Pesquisar este blog

sábado, junho 05, 2010

Wilson no Céu com Leminski e diamantes


Nos anos 80, nosso meio de comunicação preferencial eram cartas manuscritas. Dava uma mão de obra federal comprar envelopes pardos tipo saco, colocar dentro um livro de poesia com uma pequena carta escrita à mão, entrar na fila das agências da ECT e despachar a encomenda para locais tão distantes quanto Picos da Paraíba.

Mas a gente fazia aquilo, com uma alegria indescritível no coração. Devo ter trocado livros e cartas com cerca de 1.500 poetas espalhados por esse mundão afora.

Em 1987, a poeta Ivone Webber, de Canoas (RS) me enviou um exemplar do suplemento cultural Nicolau, de Curitiba, editado pelo Wilson Bueno. Li o expediente. Era um suplemento “de grátis”, apesar de ser quase uma revista de literatura.

Peguei o endereço de uns 60 intelectuais da cidade e mandei pra Curitiba. O jornalão (32 páginas em tamanho tablóide, papel branco, ricamente ilustrado) começou a chegar à residência dos escolhidos.

O poeta Aníbal Beça foi um dos primeiros a me ligar:

– Pô, poeta, o jornal Nicolau é do caralho, mas quanto é que vou pagar pela assinatura?

Ficou surpreso ao saber que era de graça. Recebi outros telefonemas no mesmo clima (parece que no primeiro número enviado eles avisavam quem tinha pedido a gentileza de solicitar o envio do jornal para evitar mal entendidos).

De repente, a parte da cidade que contava estava tendo acesso a um dos melhores suplementos literários do país. Salvo engano, o Nicolau tinha uma circulação mensal superior a 250 mil exemplares por obra e graça do prefeito Jaime Lerner (PDT).

Em 1988, mandei um exemplar autografado do meu Porandubas para o Wilson Bueno. Ele me enviou de volta um exemplar também autografado do seu Bolero’s Bar. No começo dos anos 90, enviei pra ele um exemplar do meu Guarânia com guaraná. Ele me enviou o seu Manual de Zoofilia. Anos depois, enviei meu Matou Bashô e foi ao cinema. Ele devolveu a gentileza me enviando o seu Mar Paraguayo.

Em 1994, uma bela surpresa: na página de lançamentos de livros do Nicolau, Wilson Bueno havia feito uma pequena resenha do zine “Roots”, que eu editava.

“O Nicolau recebe uma média de 200 fanzines por mês, mas como o foco de nossa publicação é outro eles não costumam ser resenhados”, explicava ele. “Estamos abrindo uma exceção para o zine Roots, editado pelo poeta Simão Pessoa, de Manaus (AM), porque ele traz um panorama atualizado da produção literário não só da região Norte, mas de todo o país. É um zine de excelente qualidade e muito bem diagramado, que vale a pena ser conhecido”. Aí, uma pequena foto do Roots e o meu endereço para correspondência. Fiquei bobo.

Com o advento da internet e a migração dos zines para os blogs, no final dos anos 90, fui perdendo o contato com vários escritores – entre eles Wilson Bueno.


Na última quarta-feira eu fiquei sabendo da tragédia pelo blog Palavra do Fingidor, do do poeta Zemaria Pinto: Wilson Bueno, de apenas 61 anos, havia sido encontrado morto no início da noite da última segunda-feira (31) na casa onde morava, no Bairro Santa Cândida, em Curitiba, no Paraná.

A polícia suspeita que ele foi assassinado com um golpe de arma branca no pescoço durante tentativa de assalto, ainda na noite de domingo. De acordo com peritos do IML (Instituto Médico Legal), Bueno também apresentava várias lesões pelo corpo.

Segundo o jornal Gazeta do Povo, de Curitiba, não foram encontrados sinais de arrombamento no local e o escritório estava revirado, com vários sacos de lixo vazios abertos espalhados pelo chão.

Por conta deste cenário, a polícia suspeita que objetos da casa seriam levados, mas, por alguma razão, não foram retirados, e que Bueno conhecia o criminoso.

Um cheque nominal deixado na escrivaninha do cômodo onde o corpo de Bueno estava é outra pista que a polícia leva em consideração para tentar esclarecer o caso.

O corpo foi encontrado pelo irmão do escritor chamado pela diarista, que estranhou ele não aparecer até o fim da tarde.

Quando foi localizado o escritor já estava morto há, pelo menos, 12 horas de acordo com o estado de rigidez em que se encontrava o corpo.

Para o delegado Silvan Rodney Pereira, da Delegacia de Roubos e Furtos, o assassino deve ser uma pessoa conhecida da vítima pois “provavelmente, a pessoa estava autorizada para entrar na casa porque não houve arrombamento”, acredita.

Segundo o delegado, uma máquina fotográfica e um celular, que teriam sidos roubados pelo assassino, poderiam conter algum conteúdo de “interesse em comum” e talvez motivado o crime.

Apesar de a casa estar revirada, o delegado não acredita que a vítima tenha travado uma luta com o assassino. “Foi morte traiçoeira. Ele levou uma facada lateral no pescoço e foi encontrado caído ao lado da cadeira, onde, provavelmente, foi morto, pois o braço da cadeira estava quebrado”, contou o delegado. A polícia trabalha com a hipótese de latrocínio (roubo seguido de morte).

Velório


Um cartaz com uma frase e uma foto do escritor recepcionava as pessoas que chegavam na Capela da Luz, ao lado do cemitério municipal, no velório de Wilson Bueno, realizado na terça-feira.

A todo momento pessoas chegavam para dar apoio à família e amigos. “Quem perdeu foi o mundo”, disse o irmão de Wilson, João Santana, que se emocionou várias vezes ao encontrar conhecidos.


João estava bastante abalado, afinal, além de perdeu um irmão, assassinado de forma cruel, foi a primeira pessoa a encontrar o corpo de Wilson. “Foi apavorante”.

O irmão do escritor conversou com Wilson domingo à tarde, cerca de 14h30, e estava tudo bem com ele. “Segundo a vizinha ele chegou as 21h30. Acreditamos que ele foi abordado quando saía”, afirmou.

A morte do paranaense, natural de Jaguapitã, no norte do estado, abalou profissionais da área, que além de colegas trabalho eram amigos.

“Ele era uma pessoa bastante singular, uma das vozes mais importantes na literatura”, disse o amigo Paulo Sandrine, que já trabalhou com Wilson.

“Um escritor inventivo que não se conformava com paradigmas estava sempre inovando”, garantiu o outro amigo e escritor Paulo Venturelli.

Sandrine, admirador das obras de Wilson, acredita que Bolero’s Bar, o primeiro livro do escritor, é o mais próximo do colega. “Acho que é o livro mais próximo no campo discursivo e estético, mas ele sempre separava muito bem a vida pessoal da literatura, literatura era literatura”, opinou.


Para o jornalista, escritor e amigo desde a adolescência de Wilson, Fábio Campana, o livro Mar Paraguayo é o mais importante porque foi escrito em “portunhol” com uma experimentação inédita. “Mas eram as crônicas que estavam mais próximas dele porque ele falava de si mesmo”, revela.

Criador do jornal cultural Nicolau, Wilson Bueno é autor de 13 livros, como a coletânea de contos Bolero’s Bar (1986) e a novela Mar Paraguayo, lançada em 1992, com a qual ganhou projeção internacional.

Um dos nomes mais expressivos do circuito literário curitibano, Wilson Bueno mostrou à cidade sua forma de fazer vanguarda e experimentação.

Como criador e editor do jornal literário Nicolau, no período entre 1987 e 1995, abriu espaço para escritores, poetas, cineastas e artistas plásticos que não tinham lugar na mídia. O jornal era publicado pela Fundação Cultural de Curitiba (FCC).

"É impossível falar de cultura em Curitiba sem destacar a participação ativa e ousada de Wilson Bueno. Ele foi um grande colaborador da Fundação Cultural em muitas ações, e um dos autores que mais contribuíram para o fortalecimento da literatura na cidade", destaca Paulino Viapiana, presidente da FCC.

O meio literário brasileiro sentirá a sua ausência, mas seu talento permanecerá nos treze livros publicados no Brasil, México e Argentina. Publicações como Bolero's Bar, com a qual estreou na ficção, em 1986, ou A copista de Kafka, série de contos independentes escritos em 2007 que criam um painel amplo e o aproxima do romance.

“Só podemos lamentar esta tragédia e a falta que este grande escritor fará, principalmente neste momento em que assumimos um grande compromisso de transformar Curitiba numa cidade leitora. Sua participação seria fundamental neste processo”, conclui Viapiana.


Esta é a crônica de Wilson Bueno publicada na revista Idéias que está nas bancas. Na última sexta-feira ele mandou sua colaboração para o próximo número. O texto que segue, primoroso, dá bem idéia do talento de Wilson, o mais inventivo escritor que tínhamos nesta área do planeta.

Mínima Alice

Muitos dias depois de haver perguntado a Alice quem ela era e esta haver respondido que já não sabia mais a rigor quem era pois havia mudado muitas vezes desde que acordara aquela manhã, a Lagarta reencontrou nossa heroína. Tão reduzida em seu tamanho, que ela estava, vejam vocês!, firmando-se com dificuldade bem no vértice de um Ás de Copas, isto é, na ponta do coração vermelho no centro da carta do baralho.

Difícil manter-se ali, apesar de mínima. Mas tão mínima, que a olho nu, isto é, sem poderosas lentes, jamais seria vista. Nossa! Nossa! A nossa invisível Alice apoiava um dos fios de perna num lado do coração e outro no lado oposto de tal forma que desse modo conseguia se equilibrar, ainda que, muitas vezes, um dos mínimos pezinhos escorregasse e ela ficasse assim meio enviesada na ponta do coração do Ás de Copas. Trêmulas ambas as pernas – tanto a esquerda quanto a direita.

“Será que exagerei na poção mágica que faz a gente diminuir encontrada atrás da poltrona da casa do Coelho?” – pensava Alice, incapaz sequer de pedir socorro, pois a voz era um arremedo de voz, certamente ainda mais fina que a do Mosquito e talvez inaudível mesmo, pois quanto mais pedia socorro, parece que menos a ouviam. A Rainha, caso ouvisse semelhante voz-zumbido, ou ainda mais baixo que um zumbido, mandaria cortar a cabeça de Alice, mesmo que ninguém pudesse lhe enxergar o pescoço. E era fiando-se nisso que Alice gritava e gritava e quanto mais escorregava, mais as pernas tremiam. E ela ainda mais pedia por socorro.

Até que teve a ideia de sentar-se, como quem monta a cavalo, no vértice do coração da carta. Coisa que ligeiro fez, mesmo porque suas perninhas-de-linha não suportariam o desconforto da posição anterior, mais um minuto, e os minutos ali pareciam ser ainda mais breves que os minutos da vida aqui fora.
“Como poderei sair daqui? – pensou Alice – se agora, de pequena passei a invisível?”

Mas aí é que se deu a aparição da Lagarta. Imaginem vocês, com uns óculos de lentes tão fantásticas e potentes que sugeriam os óculos de um escafandro, desses que mergulham no fundo dos Oceanos para catar minúsculas pedrinhas destinadas à coleção de gemas raras do Museu Britânico.

E lá vinha ela, a Lagarta, sempre devagar, e sempre cansada, meio que se arrastando, e andou a carta toda até chegar bem próxima do coração do Ás de Copas. Meneou a cabeça muitas vezes e de repente soltou um “ah!” de espanto e perplexidade:

― Não posso acreditar no que minhas lentes veem! ― exclamou a Lagarta extremamente surpresa. ― Você, Alice?! Mas como pode ter ficado menor que um cisco? Menor que um grão de poeira?

― Pois é, Dona Lagarta, acho que abusei da poção mágica de diminuir gente que encontrei atrás da poltrona do Gato. Também estava tão docinha…

― Sorte a sua, Alice! ― ralhou a Lagarta, num misto de impaciência e regozijo.

― Não tivesse emprestado esses óculos-lunetas dos irmãos Tledle, nunca sei se do Tledledee ou se do Tledledum, pois são tão parecidos, jamais a encontraria, menina! Jamais!

― E por que essas lentes, Dona Lagarta? Só para me procurar? ― perguntou, chorosa, a mínima Alice, agora mais calma, mas ainda enganchada na ponta do coração do Ás de Copas e com muito medo de cair dali. Por mínima, dada a altura, o tombo seria imenso, ou mesmo fatal.

― Claro que não, Alice! Nem sabia… Ando atrás de uma Pulga que roubou 500 libras do Unicórnio. E te confesso que de longe pensei que você fosse a própria Pulga Larápia.

― Graças a Deus! ― benzeu-se Alice. E logo se corrigiu, pois com aquela expressão poderia parecer à Lagarta que estava aprovando o feio ato da Pulga. E logo este de roubar o Unicórnio, aquele animal tão gracioso que fizera um acordo com ela, Alice, aquele acordo que se ela acreditasse nele, ele passaria a acreditar nela e assim, um acreditando no outro, ambos passariam a se ver sob a mais veraz realidade.

Mas tudo indicou que a Lagarta entendeu de pronto o “Graças a Deus!” de Alice. E essa estava tão pálida e trêmula em sua minimez mais mínima, que só as lentes da Lagarta alcançavam perceber. Além disso, a Lagarta, sabemos, era muito compreensiva, ademais de generosa.

E foi então que Alice arriscou perguntar o que é que ela vira com tão poderosas lentes, até ali, na caçada atrás da Pulga Larápia:

― Dona Lagarta o que a senhora já viu em sua caminhada? ― uma curiosa Alicimínima, com voz abaixo da linha do silêncio, enganchada na ponta do coração da carta, quis saber.

― Nem te conto, Alice. Um exército de gérmens ainda há pouco vi subindo uma haste de capim. E incrível foi quando três grandes pulgões, estes visíveis sem as lentes, atacaram os gérmens. Uma guerra sangrenta, mas, quieta em meu canto, assisti à vitória dos pulgões. Parentes da Pulga Larápia, sem dúvida, mas não podemos incriminar alguém só porque guarda parentesco com quem não tem caráter, não é mesmo?

― Sim, siiiimmmmmmmmmmmm ― zuniu Alicimínima, temerosa de ficar ainda menor e sumir até mesmo da visão das poderosas lentes da Lagarta.

― Dona Lagarta, estou com medo… Medo de ficar ainda menor…

― Se você ficar ainda menor, não há razão para medo ― corrigiu a Lagarta.

― É mesmo ― entendeu logo nossa Alicimínima. ― Se eu for ficando menor, e menor, e menor ainda, aí eu desapareço e deixo de existir e eu não existindo não poderei ter medo, não é mesmo?

― Justo, Alice. Justo ― aprovou a Lagarta. E você então ficaria tão mínima, mas tão mínima, que deixando de existir, não seria nem mais sequer Alice.

― Mas será que eu não ficaria sendo, assim mesmo, uma Alicenada alicimínima, e continuaria com medo? Será que o que é nada não tem medo de nada ? De nadinha mesmo?

Dona Lagarta não respondeu mas foi logo acalmando Alice:

― Olha, continua aí sentadinha no vértice do coração de Copas. Segura firmizíssima com as mãozinhas, como quem segura num balancim, para não cair, que eu vou ver se encontro a outra poção, a de crescer, que, sei, o Coelho guarda, bem escondida, em sua casa, numa velha cômoda…
Uma chorosinhinhha Alicimínimazinhainha assentiu com a invisivelzinha cabecinhinha que ali aguardaria a Lagarta.

Não demorou muito, retornou a Lagarta com o vidro de poção de crescer encontrado, bem escondido, dentro de uma gaveta da cômoda, na casa do Coelho. De pequeníssima bolsa retirou com a boca um conta-gotas tão microscópico que só os olhos-lunetas da Lagarta conseguiam enxergar. E, com um sopro, o pôs nas mãos da tiquititíssima Alice.

― Abra sua bocazinhazinha Alicinha ― pediu Dona Lagarta. E, com extremo cuidado e paciência, como só as lagartas são capazes, com os óculos de poderosas lentes, que nunca foram tão úteis, ajudou Alice a pingar as partículas-gotículas da poção na linguazinhazinha de nossa Aliceminimazinha.

E esta foi de novo crescendo, crescendo, e quando chegou no tamanho suficiente para saltar da ponta do coração, ainda assim teve que se servir do micro conta-gotículas soprado da boca da Lagarta. Mas logo alcançou escorregar, por si própria, do Ás de Copas e aí, agora a gotículasículas medidas, continuou a aspirar boquita adentro a poção mágica. Desta feita com extremo cuidado. Poderia, quem sabe?, virar uma dessas gigantonas que vão por aí amassando com seus grandes pés casas, árvores e até afundando barcos em alto mar. Deus nos livre a falta de medida, conjeturou a ainda desmedida Alice.

Quando ficou bem maior que a Lagarta, percebeu que algo lhe subia pela perna. E não é que era a Pulga Larápia!!! Num movimento rápido e certeiro, como só Alice era capaz, grudou entre o polegar e o indicador a bandida, disposta a entregá-la, viva, à Lagarta. Esperneando muito, a Pulga Larápia, que além de larápia era muito ágil, ou por isso mesmo, escapou, contudo, de entre os dedos de Alice e sumiu na Floresta a gigantescos saltos, a foragida.

A Lagarta ficou olhando, olhando, e decidiu retirar os incômodos óculos de poderosas lentes. Aquela Pulga jamais ninguém encontraria ― concluiu.

Mas aí Alice já estava em seu tamanho quase normal e tomando a Lagarta com cuidado na palma da mão, para que não se cansasse no caminho, a levou até o Unicórnio. E junto ao Unicórnio testemunhou todo o ocorrido.

Nenhum comentário: