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quinta-feira, janeiro 28, 2016

Paulo Mamulengo e os bonecos da BICA


O ventríloquo, repentista e bonequeiro paraibano Paulo de Tarso (aka “Paulo Mamulengo”) chegou ao Amazonas em 1988. Veio com uma missão designada pela coordenação nacional do Morhan (Movimento de Reabilitação dos Portadores de Hanseníase): descobrir o porquê de o Amazonas ser campeão absoluto em casos de hanseníase, uma doença terceiro-mundista mais conhecida como “lepra”.

Paulo esteve no centro do furacão (Lábrea e Humaitá) e voltou para contar o que tinha visto – e que todo mundo sabe de cor e salteado, menos os nossos governantes: a lepra é resultado, basicamente, da falta de condições mínimas de higiene e alimentação.

Em Manaus, Paulo ouviu falar que o primeiro leprosário do Estado foi erigido no distrito de Paricatuba, no município de Iranduba, e que estava localizado na margem direita do rio Negro, a cerca de 50 quilômetros da capital.

Descobriu, também, que o hospital-colônia de tratamento, mantido por religiosos italianos durante seis décadas, foi posteriormente desativado, nos anos 50, sob o argumento idiota de que os leprosos estavam contaminando o rio e, por extensão, a capital, já que a estação de captação de água de Manaus, localizada na “Ponta do Ismael”, ficava abaixo de Paricatuba.

O governador responsável pela tragédia foi Álvaro Maia, um poetastro medíocre também conhecido como “Cabeleira”, que na época era governador do Amazonas.


Paulo Mamulengo visitou o lugar e conversou com vários leprosos que haviam sobrevivido ao “pogrom”. Na época, quase todos os portadores de hanseníase foram trancafiados em barcos regionais, remetidos para Manaus e isolados num complexo hospitalar chamado Colônia Antônio Aleixo, que hoje virou um dos maiores bairros da Zona Leste.

Em Paricatuba, só escapou quem se escondeu no mato. Qualquer alusão aos quilombos não é simples coincidência. Revoltado, Paulo Mamulengo resolveu encampar a luta dos hansenianos daquele distrito.

Ele comprou uma casa, cujo quintal é o próprio rio Negro, e se estabeleceu no lugar, junto com sua esposa Rô, e os dois filhos do casal, Artur e Alberto. Apesar de ele ser portador do mal de Hansen, seus filhos e sua a esposa são absolutamente normais, o que derruba outro preconceito besta: o de que alguém “pega” lepra pelo simples contato físico.

Mais esclarecido sobre a doença que muitos “doutores” do Instituto Alfredo da Matta, Paulo Mamulengo logo se tornou porta-voz de Paricatuba.

Na companhia de seus bonecos mamulengos recitando textos mezzo-humorísticos, mezzo-dramáticos, ele, à sua maneira, começou a conscientizar a comunidade sobre os seus direitos.

Tendo confeccionado o seu primeiro boneco de manipulação aos oito anos de idade, Paulo de Tarso percorreu vários caminhos até encontrar-se com a arte popular do mamulengo.


Em 1992, no Espaço Cultural Mar Azul, do capoeirista Joãozinho da Figueira (atualmente morando em Londres), que funcionava ali no bairro da Alvorada, Paulo de Tarso e o boneco Albino Caburé da Silva (aka “Negão”) apresentaram o espetáculo “Na Grota do Istopô Kalango”, em que a dupla recitava poemas, contava causos, desfiava repentes e canções populares e improvisava textos feitos na hora, a partir do noticiário dos jornais do dia.

Assim que começava o espetáculo, Paulo de Tarso falava para a plateia sobre sua experiência de vida, que vou tentar reproduzir ao sabor da memória:

– Posso ser considerado um recordista de vestibulares! – avisava. – Fiz cinco e passei em todos eles. Iniciei minha carreira de estudante na Universidade de Brasília, em 1972, onde fiz vestibular para Psicologia. Estudei menos de um ano. Só fiquei no curso até o dia em que me levaram para um laboratório e me mandaram abrir um rato! Que psicologia barata eu podia aprender com aquilo? Se fosse pelo menos um preá ou uma cutia...

– É mermo, macho? – intervia o boneco Negão.

– Tô te falando, Negão! – continuava o bonequeiro. – Voltei para a Paraíba e estando lá de bobeira resolvia fazer vestibular para Educação Física. Era época de Olímpiadas e eu era um rapaz lindo, bonito e joiado. Resolvi ser atleta. Mas quando soube que tinha de acordar às 5h da manhã para correr 16 quilômetros todos os dias, desisti. Pulei para Educação Artística, porque queria ser artista. Lá encontrei um bocado de professores conservadores e metidos a catedráticos, ensinando alunos que estavam mais interessados em aprender tricô e crochê para ensinar aos aleijados. Era esse o conceito que se tinha de Educação Artística no governo militar e acho que de lá pra cá não mudou muita coisa...

– É mermo, macho? – intervia de novo o boneco Negão.

– Tô te falando, Negão! – continuava o bonequeiro. – Aí voltei pra Brasília e fiz vestibular para Arquitetura. Estudei três anos. Eu passava oito horas diante de uma prancheta aprendendo a desenhar casa com piscina no lago Paranoá e depois pegava dois ônibus para ir dormir numa favela na Ceilândia. Não deu outra. Desisti.

– É mermo, macho? – intervia pela terceira vez o boneco Negão.

– Tô te falando, Negão! – continuava o bonequeiro. – Aí, fiz vestibular para a Escola de Teatro Dulcina, também em Brasília, mas fiquei traumatizado porque todos os atores eram boiolas e as atrizes, sapatões. Resolvi seguir meu destino e retornei a Paraíba, para aprender com o Mestre Lucas a arte do mamulengo. É por isso que nós estamos aqui...

– Então vamos começar a fuleiragem, cabra da peste! – berrava o boneco Negão, já meio injuriado com tanta ladainha.

E haja causos. Dois deles, que achei altamente filosóficos, também vou transcrever de memória:


Desde pequeno Paulo Mamulengo reparava na mãe olhando o céu, catando sinal do tempo. Pôr do sol vermelho é geada braba. Picumã caindo, sol chorando, é chuva certa. “Neblina na serra, chuva na terra”, dizia um. “Neblina baixa, sol que racha”, repostava o outro.

Um dia, ainda moleque, capinava junto com o pai. A enxada batia no chão seco, tinia, repicava. O silêncio deles só pedia a chuva que não vinha. Olhavam pro céu, nada.

De repente, Paulo apurou o ouvido e abriu o verbo, satisfeito:

– Vai chover, pai. Sabiá cantou. Acabei de ouvir.

Seco, seu pai contestou:

– Qual o quê?... Sabiá não é Deus... Se ainda fosse macaco guariba, vá lá...

Até hoje o bonequeiro não entendeu a lógica do velho.


Numa outra ocasião, Paulo foi flagrado pela mãe sendo enrabado por um moleque da sua idade. Levou uma surra de criar bicho. Sua mãe contou ao seu pai o motivo do castigo infligido ao garoto. O velho não disse nada.

Uma semana depois, Paulo foi flagrado novamente pela mãe, dessa vez enrabando o referido moleque da sua idade. Levou outra surra de criar bicho. Sua mãe contou pro pai o motivo do castigo infligido ao garoto.

O velho se encrespou:

– Ô, mulher, desse jeito ocê vai dar um nós nas tripas no cerebelo do menino. Ele agora não sabe mais se é pra dar o cu ou se é pra comer, já que apanha do mesmo jeito... Não se meta mais nisso não, que eu mesmo vou conversar com ele...

Graças aos sábios conselhos do pai, Paulo Mamulengo se transformou em um espada matador de carteirinha com registro em cartório.


É dispensável falar que desde aquele dia em que o vi pela primeira vez no Espaço Cultural Mar Azul nós nos transformamos em amigos de infância.

Por minha sugestão, Paulo Mamulengo fez várias apresentações no Bar Calígula, do escritor Rui Sá Chaves, ali no bairro de Aparecida.

Hoje em dia, os bonecos gigantes já fazem parte do carnaval amazonense, tanto na capital como no interior, mas nem sempre foi assim. Vamos recordar rapidamente como essa história aconteceu.

Em 1994, durante um canavial no Bar do Armando, eu e Paulo Mamulengo começamos a conversar sobre os bonecos gigantes de Olinda, que saíam no Bloco do Homem da Meia-Noite.

Paulo Mamulengo me contou que era amigo do mestre bonequeiro Silvio Botelho, responsável pela confecção dos bonecos gigantes de Olinda, que hoje conta com mais de mil criações no currículo.

Segundo ele, Silvio Botelho nasceu no dia 14 de maio de 1956, no bairro do Amparo, em Olinda, Pernambuco. Autodidata, desde cedo começou a trabalhar com esculturas em madeira, gesso e barro, influenciado pelos ceramistas de Caruaru, principalmente pelo Mestre Vitalino.


Aprendiz do artesão olindense Roque de Lima, conhecido como Roque Fogueteiro, Silvio aprendeu com ele diversas técnicas, como a implantação de cabelo nos bonecos, fazer a massa da modelagem, combinar cores, misturar solventes e tintas, além de preparar pólvora para os fogos de artifícios. Posteriormente, foi descobrindo outras técnicas em viagens pelo Brasil.

Ele iniciou-se em projetos carnavalescos na década de 1970, confeccionando máscaras e alegorias. Em 1974, criou seu primeiro boneco gigante O Menino da Tarde, “filho” do encontro entre O Homem da Meia-Noite e A Mulher do Dia.

Paulo Mamulengo lembrou mais ou menos da conversa do amigo:

“O primeiro boneco que fiz foi O Menino da Tarde. Ernandes Lopes foi a pessoa que me pediu para fazer. Nessa época, só existia O Homem da Meia-Noite e A Mulher do Dia. Era o filho dos dois. O maior desafio foi entender o que era fazer um boneco gigante. Um boneco com 2 metros e 90 centímetros de altura. Em dois meses O Menino da Tarde ficou pronto. O boneco pesava 35 quilos e foi confeccionado em madeira, capim, papelão duro e papel. Ao ver o resultado, o renomado artesão Roque Fogueteiro ficou impressionado com a beleza da obra e me aconselhou a prosseguir no caminho da arte”, explicou o mestre bonequeiro.

De lá pra cá, Silvio Botelho vem aperfeiçoando cada vez mais a sua técnica de criação de bonecos, evoluindo da tradicional modelagem em barro para a modelagem direta em bloco de isopor, conseguindo leveza e versatilidade nos gigantes. O corpo é feito com fibra de vidro. Atualmente, os bonecos chegam a medir três metros de altura e pesar de treze a quinze quilos, bem diferente dos primeiros que pesavam cerca de cinquenta quilos.


Paulo Mamulengo garantiu ainda que Silvio Botelho, durante uma oficina que ministrara em Olinda, havia lhe ensinado o pulo do gato.

Perguntei se ele tinha condições de fazer um boneco gigante imitando o Armando Soares. Ele falou que sim, que poderia fazer desde que alguém fizesse uma caricatura de frente e de perfil do comerciante. Chamei o artista plástico Jorge Palheta, que resolveu a bronca em dez minutos.

Paulo Mamulengo falou o preço (hoje, algo em torno de R$ 1 mil), conversei com a diretoria da BICA, fizemos uma cota e pagamos pra ver.


Em 1995, o primeiro boneco da BICA fazia sua aparição no carnaval amazonense. Os biqueiros adoraram a novidade e Paulo Mamulengo foi incumbido de fazer mais dois novos bonecos para o ano seguinte. 

O artista plástico Jorge Palheta se transformou no caricaturista oficial dos mamulengos.

Em 1996, Frei Fulgêncio, comandante-em-chefe da Igreja de São Sebastião, e Petronília, nossa eterna musa inspiradora, entraram em campo e também fizeram bastante sucesso.




Em 1997, foi a vez do general-da-banda e jornalista Deocleciano Souza e de Dona Lourdes, a nossa eterna garota Socila.  Ela, evidentemente, odiou o boneco.

A Banda do Cinco Estrelas também entrou na roda e providenciou dois bonecos: Charles Stones e Eliezer Leão, ou seja, o patrono e o presidente da banda.




Em 1998, foi providenciado um novo boneco da BICA: o do advogado Félix Valois, por conta do enredo que versava sobre um velho comunista que se aliançou. Por algum motivo, o boneco sumiu no final do desfile.


Em 1999, mais dois novos bonecos foram providenciados pela banda: o da agitadora cultural Celeste Pereira (que havia falecido quando ainda estava gestante) e o do escritor Antônio Paulo Graça. Os dois bonecos também desapareceram no final do desfile.



Em 2004, eu paguei sozinho pelo boneco do advogado Alberto Aleixo e a diretoria da BICA pagou pelo boneco do advogado Nestor Nascimento. Os dois bonecos desapareceram tão rapidamente, no meio do desfile, que não sobrou sequer um registro fotográfico...

Dizem as más-línguas que os bonecos “desaparecidos” eram repaginados rapidamente no ateliê de Paricatuba e depois revendidos para bandas carnavalescas de Coari, Tefé, Benjamin Constant, Tabatinga, Eirunepé e adjacências, a tempo de participarem do desfile no sábado gordo.


Nunca conversei com o Paulo Mamulengo sobre esse assunto. Amigos são pra essas coisas...

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