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sexta-feira, julho 17, 2009

Tributo a Billie Holiday em Porto Alegre


Nessa sexta-feira, dia em que uma das maiores cantoras da História completa 50 anos de morte, a peça “Lady Day” estreia em Porto Alegre. Todo o talento e a podreira de Billie Holiday (1915 - 1959) devem aparecer no monólogo, às 22h, no Porão do Beco (Avenida Independência, 936, R$ 12).

Dirigido por Marco Mafra, o espetáculo é interpretado pela atriz e cantora Melissa Arievo – na foto, encarnando Billie com a tradicional gardênia no cabelo. Além de encenar a perturbada trajetória da cantora, Melissa cantará a capela clássicos do jazz imortalizados por Billie.

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Abaixo, deliciem-se com a excelente contribuição que o Carlos André Moreira – crítico literário de Zero Hora e comandante do blog Mundo Livro – preparou para o Remix sobre Billie Holiday:

Popstar antes do pop


Cantora com uma vida de excessos, bebidas, relacionamentos abusivos física e emocionalmente, doses cavalares de droga pouco antes dos shows e ainda assim uma voz e uma presença de palco que transformavam a audiência em uma massa amorfa, galvanizada e sedenta por mais.

Não, não estamos falando de Amy Winehouse, ou de Maysa, ou de qualquer uma das encarnações mais ou menos recentes da diva doidaça e torturada. As palavras acima referem-se a Billie Holiday, Lady Day, uma legítima popstar antes de existir o pop.

O espetáculo que entra em cartaz em Porto Alegre é baseado na autobiografia da cantora, escrita oficialmente em colaboração com o jornalista William Dufty (ele funcionou como o ghost writer da cantora, na verdade), mas uma boa pedida para conhecer um pouco mais a vida da artista é o perfil de cerca de 20 páginas produzido por Ruy Castro para seu livro Saudades do Século 20, lançado em 1999 (sim, sim, sempre tem um corneta cibertecnológico que acha que pode conseguir o mesmo na Wikipedia, mas eu, jurássico assumido, prefiro o texto do Ruy Castro ao do de 90% dos atualizadores de qualquer coisa comunitária ou “wiki” da rede – e estou sendo bem generoso).

O título do perfil, indicando que Lady Day foi uma das primeiras cantoras da modernidade suplantadas pelo próprio mito é “Aos pés da própria lenda”, e sua história dramática de pobreza, fama, vitórias e derrotas sempre espetaculares é o primeiro do livro, um ótimo cartão de visitas para uma série que ainda reúne, entre outros, Frank Sinatra, Glenn Miller, Humphrey Bogart, Hitchcock, Dashiell Hammett, Raymond Chandler, todos apresentados sob a luz majestosa da prosa precisa e musical de Ruy Castro.

Sobre Lady Day, escreve o jornalista:

“Billie Holiday cantava como uma deusa e sabia disso. Uma deusa não arranha sua divindade com movimentos prosaicos diante dos mortais. Sua voz deve bastar. Por isso Billie cantava imóvel, quase como uma estátua.

Não deixava que seu corpo se entregasse à canção. Com os braços retos em direção ao chão, dava, no máximo, tapinhas de leve na coxa com a mão direita, estalava silenciosamente os dedos da mão esquerda e marcava o ritmo de forma quase imperceptível com o pé. À luz azulada da boate, era como se estivesse plantada sobre um pedestal. Às vezes inclinava suavemente a cabeca — não para dirigir-se à platéia, mas para comunicar-se com seus músicos pelo olhar.

Eles entendiam esse olhar: podia ser de aprovação, de prazer, até de gozo supremo. Ela era um deles e falavam uma linguagem de adoração mútua

Se uma mesa de estranhos, não iniciados no culto, conversasse ou perturbasse a música com seus drinques e talheres, o garçom se aproximava e sussurrava ao ouvido do que parecesse o maioral: ‘Lady lamenta que os senhores não estejam gostando. Por favor, paguem e saiam...’

Lady era Billie Holiday. Lady Day…”

A postura distante da cantora no palco, portanto, estava longe do carisma do “entertainer” – Lady Day entrava em cena exigindo ocupar seu lugar de direito, o centro de uma atenção silenciosa e reverencial (Ruy também conta que certa vez Sinatra, sentado na plateia, incomodado com um inconveniente que não parava de falar durante o show, nocauteou o indivíduo repetindo o mantra: “ninguém fala quando Lady canta”.

Lady sabia desde o início seu tamanho, gigantesco, perante seu público – contrastando, Ruy ressalta, com sua estatura de 1m65cm. Também o mito no palco era maior e mais glorioso que muitos dos episódios da sua vida real: filha de um casamento problemático, pais que se casaram quando ela já havia nascido (e daí, dirão alguns? Daí que isso fazia diferença em 1915), prostituição na juventude, errância por espeluncas até ser descoberta cantando no Harlem em 1933. Foi nesse ano que gravou seu primeiro disco – como crooner de um grupo, como a maioria dos intérpretes do período – no caso dela, o grupo era o do clarinetista e futuro rei do suingue Benny Goodman.

Depois de já ser “a” Lady, cantando no palco temas que poderia ter vivido – Ruy conta que na época as comparações entre ela e Aretha Franklin eram cruéis para esta última: Aretha cantava músicas sobre homens que a abandonavam. Billie Holiday parecia ser abandonada no palco a cada canção. Sua interpretação para Strange Fruit é até hoje, em qualquer contexto, uma das coisas mais impactantes já escritas sobre o drama da escravidão negra:

“Lady cantava devagar, arrastando a voz em relação ao andamento do piano, sem pressa de acompanhá-lo. Quando cantava Strange Fruit, a canção que falava de negros pendurados nas árvores como frutos para os corvos – tema de encerramento de seus shows desde 1939 – o silêncio esmagava a sala.

O serviço era interrompido, os garçons postavam-se nos cantos, o barman pousava a coqueteleira.

As luzes se apagavam, exceto por um spot sobre sua cabeça e as lágrimas que ela invariavelmente produzia escorriam-lhe como prata sobre o rosto. Sua platéia também chorava, mas engolia o choro.

As palmas explodiam, mas Lady ignorava os gritos de bis e não se curvava para agradecer. Virava-se e saía devagar em direção ao camarim, tão devagar quanto cantava, caminhando com imperial dignidade.

As luzes se acendiam aos poucos, mas o ambiente ficava impregnado de Strange Fruit – e de Lady Day.

Lady mesmo, da cabeça aos pés.”

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