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quarta-feira, janeiro 06, 2016

Pois é! (um quase samba)


Paulo Mendes Campos

Nossa Senhora da Paz, da praça do meu amor de Ipanema, santa luminosa de meu descaminho, eu tenho, confesso, engrandecido, quase tudo nesta vida. Tenho a esperança de não ser uma crispação permanente. Tenho quase a certeza de ser, tão-só, um espantalho, batido de chuva e de vento, nas areias movediças da Guanabara.

Tenho a consoladora certeza de não ser grande coisa. Nem tão mau quanto imaginam. Nem tão perdoável quanto diz o meu amigo. Sou só ansiedades que me esbraseiam. E às vezes me consomem. Ansiedades de que extraio, como de uma vaca doméstica, meu precário equilíbrio.

Tenho a confiança. Doce e furiosa. Tenho a confiança dramática no homem que se escreve com o agá minúsculo do anonimato.

Nossa Senhora da Paz, da praça do meu amor de Ipanema, tenho tantos defeitos. E tenho convicções ardentes e simples.

Creio na Pátria, Nossa Senhora. Creio no óleo da Pátria. Creio no coração da Pátria. Creio principalmente nas entra­nhas da Pátria.

Creio no cara do Norte. Creio no cara do Sul. Creio na gente songamonga do Araguaia.
Nada de essencial me falta, Nossa Senhora da Paz. Um cavalo talvez. Uma roça. Mas deixa isso pra lá.

Filhos, tenho dois. Tenho livros. Tenho discos. Tenho o sentimento do mundo. Tenho – tantas! – lembranças. Lembranças vermelhas, azuis, negras e cinzentas. Até lembranças alaranjadas eu tenho.

Tenho uma melancolia paciente. Salvo em certos dias de névoa seca, quando Maria gosta de voltar.

Para o animado martírio do verão carioca, tenho uma excelente geladeira. Tenho vinho tinto dentro de uma arca. Tenho um aparelho de fondue. Tenho fotografias engraçadas. Tive ainda mãe.
Tenho, Senhora, esta máquina de escrever e uma outra. E irmãos. E amigos. E um pai que bebe cerveja comigo. E a mulher.


Tenho até janela para o mar. A poucos metros daqui é o oceano de que os mineiros tanto gostam.

Como se vê, Nossa Senhora da Paz, Nossa Senhora da Praça do meu amor de Ipanema, não me lamento. De profundis clamavit, mas não me lamento. Não me lamentaria nunca, se não me faltasse um elemento. Um elemento indispensável ao rico e ao pobre, à indústria e ao campo, ao ócio e ao amor, ao sofrimento e à ilusão.

Nossa Senhora da Paz, não tenho tempo. Tenho tudo. Mas não tenho tempo.

Vou vendo os ônibus a caminho da cidade. Vou vendo os barcos a caminho do mar. Vou vendo os aviões a jato, tão ativos nas suas rotas. Vou vendo os homens falando e progra­mando. Mas eu não vou. Fico sempre à beira do cais. Fico sempre à beira de mim. Sem poder seguir a viração do meu dever. Sem seguir a tempestade do meu destino. Pois não tenho tempo.

Decerto, grato reconheço, ao ser distribuída a loteca do mundo, muitas coisas foram colocadas em meu percurso. Mui­tas e variadas. Mas não ganhei tempo. Não ganhei, pelo menos, a qualidade de tempo que se casasse comigo, que me servisse como calça, que estivesse de acordo com meu corpo pequeno. Ou com o meu extraviado pensamento.

O tempo. O tempo me sobra demais ou me falta. Uma branca eternidade de horas atadas. Uma braçada de horas iguais e inúteis. Ou esta pausa indefinida de quem espera o beijo de um anjo. Ou a campainha de um telefone.

Nossa Senhora da Paz, da praça do meu amor de Ipanema, nunca me deram tempo. Acho que nunca terei tempo.

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