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terça-feira, março 24, 2020

Lauro Chibé e João Antônio: dois gênios esquecidos!



Não dá para se falar em bumbás de Manaus sem relembrar o artista plástico Lauro Queiroz de Souza, que passou para a história do folclore manauara como “Lauro Chibé” e era reputado como um dos maiores entusiastas da autêntica cultura popular da nossa gente. “O Lauro Chibé era multimídia numa época em que essa palavra ainda nem tinha sido inventada”, dizia o poeta Anibal Beça, que conheceu o artista plástico nos anos 60.

Nascido presumivelmente em 1911 (nem seus parentes sabiam precisar a data), em Bezerros (PE), a meca pernambucana das encantadoras xilogravuras (imagens feitas em relevo sobre madeira, muito popular na região Nordeste e cuja técnica era utilizada para ilustração de textos de literatura de cordel), Lauro Chibé foi o maior fabricante de bois-bumbás já surgido na capital amazonense. Acredita-se que ele tenha construído mais de 100 bumbás, façanha jamais igualada por alguém em tempo algum.

Filho de pai ausente, Lauro Chibé e a mãe desembarcaram em Manaus por volta de 1916 e foram morar na Rua Carolina das Neves, no bairro dos Tocos (atual Aparecida). Sua mãe era doceira e tinha que diariamente colocar o tabuleiro de doces na cabeça e ir ganhar a vida pelas ruas da cidade. Ela deixava o moleque trancado em casa, apenas munido de papel e lápis. Ele começou a desenhar as paisagens que observava da janela e aprendeu a ler praticamente sozinho, manuseando os poucos gibis e revistas que existiam na residência.

Nos finais de semana, quando a mãe ficava em casa descansando da faina semanal, ele podia sair para brincar com os garotos da vizinhança. Foi em uma dessas incursões que ganhou o apelido definitivo (crianças são cruéis...). Franzino, barrigudo e pálido como um defunto, a molecada começou a achar que ele se alimentava exclusivamente de chibé (um pirão de farinha de mandioca com água, sal e pimenta, que as pessoas em extrema penúria financeira utilizam para enganar a fome). Lauro Queiroz de Souza nunca mais se livrou do apelido

Lauro Chibé tinha sete anos quando viu pela primeira vez a apresentação de um boi-bumbá durante um arraial na Praça Bandeira Branca, no bairro dos Tocos. Ficou fascinado pelo folguedo. Sua mãe, que além de doceira tinha pendores de artista plástica, criou um origami (nome da arte tradicional japonesa de dobrar o papel, criando representações de determinados seres ou objetos com as dobras geométricas de uma peça de papel, sem cortá-la ou colá-la) no formato de um boi-bumbá. Ele passou quase um ano brincando sozinho com aquele origami especial e criando versos para embalar a brincadeira. Depois de adulto, seria um compositor de toadas da maior competência.

Ainda morando no bairro dos Tocos, Lauro Chibé concluiu o ensino fundamental e se tornou um voraz leitor de livros biográficos. Passava horas e horas na Biblioteca Pública lendo tudo em que podia colocar as mãos sobre os grandes artistas plásticos da Idade Média (seu grande ídolo, claro, era o pintor, escultor e arquiteto italiano Michelangelo de Lodovico Buonarroti, considerado um dos maiores representantes do Renascimento Italiano).

Para colocar em prática aquele catatau de coisas que aprendia na teoria, foi conta de multiplicar. Com pouco mais de 20 anos, Lauro Chibé já era um dos melhores artesãos de Manaus. Ele esculpia em madeira qualquer coisa que lhe fosse encomendada, de barcos regionais em miniatura a máscaras mortuárias indígenas, de animais da nossa fauna a versões personalizadas de escudos de clube de futebol.

O futebol também era uma de suas grandes paixões. Apesar de magricela e baixinho – ou talvez por isso mesmo –, se transformou em um exímio jogador do Luso Sporting Clube, tendo também defendido as equipes da União Esportiva Portuguesa e General Osório. Era ligeiro como um azougue e chutava bem com as duas pernas. Dava um trabalho da gota serena para os adversários, fosse jogando no ataque, fosse jogando na defesa. Mas como não dava para assobiar e chupar cana ao mesmo tempo, Lauro Chibé abandonou o futebol para se dedicar à sua carreira de artesão, escultor e artista plástico. Começou a produzir dezenas de obras retratando os usos e costumes dos ribeirinhos amazônicos.

No final dos anos 30, Lauro Chibé ficou visivelmente impressionado com o “Presépio Maravilha”, do artista plástico amazonense Leovigildo Ferreira da Silva, mais conhecido como Branco Silva, exposto na Praça da Matriz. Os movimentos realistas dos bonecos ali representados mexeram com a criatividade de Lauro Chibé.

 Ele passou quase dois anos para desenvolver um complexo sistema de roldanas, ligas de borracha e carretéis, que simulavam o movimento de ribeirinhos fabricando farinha. A peça em miniatura, com cerca de dez personagens, virou uma atração fixa do quiosque para vendas de artesanato que Lauro Chibé conseguiu montar no Aviaquário da Praça da Matriz, nos anos 60. Ele nunca quis vender essa peça pioneira – e ela só começou a ser exibida para o público quase trinta anos depois de ter sido concebida.

Lauro Chibé e uma amiga em um dos bares de Educandos

Nunca se soube quando, como e de que doença faleceu a mãe de Lauro Chibé. O que se sabe é que a partir dos anos 40, possivelmente já órfão, ele entrou na gandaia pela porta da frente, chutando a porta do cabaré. Virou dirigente do grupo carnavalesco Caboclos Surara, fundou uma escola de samba tão efêmera que não legou o nome para a posteridade e começou a frequentar os “dancings” de Educandos, mostrando-se um fabuloso pé-de-valsa, boêmio de carteirinha e emérito abatedor de lebres. Gabava-se de ter mais de 40 filhos.

Nunca casou e conta-se nos dedos os seus filhos que foram registrados. Em compensação, ele começou a anotar suas realizações nas artes plásticas em uma série de diários manuscritos, muitos dos quais se perderam nas brumas do tempo. Em um deles registrou que construiu seu primeiro boi-bumbá, chamado Veludinho, em 1946, ao custo de 1 mil réis.

No ano seguinte, construiu mais três bumbás: Estrela D’Alva, Caprichoso e Curinga. O Curinga, feito para a comunidade de Aparecida, era uma revolução: tinha dois miolos – ou “quatro pernas” – e, entre outras bossas, balançava a cabeça e o rabo, comia capim, urinava guaraná e defecava biscoitos champanhe. Seria chover no molhado dizer que um boi com essas qualidades conquistou o coração e mentes da molecada do bairro, mas foi o que aconteceu. O bumbá Curinga foi o primeiro boi articulado do folclore amazonense.

A partir daí, Lauro Chibé não parou mais de fabricar bumbás. De 1948 a 1950, ele construiu o Galante, Veludinho (versão turbinada), Corre Campo, Dois de Ouro, Guanabara, Flor do Campo, Mineirinho, Brinquedinho e Prenda Fina. Todos eles personalizados ao gosto do freguês.

É mera especulação, claro, mas acredito que foi para continuar sua vida de boêmio registrado em cartório que Lauro Chibé se mudou para o Morro da Liberdade, no início dos anos 60. Seu novo bairro ficava bem mais perto de Educandos e da sua noite feérica do que o bairro da Aparecida, já que naquela época ainda não existia a ponte que hoje liga o centro de Manaus à Cidade Alta. Dava para ir a pé, de um local ao outro. Tempo é dinheiro.

Nesse meio tempo, ele já havia construído mais uma dezena de bois: Brilhante, Flor do Campo, Prenda do Areal, Tira Prosa, Treme Terra, Mina de Prata, Canarinho, Rica Prenda, Dominante, Malhado, Pai do Campo e Teimosinho.

No Morro da Liberdade, Lauro Chibé fundou quadrilhas caipiras, ajudou Dona Marcelina Brito a colocar na rua as Pastorinhas do Oriente, colaborou com Waldemar Rabelo na criação das Tribos dos Iurupixunas e se transformou em um dos principais dirigentes do bumbá Tira Prosa, que ele considerava sua verdadeira paixão. Lauro Chibé chegou a presidir a brincadeira durante dois anos, antes de passar o cargo para Antônio Barroso.

E continuou fabricando bois-bumbás em escala industrial: Ponta de Ouro, Leão, Galante, Pingo de Ouro, Sete Estrelas, Raio de Sol, Diamante Negro, Pena de Ouro, Gitano, Campineiro, etc. Nas suas anotações, ele registrava até mesmo o nome dos brincantes e dirigentes de cada bumbá, o custo do material utilizado e o valor do pagamento final de cada encomenda. Além de esteta, era um perfeccionista.

Em 1981, a partir de uma encomenda do empresário Paulo Eugênio da Costa Teles, Lauro Chibé confeccionou para a escola de samba GRES Uirapuru, do Zé de Cima, uma alegoria para o abre-alas representando um uirapuru com aproximadamente três metros de comprimento, que passou para a história do carnaval amazonense como a primeira alegoria com movimentos reais.

O majestoso uirapuru abria o bico, batia as asas, mexia os olhos e levantava as penas do rabo. Foi um sucesso avassalador. Há uma versão, nunca confirmada, de que Lauro Chibé foi a Parintins, em 1978, ficou enlouquecido com as inovações que Jair Mendes havia introduzido nas alegorias do bumbá Garantido e não largou o pé do artista parintinense enquanto ele não contasse o “pulo do gato” para fazer aquelas alegorias ganharem movimentos tão reais.

Quando não estava nos dancings de Educandos azarando alguma morena de quatrocentos talheres ou ajudando no ensaio de algum grupo folclórico, Lauro Chibé podia ser visto passeando pelas ruas do Morro da Liberdade com seu corpo franzino, sua camisa de crochê, seu chapéu de palhinha e seus dentes de ouro, que ele exibia com uma alegria de criança. Sempre morou sozinho, em um pequeno casebre localizado na região de palafitas do Igarapé do Vovô.

Foi lá que, no dia 29 de dezembro de 1987, chamado pelos vizinhos por conta do mau cheiro, os bombeiros o encontraram morto há pelo menos cinco dias. Lauro Chibé estava com 76 anos. Dizem que parte de seu rosto já havia sido comido pelas ratazanas. Dizem. Assim nascem as lendas. Como escreveu o jornalista Castelo Branco, em matéria publicada no jornal A Crítica, no dia 2 de janeiro de 1988, “com a morte de Lauro Chibé morre um pouco da cultura amazonense e brasileira, sobrevivente em algumas linhas de seus próprios escritos. Mas a história e a cultura popular ganham mais um símbolo”.

O escritor João Antônio

O jeito “gauche” de levar a vida de Lauro Chibé e seu desenlace trágico só encontram paralelo na história do jornalista e escritor João Antônio. Paulista de nascimento, João Antônio optou por viver no Rio de Janeiro. No dia 31 de outubro de 1996, numa cena tão crua que parecia saída de um de seus contos, João Antônio foi encontrado morto por um zelador, que arrombou a porta do seu apartamento depois que vizinhos notaram uma estranha nuvem de urubus pairando sobre a cobertura 702 do edifício 15A da rua Serzedelo Correia, em Copacabana. O corpo estava em adiantado estado de putrefação.

O cadáver foi encontrado sobre a cama de um dos quartos. O apartamento estava arrumado. Não havia sinais de briga ou roubo no local.  João já tinha sofrido um infarto havia cerca de três semanas, e cada detalhe do cenário funesto indicava que ele estava preparando uma viagem rápida antes da definitiva: sapatos casados no chão do quarto, camisas dobradas sobre a cama, uma maleta aberta. Aos 59 anos, o premiado autor de “Abraçado ao meu rancor”, “Malagueta, perus e bacanaço” e “Leão de chácara” morreu apoucado, quase esquecido.

Elogiado nos anos 1960 e 70 por críticos como Antonio Candido, Paulo Rónai e Alfredo Bosi, que o tinham como um herdeiro direto de Lima Barreto, ao assumir personagens marginais como protagonistas – e tome malandros, prostitutas, traficantes, bêbados –, João Antônio passava por um momento apagado nos anos 1990. Seus escritos se notabilizaram pela ousadia linguística.

O escritor trazia para os seus livros o ambiente onde habitavam os marginais e malandros das ruas. A obra do jornalista e escritor só recuperou o prestígio quase dez anos depois de sua morte, quando a família doou uma parte do acervo à Universidade Estadual de São Paulo (Unesp), aumentando o interesse acadêmico sobre seus escritos, e outra parte à editora Cosac Naify, que relançou seus títulos em edições de luxo.

Com o fim da Cosac, em dezembro de 2015, o legado de João perigou mais uma vez. Até o editor Milton Ohata abraçar o arquivo e levá-lo à Editora 34. Literalmente: o material está em duas caixas de polietileno azul, que, encimadas, cabem num abraço.

Ao vasculhar os papéis, Ohata encontrou muito material ainda inédito em livro, como longas reportagens literárias, deliciosas crônicas musicais e textos sobre o cotidiano carioca. A boa notícia para os fãs de João Antônio – certamente há um séquito deles ainda jogando sinuca em bares do Rio, São Paulo, Osasco ou Berlim, cidades onde o autor viveu – é que todos esses textos estão sendo lançados pela Editora 34.

João Antônio no ambiente de malandros e merdunchos

– Publicaremos também um título nunca mais relançado, “Calvário e porres do pingente Afonso Henriques de Lima Barreto” – antecipou Ohata. – É um livro singular dentro da obra dele, que se move no terreno de certo realismo cru: o próprio autor internou-se entre maio e junho de 1970 no Sanatório da Muda, após uma crise emocional. Lá conheceu o interno Carlos Alberto Nóbrega da Cunha, então com 72 anos. Ele tinha sido jornalista no “Diário de Notícias” e em “O Jornal”, e conheceu Lima Barreto. Relata a João Antônio esses encontros. A figura de Lima Barreto surge no livro por pessoa interposta, com um filtro que relativiza o critério da objetividade. Há muito material de arquivo a ser pesquisado, o que certamente vai enriquecer o conhecimento atual sobre ele. Vamos incorporar esse material.

Guardado agora na sede da Editora 34, essa parte do acervo revela muito do minucioso processo criativo do escritor. Há muitos rascunhos para um mesmo texto, indicando que João reescrevia à exaustão. Há uma coleção de fotos de tipos urbanos feitas pelo repórter fotográfico Ubirajara Dettmar, usadas como referência para personagens.

Há retornos de editores grampeados aos manuscritos de alguns contos, com detalhes das mudanças acatadas ou não (num deles, de 1993, o editor do Suplemento Literário de Minas Gerais, Manoel Lobato, sugere: “A personagem da velha merece um retoque. Meta umas especulações filosóficas na cuca da velha, uma frase qualquer, solta, como se fosse da consciência dela, a fim de que o leitor fique intrigado: ela é culta? é religiosa? Coisas assim. O final é grandioso: grandioso e belo, dando o pão, e não a mão”).

E ainda todo tipo de anotação com expressões ouvidas nas ruas, bilhetes de avião, maços de cigarro. O método, que parecia caótico no início, resultava bastante funcional: o autor depois separava os papeizinhos nos envelopes dos respectivos contos ou reportagens que poderia enriquecer (num deles, que findaria no conto “Iemanjá”, há uma lista com mais de 30 nomes curiosos de bares de Salvador, como “Lanches Oxum”, “Bar Barriga de Aluguel”, “Bar Unidos Venceremos” etc).

Preciosismo que faz os textos serem ainda muito atuais, avalia Ohata:

– João Antônio teve uma estreia fulgurante, em 1963, ganhando dois prêmios Jabuti com “Malagueta, perus e bacanaço”, quando alguns dos gigantes da literatura brasileira estavam em plena forma, como Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mendes, etc. Valor literário à parte, sua obra vai continuar viva porque atenta para o lado torto, não resolvido, da sociedade brasileira. Seus personagens continuam circulando por aí e nada indica que desapareçam tão cedo. A fidelidade com que ele tratou seus personagens escapa também dos vieses ideológicos de esquerda, o que é um elemento crítico no momento em que a parte socialmente mais organizada dela deveria fazer um balanço substantivo das opções que tomou nos últimos anos.

Hamilton Almeida Filho, João Antônio e Paulo Patarra

Tal como Lauro Chibé, João Antônio saiu pelas portas dos fundos da vida, num dia de encabulação, como gostava de dizer sobre a data de nascimento de sua principal referência literária, Afonso Henriques de Lima Barreto, uma sexta-feira 13. Sua morte foi o ato final de uma vida atribulada, visceralmente dedicada à literatura e à sua grande paixão: o povo brasileiro.

Parece que intuíra e compusera tudo nos mínimos detalhes, até a sua saída de cena. Desaparecido havia vinte dias, não preocupou muita gente até fins do mês de outubro, já que costumava viajar sem dar notícias. Só no dia 31 é que o Jornal do Brasil publicou uma pequena nota sobre seu desaparecimento ‒ “Escritor some sem deixar pistas” ‒, e conclamava, na coluna “Informe JB”, assinada por Maurício Dias: “Está na hora de uma mobilização geral para saber o que aconteceu com o escritor João Antônio. Ele saiu de casa em Copacabana, dia 7, de bermuda e chinelos, e desapareceu”.

Foi quase um drible. Mas, na verdade, foi a tragédia de um escritor que, cercado de admiradores durante quase toda a sua vida, morrera só e brigado com a mediocridade do país neoliberal da década de 1990, assim como com o meio cultural do período, que o esquecera.

Assim como Lauro Chibé, João Antônio morreu só e a culpa é nossa. Sua literatura é o retrato descarnado de um país que insiste em não dar certo, a despeito de seu enorme potencial. Nesses mais de vinte anos de sua morte, cabe lembrar de um escritor cuja intransigência em relação ao valor da arte literária e da necessidade de olharmos nossa realidade se fazem mais que nunca necessários.

Seu esquecimento nada mais é que a mania bem brasileira, bem nossa, de não valorizarmos uma produção que olhe para os nossos problemas, invariavelmente tachada como populista, neonaturalista ou coisa que o valha. Diante das mil e uma novidades que a classe média bate bumbo, esquecendo que vive num país em que a leitura ‒ como a moradia, a alimentação, a saúde e a educação ‒, ainda é privilégio de poucos, lembrar a produção de João Antônio é dever, mais que apenas gosto literário. Seu único respeito era pelo povo ‒ e pelo texto. E isso é algo que nós temos de valorizar.

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