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quarta-feira, agosto 12, 2009

Fabricação Cultural no Amazonas


Em entrevista à TV Amazonas, o secretário Berinho Braga disse que "jazz é um ritmo latino". Isso dá bem a medida do nível de qualidade do Festival de Jazz que ele promove em nome do estado...

por Célio Cruz (*)

No mês passado, recebi por e-mail uma carta indignada do compositor Armando de Paula ao Governador do Estado, e, no último domingo, ouvi pelo rádio um comentário no programa Zona Franca, do Joaquim Marinho, que tinham em comum sérias, pertinentes e sinceras críticas à política de cultura do Estado do Amazonas. O primeiro denunciava a ausência de apoio da SEC (Secretaria de Estado da Cultura) à produção cultural local, especialmente na realização em Manaus da 61ª reunião da SBPC; o segundo reclamou que o Estado estava em todas, como produtor de cultura: ópera, jazz, cinema, e parece que vai produzir também um festival de dança, e que isso não seria propriamente trabalho do Estado.

Concordo com ambos, e já manifestei a minha concordância com o Armando através de resposta ao e-mail que ele enviou, e com o Marinho, pessoalmente, durante o lançamento do novo livro do Márcio Souza. Conquanto dispensem apresentação, é bom que se esclareça que tanto o Armando de Paula quanto o Joaquim Marinho têm bagagem de sobra para fazer com propriedade os comentários que fizeram sobre a nossa cultura, em momento mais do que necessário.

Não precisa muito esforço para perceber que a opção da SEC, há mais de doze anos, é pela produção de eventos de alta visibilidade midiática e política, mesmo sem lastro de movimentação cultural local. Explico: temos festival de ópera e um festival de jazz onde não se tem sequer um conservatório de música; temos um festival de cinema onde não há qualquer incentivo à produção de cinema, e por aí vai. Aliás, não há incentivo à produção artística nenhuma. Na verdade, não percebo coerência nem mesmo na própria programação dos espetáculos, nem seu viés econômico, social ou turístico. Temos eventos caríssimos destituídos de sentido realizados ano após ano e temos a principal biblioteca do Estado fechada há pelo menos três anos, por exemplo. O próprio festival de jazz amazonense é o único do mundo produzido e dirigido pelo governo, sem falar que, por mais que eu me esforce e consulte meus amigos que entendem mais de jazz do que eu, não encontro referência dos nomes dos convidados, com exceção, é claro, da nossa gloriosa Leny Andrade. De qualquer forma, não há como perceber qual é a intenção do festival, assim como dos outros eventos produzidos pela SEC.

O Estado do Amazonas se tornou um produtor de cultura. Totalmente desvinculado de sua realidade e com um indisfarçado desprezo pela produção local, pelos criadores e produtores, agentes culturais de um modo geral, sua história, sua memória, suas várias leituras da realidade, sua visão de mundo, o Estado do Amazonas, tal como no ciclo da borracha, resolveu modernizar a administração cultural para alcançar parâmetros americanos e europeus. O Estado se tornou um fabricador cultural.

O termo FABRICAÇÃO CULTURAL foi criado ou explorado pelo Professor Teixeira Coelho, em seu livro Dicionário Crítico de Política Cultural[1], o qual esclarece o seguinte sobre o significado da expressão:

Processo de mediação cultural com ponto de partida, etapas intermediárias, fim e finalidade previstos. Tem por meta, alternativa ou cumulativamente, a transmissão de conhecimentos e técnicas determinadas; a formação de uma opinião cultural específica; a conformação de um modo de percepção ou a produção de uma obra cultural previamente estipulada. Neste processo, os objetivos são predeterminados, cabendo ao agente ou mediador cultural orientar as atividades de seu público na direção estabelecida. Opõe-se, neste sentido, à ação cultural, processo de invenção e construção conjunta, entre mediadores e público, dos fins e meios culturais visados, não raro definidos apenas no decorrer do próprio processo.

O Professor ainda esclarece que o termo faz remissão à sua origem do latim, que significa “engano, artifício, dolo” e caracterizou períodos tenebrosos da humanidade, como o Estado Novo, no Brasil, o nazismo alemão e o fascismo italiano. E é exatamente o que observamos e vivenciamos no Estado do Amazonas na gestão atual da SEC, uma política pronta, arbitrária e individualista de cultura, que sequer deveria merecer este nome. Mas, como disse o Márcio Meira, atual superintendente da FUNAI, não ter política cultural é, em si, uma opção de política cultural.

O Estado deveria, tal como no tempo em que o Joaquim Marinho era Superintendente Cultural do Amazonas, ser um fomentador de cultura, agindo no apoio às manifestações culturais, na pesquisa cultural, na implantação de infra-estrutura para que as manifestações culturais legítimas aconteçam; aí se incluem a instalação e manutenção de teatros, bibliotecas, museus, escolas etc., além da divulgação local, nacional e internacional dessa produção, como também da história, da memória e dos costumes amazonenses, o jeito de ser e ver o mundo, a formação cultural. E não é só isso. O Estado deveria, tal como dispõe a Constituição Federal, franquear o acesso da sociedade às fontes de cultura, fazer com que ela se encontre consigo mesma e se veja e se ame, e, a partir daí, crie, desenvolva e fortaleça a sua própria identidade e autoestima. Isso, definitivamente, o nosso Estado não faz.

O projeto da SEC, por melhor que pareça a alguns, cansou, exauriu-se por completo e se tornou insuportável, a ponto mesmo de comprometer seriamente o nosso futuro como civilização e a sustentabilidade amazônica. É um projeto provinciano e retrógrado que reflete a falta de afinidade e de sensibilidade do Governo do Estado com relação à cultura. Temos reconhecidamente um problema de identidade e o projeto da SEC aprofunda essa crise, que se arrasta desde sempre até os dias atuais.

O recado aqui segue no mesmo sentido dado pelo Armando e pelo Marinho com relação à condução da política cultural do Estado: a força da política da SEC até pode estar correta, mas a direção está totalmente errada, o que vem a ser muito pior do que no tempo em que não havia dinheiro para a cultura. Termino com um poema do poeta Eduardo Alves da Costa, musicado pelo Armando de Paula.

Querem meu verso de nariz pro ar
Equilibrando a esfera
Enquanto alguém bate com a varinha
Para me por no compasso
(...)
Mas eu nascido num tempo de sussurros
Tenho a voz contundente
E por mais que eu me esforce
Não sirvo pra cantar no coro.


(*) Célio Cruz é advogado, escritor, cantor, compositor e Grande Sacerdote da AMOAL

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