chegar na comunidade Nova Vida? – perguntou, amistosamente, Orlando Carioca.

– O que ocês vão fazer lá na terra dos crente? Aquilo lá só tem bicho ruim! Tudo fi da égua! – devolveu o cacique, visivelmente puto.

Uns vinte guerreiros armados de arco e flecha se aproximaram dos dois.

Sem saber que a comunidade Nova Vida era território dos missionários evangélicos, Orlando Carioca abriu o jogo:

– É que o prefeito Sidney Leite pediu pra gente fazer um poço artesiano lá na aldeia!

– E prefeito virou crente? Virou fi da égua? – questionou o cacique, aumentando o tom de voz.

– Que eu saiba não! – tentou desconversar Orlando Carioca.

– Pois então! – disparou o cacique. “Vão fazer poço lá porra nenhuma. Vão fazer poço aqui. Tá todo mundo preso. Só largo ocês depois de poço pronto”.

Dito isso, os vinte guerreiros desceram o barranco, expulsaram os passageiros do barco e começaram a descarregar as tralhas na aldeia.

O barco ficou sob o controle dos índios.

Sem perder o sangue frio, Orlando Carioca tentou a última cartada:

– Sendo assim, cacique, eu vou ter que voltar lá com o prefeito e explicar que houve uma pequena mudança nos planos!

– Ocê vai, mas todo trabaiadô fica aqui furando poço! Quero ver fi da égua falar contrário! – avisou o cacique, enquanto autorizava um dos guerreiros a levar Orlando de volta pra cidade numa pequena voadeira.

Orlando Carioca desceu no porto de Maués na tarde da terça-feira gorda de carnaval.


Nem sombra do prefeito Sidney Leite, atualmente deputado estadual dos Democratas.

Tentou localizar Arnaldo Botelho em Manaus.

Nem sombra do empresário.

Puto da vida, ele se enfurnou no bar do Praia Hotel e começou a encher a cara de truaca.

Por volta das 17h, o economista Adilson Dineli e o comerciante Mauro do Osnam avistaram no boteco o seu velho parceiro de noitadas etílicas e o convidaram para desfilar no bloco Viracopos, que iria se apresentar dali a algumas horas na avenida Antarctica.

– Quanto custa a fantasia? – questionou Orlando.

– Cem pratas! – devolveu Dineli.

– Porra, é cara pra cacete, hein? – argumentou Orlando.

– Que cara que nada! Nós somos bloco especial, bicho, e vamos arrebentar na avenida! – avisou Mauro.

Dineli disparou alguns telefonemas, se sentou a mesa e começou a beber com o velho parceiro.

Meia hora depois, apareceu um sujeito no bar e entregou uma fantasia ao novo folião: era um pequeno saco plástico, contendo dentro uma pequena sunga imitando pele de onça e um adorno plumário para ser atado em um dos bíceps contendo uma única pena de arara.

Ao tentar entrar na sunga de tamanho M (de “miúdo”), Orlando Carioca, que usa cueca GGL (“grande”, “grande” e “larga”), já descosturou completamente a parte de baixo da fantasia.

Seu saco ficou pendurado pra fora do buraco da sunga.

Alguém providenciou um alfinete de segurança para evitar a pouca vergonha.

Dez minutos depois, chegou o maquiador Agê, para fazer uma pintura corporal nos foliões.

Deslumbrado com a pele cor de rosa do “grande pajé branco”, Agê utilizou tinta preta e amarela para transformá-lo em um verdadeiro tigre de bengala.

Por volta das 21h, o bloco Viracopos entrava na passarela carnavalesca.

Eram cerca de 150 pessoas completamente bêbadas, utilizando orgulhosamente a fantasia minimalista, mas que se destacavam dos demais blocos por causa da caprichadíssima pintura corporal.

O “bonde” era puxado por Orlando Tigrão.

A música entoada pelo bloco a plenos pulmões, com o apoio de uma pequena orquestra de sopros, era a clássica “As águas vão rolar”.

Diante do palanque das autoridades, Orlando localizou o prefeito Sidney Leite e, em meio a algazarra dos foliões e da cantoria cada vez mais alta da marchinha, travou um discurso surrealista:

– Os índios do Marau botaram no nosso cu! – ele gritava para o prefeito, fazendo com as mãos o clássico gesto do “top top”.

O prefeito, que não escutava direito o que o tigrão estava dizendo, limitava-se a estender a mão com o polegar pra cima como quem diz “tudo bem, vocês estão arrebentando, o bloco está muito legal!”

Percebendo que o prefeito não estava entendendo direito a mensagem, Orlando mudou o gesto para dois dedos em forma de círculo sendo penetrado pelo dedo maior de todos e continuou a berrar:

– Os índios do Marau estão metendo até o toco na nossa bunda!

Sidney Leite, que continuava não entendo nada, limitava-se a aplaudir e cantar a marchinha.

Orlando Tigrão resolveu invadir o palanque das autoridades para explicar a situação, mas, de repente, desabou o maior pé d’água da paróquia.

As autoridades escafederam-se em questão de minutos.

As tinturas corporais, a base d’água, começaram a se desmanchar.

Orlando Tigrão se transformou em uma “rasga mortalha” pintada por Salvador Dali.

Cinco dias depois, ainda de ressaca, ele conseguiu localizar o prefeito e explicar o ocorrido.

Na mesma hora, Sidney Leite requisitou um barco, encheu de policiais armados de fuzis, e, em companhia de Orlando Tigrão, se mandou para a comunidade Paraíso.

Foram recebidos com festa na aldeia.

Trabalhando em regime de escravidão, 24 horas por dia, os 20 trabalhadores braçais haviam construído um magnífico poço artesiano de 200 metros, de onde jorrava uma estupenda água cristalina.

O cacique da aldeia estava em estado de graça e bebendo há três dias sem parar.

Até hoje os índios da comunidade Nova Vida, que continuam sem seu poço artesiano, não sabem o que aconteceu.

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