Conheci o futuro jornalista Orlando Farias no campus do
Instituto de Ciências Humanas e Letras (ICHL), ali na Rua Major Gabriel, no
primeiro semestre de 1978.
Eu tinha 21 anos, estava cursando Administração e havia me
formado no ano anterior em Engenharia Eletrônica pela Utam.
Ele tinha 20 anos, estava cursando Filosofia e tinha um
grupo de teatro amador no bairro de Santo Antônio.
Não recordo quem nos apresentou.
Ele era marxista-leninista e militava no então proscrito Partido
Comunista Brasileiro (PCB).
Eu era um roqueiro de viés anarquista interessado em
escrever poesia marginal e tinha um não dissimulado desprezo pelos comunistas.
O fato é que nos tornamos bons amigos, apesar da visível
discrepância política e ideológica entre nós dois.
Em 35 anos de convivência, encerrada abruptamente nesta terça-feira,
19, dia de São Conrado, que não é um bom dia para morrer, nunca sequer discutimos
uma única vez.
Isso deve dizer um pouco sobre o caráter dele e o meu.
No começo dos anos 80, depois que ele se mudou para São
Paulo, para trabalhar na Editora Alfa Ômega, fui visita-lo uma vez, sem avisar,
e ele ficou surpreso pela visita.
– Camarada, os anarquistas não visitam marxistas-leninistas!
– ironizou, com aquela sua meia risada que sempre me lembrava o Muttley, o
cachorro do Dick Vigarista.
– Eu vim visitar o caboco Orlando Farias, que conheci em
Manaus long time ago e ainda não era
viado! – devolvi. “Se quisesse visitar marxistas-leninistas e viados, estaria no
Mausoléu do Lênin, em Moscou, não aqui nesse fim de mundo...”
O Muttley riu que se engasgou.
Acabamos tomando um porre federal em um boteco da Vila
Madalena, onde ele me apresentou para os cartunistas Angeli, Glauco e Laerte,
que pareciam ser seus chapas há muito tempo.
Quando fundamos a Banda Independente Confraria do Armando
(BICA), no começo de 1987, ele já estava de volta a Manaus e foi o jornalista
que mais divulgou a presepada no jornal A Crítica.
Os créditos foram dados no livro “Amor de BICA”, feito a
quatro mãos (ele, eu, Mário Adolfo e Marco Gomes), que teve duas edições e hoje
é item de colecionador.
Nos anos 90 e 2000, continuamos nos vendo com frequência e
dividindo as mesmas neuroses.
Em novembro de 1991, eu havia sido demitido do cargo pomposo
de “Gerente de Engenharia de Qualidade”, da Philco da Amazônia, e, no começo do
ano seguinte, estava trabalhando como um reles redator publicitário da G&F
Comunicações (de Goreth e Francivaldo Garcia, esposa e cunhado do atual
prefeito Artur Neto).
Na época, eu estava casado com a Jane Jatobá, que também
conhecia o Orlando Farias da época do ICHL.
Ele começou a frequentar a nossa casa esporadicamente.
Orlando Farias insistia que eu devia largar a redação
publicitária e me dedicar ao jornalismo.
Eu queria mesmo era ser escritor.
Quando saí da G&F, uns três anos depois, o jornalista
Mário Adolfo me levou para ser editor de Cultura do jornal Amazonas Em Tempo,
onde permaneci por dois anos.
Daí em diante, sempre que eu e Orlando Farias nos encontrávamos no Bar do
Armando, a conversa girava em torno do jornalismo de resultados e da
conveniência ou não de ser escritor.
Eu acabei escrevendo mais de 20 livros.
Ele publicou apenas um (“A Dança dos Botos”, em que faz uma
análise da política amazonense de 1982 até hoje).
Orlando queria aprender inglês e ganhar o mundo, ser
correspondente internacional no Afeganistão, onde “as coisas estavam acontecendo”.
Eu queria apenas um emprego razoável, onde pudesse colocar
minhas contas em dia sem depender de agiotas.
Sempre estive mais com os pés na lama do que com a cabeça
nas estrelas.
Invejava sua utopia, mas, decididamente, aquela não era a
minha praia.
Isso também nunca nos distanciou.
Trabalhamos juntos, pela primeira e última vez, no jornal
Correio Amazonense.
A convite do jornalista Paulo Castro (que havia sido editor
de Economia no Em Tempo quando eu era editor de Cultura), eu havia saído da VT
4 Comunicações, onde também era um reles redator publicitário, para assinar a
coluna “Boca do Inferno” no referido jornal.
Orlando Farias havia deixado o jornal A Crítica para assinar
a coluna “Encontro das Águas”, no mesmo jornal.
Durante dois anos, nos víamos diariamente e conversávamos
diariamente, dividindo as mesmas neuroses.
Em 2006, quando percebi que o barco estava adernando (não
havia a menor hipótese de o candidato Amazonino Mendes derrotar o então
governador Eduardo Braga e dar uma sobrevida ao jornal), lhe dei um toque:
– Meu caboco, está na hora de cair fora! Pedindo a conta
hoje, a gente recebe o que é nosso de direito e vamos tocar a vida. O futuro, a
Deus pertence!
O marxista-leninista preferiu acreditar em Deus e resolveu
ficar no jornal até o fim.
Demitido sem nenhum direito trabalhista, ele procurou a
Justiça.
Nos últimos anos, fui à meia dúzia de audiência na Justiça
do Trabalho para depor a seu favor, como principal testemunha.
Nunca fui ouvido porque o suposto dono do jornal, o empresário
Carlos Edson, tomou rumo ignorado e não sabido.
O ex-prefeito Amazonino Mendes, verdadeiro dono do jornal,
ficou devendo essa pra o jornalista.
Espero que a grana devida seja devolvida aos cinco filhos do
Orlando, privados agora de ter um bom provedor.
Há alguns anos, quando ele e Mário Dantas me procuraram para
ser sócio no Blog da Floresta, abri mão da oferta:
– Meu caboco, eu vou estar na luta com vocês dois, mas não
quero um tostão. Vou mandar matérias, fazer colunismo, lavar o chão, passar
roupa e ir pra porrada, se for preciso. A grana que vocês receberem, dividam
com quem merece, ou seja, com os jornalistas que vocês contratarem. Eu não
quero um centavo de vocês dois, além da nossa amizade.
(O jornalista e cinegrafista Mário Dantas, sócio do Orlando,
é meu amigo de adolescência e casado com a Maria José, irmã gêmea do
centroavante Zeca Boy, do meu imbatível Setembro Negro)
Fui colaborador do Blog da Floresta durante esse tempo todo,
sem jamais pedir que o Orlando me pagasse uma mísera coca cola.
O Mário Dantas está vivo e pode testemunhar sobre isso.
Seria uma bobagem eu não falar que a morte prematura do
Orlando Farias me abalou profundamente.
O que me atraía no sacana era sua capacidade de trabalho.
Ele era um batalhador incansável, sempre procurando pautas
que fugissem do rame rame tradicional das redações.
Nesse particular, nunca fui seu irmãozinho – mas também não
me queixo.
Infelizmente, toda a minha vida foi uma insana batalha
contra o jornalismo – e o mais risível disso é que hoje vivo disso.
Talvez, devido ao excesso de jornalistas na minha frente –
tentando pegar o ônibus, receber do guichê no caixa do jornal, conversando a
morena que me espera no banco da praça, pegando o meio quilo de açúcar na
mercearia, perguntando ao atropelado como é que ele está se sentindo –, eu
tenha procurado sempre estar à frente e acima da manada.
Não consegui, claro.
Mas sempre achei que os jornalistas deveriam parar com essas
besteiras e escrever de uma vez o grande romance da geração deles.
De jornal, bom mesmo são as notícias das agências, porque
invariavelmente mal traduzidas e curtas, e os anúncios dos cinemas, quando dão
a hora certa que começa o filme.
O famigerado Lord Beaverbrook, magnata da imprensa
britânica, descreveu à perfeição o jornalismo: “Jornalismo é tudo aquilo que eu
consigo encaixar entre um anúncio e outro”.
O pior jornalismo é aquele que se diz dinâmico e moderno.
Vem pouco abaixo do jornalismo construtivo e responsável.
O jornalismo objetivo empata, em matéria de bobagem, com o
jornalismo investigativo.
E o jornalismo do correspondente estrangeiro, sonho
recorrente dos profissionais da minha geração, inclusive do Orlando Farias?
Escória da escória.
Principalmente se dinâmico, moderno, construtivo,
responsável, objetivo e investigativo.
Tem toda razão as redações com seu ódio feroz ao
correspondente estrangeiro.
O que faz o correspondente estrangeiro?
Acorda tarde, marca almoço com alguém da embaixada (em
geral, segundo secretário), passa na agência do Banco do Brasil, pega malote na
TAM ou na Gol, dá uma capotada, lê por alto jornais e revistas via Web, depois
despacha a matéria.
A matéria é sempre contra o pobre do leitor.
Que ele é ignorante porque não leu tal livro, não viu tal
peça ou filme, não sabe quem é fulano nem conhece o pensamento de sicrano.
O leitor é tratado aos pontapés porque não saiu do Brasil e,
com boa vontade, só deu uma chegadinha, faz tempo, a Orlando, na Flórida, ou
Paris, sempre “uma festa”, no linguajar rasteiro da profissão.
O correspondente no estrangeiro só tem um problema: catar
material em publicação que não tenha chegado ao conhecimento do chefe de
redação.
Se o leitor assina a revista onde saiu a publicação, dane-se
o leitor.
Ainda bem que o Orlando Farias fugiu dessa armadilha.
O que não diminui um milímetro essa dor de nunca mais voltar
a conversar com ele.
Estou triste pra caralho.
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