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terça-feira, janeiro 16, 2007

ROBERTO PIVA OU A ARTE DE TRANSGREDIR



João Silvério Trevisan (*)


A história pessoal do poeta Roberto Piva começa e gira em torno da cidade de São Paulo. Ele cresceu e formou-se entre a capital e as antigas fazendas do pai, no interior do Estado de São Paulo. Seus primeiros poemas foram publicados em 1961, quando tinha 23 anos. Nessa mesma época, integrou a famosa Antologia dos Novíssimos, de Massao Ohno, na qual se lançaram vários poetas brasileiros iniciantes, que depois desenvolveram uma obra poética de importância. Piva formou-se em sociologia.

Sobreviveu em grande parte como professor de estudos sociais e história. Em suas aulas aos adolescentes do segundo grau, costumava trabalhar as matérias a partir de poemas que os fazia ler e interpretar. Foi um professor de muito sucesso, com rara vocação como pedagogo. Nos anos de 1970, tornou-se produtor de shows de rock. Piva mora em São Paulo, cidade que lhe parece apocalíptica, exemplo do que não deve ser feito contra o meio ambiente, mas que forneceu todo o pano de fundo para sua obra poética. Tem medo de avião.

Por isso, raramente se distanciou demais da capital, de onde foge sempre que pode, de ônibus ou carro, sobretudo para o litoral sul do estado de São Paulo, refugiando-se em casa de amigos na Ilha Comprida ou em pensões baratas de Iguape. É lá que realiza seus rituais xamânicos e entra em contato com seu animal xamânico, o gavião.

A genealogia poética de Roberto Piva apresenta raízes e inclui influências muito raras na literatura brasileira, formando uma mistura-fina que é única por sua erudição, mas também por sua transgressão. Começa com Dante Alighieri. Ainda na década de 60, por três anos Piva aprofundou-se nos estudos da Divina Comédia, orientado por Eduardo Bizzarri, adido cultural do Consulado da Itália em São Paulo. Esse contato com Dante foi como seu imprinting poético-filosófico: marcou para sempre sua visão de mundo, sua política e sua poesia.

Ao conhecer os poetas metafísicos ingleses, sobretudo William Blake, Piva começou a aprofundar sua experiência mais direta com o sagrado e a vida interior.

A entrada em cena de Hölderlin e dos poetas expressionistas alemães Gottfried Benn e Georg Trakl temperaram essa experiência com uma ponta de pessimismo, que deixou de ser circunstancial quando, ainda na década de 60, Roberto Piva teve contato com a obra de um filósofo praticamente desconhecido, no Brasil do período: Friedrich Nietzsche.

À experiência juvenil de Piva agregou-se a contundência desse profeta pessimista e decifrador da alma moderna. Mas nem só de espírito, nem só de intelecto fez-se o aprendizado juvenil de Roberto Piva, que cedo descobriu Rimbaud e Lautréamont, recebendo a influência desses dois poetas visionários, que extrapolam os limites da expressão racional e das escolas literárias.

A partir daí iniciou-se em sua vida o cultivo do rimbaudiano “desregramento de todos os sentidos” para se chegar à poesia. Das vanguardas do começo do século 20, Roberto Piva absorveu lições do surrealismo, na vertente francesa de André Breton, Antonin Artaud e René Crevel. É um dos três únicos poetas brasileiros a constar no famoso Dicionário Geral do Surrealismo, publicado na França. A partir de Artaud, Piva incorporou a idéia de que existe um compromisso absoluto entre poesia e vida.

O dito artaudiano “para conhecer minha obra, leia-se minha vida” teve em Piva a contrapartida: “só acredito em poeta experimental que tem vida experimental”. Também é flagrante em sua poesia a influência dos futuristas italianos (com seu culto à fragmentação moderna), acrescida de algumas expressões musicais da contemporaneidade do pós-guerra, através da onipresente marca do jazz e da bossa nova, duas fidelíssimas paixões de Roberto Piva. Mas há mais duas fortes presenças contemporâneas em sua poética. Uma é a beat generation americana, da qual Piva não só absorveu a estilística fragmentada e a temática que aproxima o contemporâneo do arcaico, mas através da qual também sedimentou a orientação basicamente transgressiva dos costumes do seu tempo.

Na década de 70, a transgressão foi reforçada pela descoberta do outsider Pier Paolo Pasolini, protótipo do intelectual-profeta que caminha nas frinchas do paradoxo. Dos poetas brasileiros, essa genealogia poética agregou as figuras de Murilo Mendes - com seu surrealismo intenso, expontâneo e sensorial, ao contrário dos franceses intelectualizados - e Jorge de Lima, sobretudo aquele barroco, visionário e atormentado de “Invenção de Orfeu”. Os elementos finais da construção poética de Roberto Piva evidenciam uma substancial ligação com o aspecto mágico.

Suas constantes caminhadas xamânicas pela represa de Mairiporã e serra da Cantareira, ambas nos arredores de São Paulo, além de Jarinu, no interior do estado, selaram sua ligação sagrada com a natureza.

Essa sacralidade é, para Piva, a única salvação possível ao mundo moderno, que colocou a destruição da natureza como parte do seu projeto consumista. No quadro da recuperação do sagrado e do mágico, enquanto forças da natureza, Piva passou a estudar e praticar o xamanismo. Para aprender o culto ao primitivo e às forças da natureza, foi buscar elementos não apenas em teóricos como Mircea Eliade, mas sobretudo nas culturas indígenas brasileiras e na prática do candomblé. Ele não só cultua seus orixás (Xangô, Yemanjá e Oxum), mas também toca tambor para invocar seu animal xamânico, o gavião.

Paralelamente a essa trajetória em direção ao sagrado, Piva agregou dois elementos ligados à civilização grega. Um: a ingestão de drogas alucinógenas e bebidas libatórias, como formas de atualizar a tradição dionisíaca e a transgressão sagrada do paganismo. Dois: o culto a uma erótica homossexual, resgatando para a modernidade o amor grego, como um componente de transgressão do desejo.

Tome-se, como referência, seu "Poema XIV", de 20 Poemas com Brócoli, dedicado ao Carlinhos:

"vou moer teu cérebro. vou retalhar tuas

coxas imberbes & brancas.

vou dilapidar a riqueza de tua

adolescência. vou queimar teus

olhos com ferro em brasa.

vou incinerar teu coração de carne &

de tuas cinzas vou fabricar a

substância enlouquecida das

cartas de amor." (20 Poemas com Brócoli, 1981)

Os traços mais presentes na obra de Roberto Piva giram em torno dessas influências ou ao menos partem delas. Trata-se, antes de tudo, de uma poética de transgressão: na abordagem, na temática e na quebra de fronteiras entre os contrários. Portanto, uma transgressão que desemboca no paradoxo - por exemplo, entre carne & espírito, vida & obra, contemporâneo & arcaico. Sua expressão poética persegue o rastilho da escrita automática de extração surrealista: recuperar para a poesia os estados primitivos do sonho e da loucura.

No caso de Roberto Piva, talvez fosse mais adequado falar em escrita delirante. Essa prática levou, também no caso do poeta brasileiro, à utilização do método da livre associação de idéias, a partir da crença na importância poética do inconsciente. Resultado: metáforas explosivas que Roberto Piva articula com estonteante propriedade. Do seu poema “A vida me carrega no ar como um gigantesco abutre”, veja-se o final delirante:

"minha dor é um anjo ferido

de morte

você é um pequeno deus verde

& rigoroso

horários de morte cidades cemitérios

a morte é a ordem do dia

a noite vem raptar o que

sobra de um soluço". (Coxas, 1979)

Ou, no início do seu "Poema VII" de 20 Poemas com brócoli, note-se a homenagem embutida numa metáfora explosiva, que mistura elementos de sensualidade contraditória:

"mestre Murilo Mendes tua poesia são

os sapatos de abóboras que eu calço

nestes dias de verão." (20 Poemas com brócoli, 1981)

Outro traço marcante na obra de Roberto Piva é o total desmantelamento da versificação métrica, influência modernista que, no seu caso, caotiza-se, na tentativa de transpor para a poética escrita o ritmo sincopado do jazz e a respiração do músico de jazz.

A rítmica entrecortada, a batida imprevista e a respiração irregular, com notas se sucedendo lânguidas, são traduzidas inclusive numa distribuição desordenada dos versos o espaço da página. Veja-se como o poema dança, neste seu "O Robot Pederasta":

"Não vale

sair

com asas

onde

o cra cra cra cra cra cra cra

cra cra cra cra cra cra

se amassava

nas

velas apagadas

quem

quer

o telhado

de lágrimas?

beberei veneno

contra

teu temperamento

alegria que se

espera

raio X de gente que

desce do alto

porta acesa

olhar inchado no escuro

Signorine, la danza della Morte è servita

algumas ficaram

LOUCAS" (Piazzas, 1964)

Depois, veio a influência do cinema. Trata-se de uma obra pontuada por cortes cinematográficos que remetem ao cinema experimental, com passagens abruptas de espaço, tempo e imagética. Confira-se neste “Ganimedes 76”:

"Teu sorriso

olhinhos como margaridas negras

meu amor navegando na tarde

batidas de pêssego refletindo em teus olhinhos de

fuligem

cabelos ouriçados como um pequeno deus de um salão

rococó

força de um corpo frágil como âncoras

gostei de você eu também

amanhã então às 7

amanhã às 7

tudo começa agora num ritual lento & cercados de

gardênias de pano

Teu olhar maluco atravessa os relógios as fontes a tarde

de São Paulo como um desejo espetacular tão

dopado de coragem

marfim de teu sorriso nascosto fra orizzonti perduti

assim te quero: anjo ardente no abraço da Paisagem" (Abra os olhos e diga Ah!, 1976)

No geral, temos uma temática muito diversificada, que parte do urbano e quotidiano, passando pelo erótico e carnal, até atingir o metafísico e o sagrado. Confira-se neste trecho do seu "Beija-flor badulaque":

"nus & feéricos/ olho no gatilho meia-lua/ nado esta

manhã a favor da correnteza/ à deriva/ no miolo do

furacão/ eu era uma Sibila entre os gonzos da lingua-

gem/ Samba-Vírus/ exus nanicos carregando cabaças

de pedra da lua no portal do meu ouvido/ cruzamento

das Avenidas Assassinato & 69/ garoto-pombinha no

balcão da lanchonete/ esperando o pernilongo da Mor-

te/ estrelas rachadas gotejam leite dos deuses/ é com

este que eu vou sambar até a Pradaria -Kamikase/ no

trecho Belém-Brasília da Teogonia" (Quizumba, 1983)

O resultado geral é uma expressão poética fragmentada, que resume exemplarmente as soluções expressivas, as inquietações e encruzilhadas da contemporaneidade. Assim, Roberto Piva inaugurou traços singulares no contexto poético brasileiro, que fazem de sua obra uma das mais originais e inovadoras dentro da poesia brasileira contemporânea. Como sempre esteve eqüidistante das escolas conhecidas, pode-se dizer que ele é sua própria escola.

Roberto Piva persegue e vive o ideal do poeta-profeta, como menciona em seu "Poema Vertigem":

"Eu sou uma metralhadora em

estado de Graça

Eu sou a pomba-gira do Absoluto".

No espelho da poesia, sua imagem é daquele que reflete, de modo nem sempre aceitável, os paradoxos da contemporaneidade, através dos seus próprios. Define-se a si mesmo como um anarquista de direita. E, muito contemporaneamente, ama as corridas de carros, ainda que criticando o culto à tecnologia. Com suas transgressões na vida e na poesia - que formam um só organismo - Piva veio para confundir.

Por ser incômodo, recebe mais pedras do que reconhecimento dos seus contemporâneos. Para não falar da conspiração de silêncio da qual sua obra poética tem sido vítima.

Como gente demais no Brasil não o conhece, encerro com mais um exemplo da sua contundência. Saboreiem este festival de musicalidade, ritmo e delírio expressivo em seu

"Piazza V", um dos poemas mais emblemáticos da sua obra emblemática:

"Oswald Spengler tem uma

porta no seu tornozelo

& nuvens através dele

limpando a pele

que projeta

um velho cachecol marrom

em seu olho

eu penso

pelos seus

líquidos compassos de sátiro

até

um cenário de músculos

impedido de esmagar

o carvão de

vidro verde

que aquece

a estrela nua de

anteontem

Oswald Spengler tem uma porta no seu tornozelo

batendo

até

altas horas" (Piazzas, 1964)



(*) João Silvério Trevisan (Brasil, 1944). Ficcionista, ensaísta e tradutor. Autor de livros como Em Nome do Desejo (romance, 1983), Devassos no Paraíso (ensaio histórico-antropológico, 1986), e Seis Balas num Buraco Só: A Crise do Masculino (ensaio, 1998). Palestra proferida na Biblioteca Mário de Andrade, 24/04/96, em São Paulo. Posteriormente publicada em Pedaço de mim (Ed. Record, 2002).

3 comentários:

Anônimo disse...

Certamente, Roberto Piva é um grande poeta. Mas talvez sua poesia deva mais à sua pessoa do que à sua estrutura. Piva copia muito, sem dialogar. César Vallejo e outros. Ademais, deve-se dizer que Piva sempre concedeu muito à cidade de São Paulo e seu esquema de vida: sem Masao Ohno, filho de general, como Piva faria estripulias nas madrugadas da ditadura? O próprio Piva se vangloria de sua esperteza, de sua "costa-quente". Ele preciava de costa-quente para ser um libertino: legal, vou arrumar um amigo batuta para quebrar vidraças e sair na maior. Então estamos acertados: continuamos na mesma, cada um correndo por um lado, na sombra da asa de alguém, e damos a isso o nome de poeta marginal. Sim, Piva não se marginalizou: ingenuidade acreditar que ele tenha sido, alguma vez, poeta marginal: nós é que lhe demos este título, por não querer conferi-lo aos verdadeiros marginais.
Márcio, Vila Zatt

Anônimo disse...

Haha...muito boa essa...e se ele é de direita, será que é da TFP? Ou ele é de esquerda e tá magoado?

haha
haha

Anônimo disse...

SE OS POETAS DEVEM DEIXAR DE SER BROXAS PARA SER BRUXOS, PORQUE O PVA NUNCA QUER COMENTAR SOBRE OS POETAS CONTEMPORÂNEOS? ESPERTEZA OU MEDO? BRUXO O CARALHO, ELE É MALANDRO MESMO.