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sexta-feira, agosto 14, 2009

High Noon: a solidão da coragem


Nei Duclós

A morte chegará no trem do meio dia. À sua espera estão seus aliados: o medo, o egoísmo, a fuga. O facínora que sai da prisão para acertar contas tem apenas um adversário: o velho xerife solitário que o prendeu e agora vai enfrentá-lo sem ninguém ao seu lado. A Justiça se retira, a cidadania se omite, a religião se fecha, o casamento escapa das mãos, a noiva se separa. A comunidade é incapaz de reagir, sob a justificativa de que aquela briga não lhe pertence, está confinada ao homem que representa a lei, culpado de ter cumprido seu dever e que agora se vê abandonado pelo que acumulou ao longo da vida.

Que tesouro acumulado é esse? O reconhecimento dos cidadãos, que se esvai logo que chega a notícia do tiroteio próximo; a honra de quem viveu e lutou honestamente, e que, apesar da determinação, chega a entrar em pânico diante do desenlace; o amor da jovem esposa Quaker, avessa a qualquer tipo de violência, que o deixa por não ter escapado a tempo da armadilha. A hora e meia de tempo real em que transcorre a obra-prima de Fred Zinneman, High Noon (Matar ou Morrer, 1952, com Gary Cooper e Grace Kelly) é o baú do xerife que se esvai minuto a minuto. A decisão de se aposentar depois de ter desempenhado bem de sua missão revela-se inútil quando a pressão do destino o convoca para o último duelo.

Não há, no universo hostil, ninguém mais solitário do que Gary Cooper e sua estrela de lata, debaixo do sol que castiga com luz e calor insuportáveis. Vejam como, desesperado, procura quem o apóie e é recebido com a porta na cara, cinismo, voluntários incapazes de lutar (o bêbado e o adolescente). Veja como quase cede diante da possibilidade de sair a galope dali. Mas ele sabe. Viver é adiar o inevitável. Chega o momento em que não é possível mais escapar desse confronto. Velho, machucado, com apenas um revólver e algumas caixas de balas, o herói dividido palmilha a rua que lhe servirá de jazigo. Ele carrega o mundo nos ombros. Mas não por muito tempo.

A morte que chegará de trem é bem-vinda para os habitantes da pequena cidade. Os vagabundos do bar, o vendedor de bebidas, o recepcionista do hotel querem o mesmo movimento que existia antes de o bandido ser trancafiado. O facínora faz bem para os negócios. A vida pacata instaurada pela eficiência do xerife cansa a cidade perdida no mapa. Eles recebem com alegria o irmão do malfeitor e debocham da solidão do xerife. Num clima diferente, mas com os mesmos resultados, os piedosos e aparentemente indignados pais de família reunidos na igreja dizem que já pagaram pela segurança e não cabe a eles arrostarem com o perigo.

Só resta ao xerife o enfrentamento, decidido numa seqüência memorável e curta. A briga, no fundo, não importa. O que está em foco é a ligação entre a sociedade estabelecida e o crime. São faces da mesma moeda: o Mal é confundido com prosperidade e aventura, o Bem é jogado na vala comum da indiferença. O sub-xerife que cobiça o cargo agora vago e que se recolhe à bebida no momento decisivo representa essa covardia que se quer justa, essa decadência alimentada por boas intenções que se revelam falsas.

Feito o serviço, onde o herói contou não apenas com a coragem, mas com a sorte e a experiência de guerreiro, é hora de jogar a estrela na cara de quem o abandonou. São eles que agora estão sós, abraçados aos bandidos acolhidos por sua conivência. Estes estão mortos, mas outros virão. E foi o que aconteceu. Mais de meio século depois de o filme ter sido lançado, estamos todos às voltas com o poder crescente da criminalidade. Fomos omissos e, mesmo que contássemos com um herói para resolver o impasse, isso não era suficiente. Sabíamos que o destino iria se cumprir. Bastava que ficássemos à sua espera na estação, armados com aquilo que sobrou no xerife de High Noon: a coragem, essa certeza de que, pelo menos uma vez na vida, temos chances contra o que já está decidido.

Nosso medo inventa a tirania. Só poderemos derrotá-la se nos convencermos que não há fuga possível. O tempo – todos os nossos pertences e conquistas - escoou pelo ralo. Quando o trem apitar, é chegada a hora.


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