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quarta-feira, janeiro 31, 2007

Geraldo Carneiro e a dessacralização da palavra


André Gardel (*)

Geraldo Carneiro é um artista múltiplo. Divide seu talento de escritor pela dramaturgia, a criação e adaptação de roteiros para cinema e TV, a tradução, a produção de letras de canções, e também pela poesia. Tendo estreado em livro em 1974 com Em busca do sete-Estrelo, participou da primeira antologia de Heloísa Buarque de Hollanda, 26 poetas hoje, de 1976. Publicou, entre outros livros de poesia, Folias metafísicas em 1995; e, agora, Lira dos cinqüent'anos (editora Relume Dumará, 122pp) uma espécie de balanço geral de sua produção poética, numa obra que implicitamente parece funcionar, a um só tempo, como marco vital e índice de maturidade criativa.

O jogo de duplos com a famosa peça homônima de Bandeira (que, por sua vez, já é uma reciclagem de a Lira dos vinte anos de Álvares de Azevedo) demarca um lugar de fala crítico e subjetivo que acaba por dialogar com o poeta modernista para além do mero brinquedo lúdico de desdobramento serial do título. Se, por um lado, a poesia de Geraldo Carneiro enfatiza, por vias próprias, e, por isso mesmo, de modo dissonante, acordes e notas típicas da poesia de Bandeira, por outro, circula por esferas que se distanciam em muito do universo bandeiriano.

A reiteração particular de alguns procedimentos do poeta pernambucano surge na importância dada ao universo social em Lira dos cinqüent'anos, sugerida pelo grande número de poemas dedicados, e pela produção de um soneto a quatro mãos (transcriação de um poema escrito originalmente em inglês pelo acadêmico João Ubaldo Ribeiro, feita por Geraldo); o que nos remete à afirmação de Bandeira, em Itinerário de Pasárgada, de que muito do modernismo em suas obras era proveniente da convivência criativa estabelecida com seus amigos de boemia e letras do período. Surge também em recursos expressivos, como versos à maneira de, os poemas desentranhados de outros textos, a busca de uma poesia não hermética, o uso de uma linguagem coloquial salpicada pelo estranhamento vocabular, as variações sobre um mesmo tema.

As figurações poéticas do livro de Geraldo Carneiro se deixam perpassar, além do mais, por algumas características recorrentes de uma determinada poesia brasileira que começou a se impor a partir dos anos 90, como o passeio por gêneros e formas fixas, o uso desreprimido de poemas experimentais, a multiplicidade de referências a poetas e obras da tradição poética ocidental, mas, no fundo, guardam ainda um espírito preso à poesia marginal.

O prefácio do autor, nesse sentido, é revelador, tanto pelo tom desabusado e coloquial do discurso, quanto pelo espaço em que se situa em relação à cultura oficial, assumidamente do lado da vida, sem hierarquias, diminuindo a distância com o leitor: ''(...) no que os eruditos chamam de polissemia, e nós, mortais, chamamos de poesia'', ou em ''(...) caro leitor, meu semelhante, meu brother''. Geraldinho tem um modo lúdico e irônico de se definir lírica e pessoalmente: ''E eu, embora pós-adolescente e semi-analfabeto (aliás, continuo mais ou menos assim).''

E a leitura de Lira de cinqüent'anos nos lança numa câmara de ecos da tradição lírica, atravessada por reutilizações de ditos e letras de canções populares. Dividido em oito seções, o livro é um mar de citações, trocadilhos, palavras-montagens, diálogos inter e infratextuais, neologismos, frases feitas desfeitas, retomadas críticas de poemas precedentes do próprio autor. Geraldo Carneiro, que na maior parte da obra opta pelo uso do chiste, é daqueles autores que podem até perder o poema, mas não perdem a piada, o jogo de vocábulos, a rima insólita funcionando, muita vez, como chave de ouro.

Com isso, a ambiência geral é de humor e anarquia dessacralizante, regada por comentários em alguns momentos corriqueiros, em outros filosóficos, sobre a existência, sobre os clássicos e seus autores, estes sempre tratados com intimidade e irreverência. O timbre da voz subjetiva é o de um bate-papo desenfadado com amigos, afinidades eletivas, no bar ou pelo telefone sobre assuntos literários e temas diversos, o que dá à obra um caráter ocasional de livro-álbum, mais do que de encadeamento poemático seletivo de livro-conceito.

Contudo, há momentos em que a pilhéria não se transforma em obrigação de afirmação estilística, nem a necessidade de leveza e compromisso afirmativo da vida uma opressão para um pouco mais de rigor e esmero, ou, talvez, apenas o poeta se leve mais a sério, e vemos surgir poemas de grande densidade de linguagem e força vital como, por exemplo, a pulsão trágica de ''Maldoror'': ''a dor do mundo dói dentro de mim./ ressoam no meu céu todas as dores.../ a dor de Dante, da pátria perdida,/ o horror supremo de Edgar Allan Poe,/ o horror da dor, o horror do nevermore.../ o horror da acrópole, do bar e dos bas-fond/ eu sinto o horror e sei qual é o seu som.''; ou a sutil delicadeza dramática de ''Novo panglossário 4'': ''adoro as pequenas burguesas de Tchecov/ com suas vidas suspensas,/ como coaguladas, vagando entre/ cristais e coisa nenhuma...''; ou, ainda, a generosidade sobrevivente de quase soneto a quatro mãos: ''sejam benditas, berenices, beneditas,/ também sejam benditos meus amigos,/ pois gosto deles, tenham longa vida,/ e até eu mesmo, que não a mereço,/ mas que a observo e sei qual é o seu preço''.

Nesses momentos, a poesia de Geraldo Carneiro além de moderna, carioca e brasileira, projetos subjacentes aos poemas que parecem confeccionar uma camisa-de-força criativa ao lançar mão de fórmulas recorrentes, torna-se, sem qualquer overdose de referencialidade, insistência na blague ou desconstrução satírica, pela sua própria iluminação interna e valor construtivo, em algo que se pode chamar de universal.



(*) André Gardel é Doutor em Literatura Comparada pela UFRJ e compositor de música popular

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