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quinta-feira, dezembro 11, 2008

Meu amigo Leônidas, de quem espero ter sido um dos 300


Algum dia de 1967. Eu devia ter uns onze anos. Minha família havia se mudado há pouco tempo para uma nova casa, quase no canto da Rua Parintins com a Borba, abandonando nosso velho ninho na Rua Waupés quase canto com a Barcelos, mas sempre no bairro da Cachoeirinha. O hoje escritor, jornalista e chargista Mário Adolfo, que devia ter uns treze anos, era meu guia nesse território inóspito e desconhecido.

Num domingo de manhã, ele passou em casa e me levou para bater bola no “campinho”, que ficava ali onde hoje é a quadra coberta do GRES Andanças de Ciganos. Ele tinha esse nome porque era do tamanho de uma quadra de futebol de salão – apesar das traves serem quase de campo oficial – e convivia com uma heterogênea mistura de barro, areia, grama, ervas daninhas e algumas árvores estrategicamente posicionadas. A majestosa castanheira na entrada da área do lado esquerdo, por exemplo, era quase um beque natural. A mangueira, do outro lado, também.

O concorridíssimo “racha” era de cinco contra cinco, tempo de dez minutos, quem fizesse o primeiro gol, ganhava, se a partida terminasse empatada em zero a zero, os dois times saíam de campo. Simples assim. Entre crianças (nós) e marmanjos (os outros), uns 20 times disputavam aquelas peladas furibundas.

Normalmente, Mário Adolfo era o nosso goleiro. Não que ele fosse ruim na “linha”. Não era. Acontece que ele tinha uma agilidade incrível, principalmente nas bolas altas, onde superava sua baixa estatura com uma elasticidade de felino, e costumava “fechar” o gol. Suas “pontes” esteticamente perfeitas e de uma segurança a toda prova são algumas das melhores lembranças que guardo da infância.

Nesse dia, Mário Adolfo decidiu jogar na linha e nos apresentou o novo goleiro do time: Leônidas Arruda. O sujeito devia ter uns dezoito anos e chegou apoiado em uma bengala. Pior: uma das pernas dele havia sido cortada um pouco abaixo do joelho. Fiquei cismado: aquele goleiro saci-pererê era queimação de filme, na certa.

Leônidas deve ter cagado e andado pras minhas desconfianças. Tranquilamente, ele vestiu a camisa de helanca de goleiro e se posicionou embaixo da trave, deitado de lado como uma coelhinha da Playboy se preparando para pegar sol. Calculei mentalmente a altura da trave (cerca de 1,80m) e senti que na primeira bola por cima a gente saía de campo.

Mal o jogo começou, o enjoado Becão tomou a bola do Luiz Lobão (nosso principal atacante) e meteu um foguete no ângulo, exatamente na forquilha onde supostamente fica o ninho da coruja. Leônidas voou na bola e espalmou, cedendo o escanteio. Confesso que nunca tinha visto aquilo: um sujeito levitar e tirar uma bola indefensável. Foi o meu primeiro alumbramento.

A partir daí, eu entendi exatamente que diabos quer dizer “superação”. O Leônidas conseguia rolar em cima de si mesmo, pra ir de um lado ao outro debaixo das traves, de acordo com o ataque adversário, sem deixar um minuto de gritar pela marcação. E fazendo acrobacias aéreas que lembravam o goleiro Gilmar, do mitológico Santos e da seleção brasileira, ou o Lev Yashin, da não menos mitológica seleção russa.

Imagine uma criança engatinhando pra um lado e pra outro, numa atividade febril, e de repente levitando para espalmar bolas indefensáveis, engatinhando até a entrada da área pra dividir a bola com um troglodita, voltando rapidamente pro gol e fazendo defesas suicidas. Eu nunca havia visto aquilo. Provavelmente, nunca mais vou ver.

Mesmo com um time capenga (eu, Mário Adolfo, Luiz Lobão e Fernando Língua), a gente ganhou umas dez partidas porque havia uma muralha no nosso gol chamado Leônidas Arruda. Quando perdemos, fui lá conversar com o sujeito. Ia agradecer por aquele domingo maravilhoso, claro (a gente nunca, antes, havia ganhado três partidas seguidas).

Em vez de se sentir o Tao da Física, o acrobata filho da puta recitou um poema do Fernando Pessoa. E me convidou a dar uma passada na casa dele, numa vila de sapé, ao lado da casa do Mário Adolfo, para conhecer sua produção literária. Comecei a querer ser poeta naquele dia. Por causa de um saci-pererê encantado chamado Leônidas Arruda.

Ficamos amigos de infância, apesar da diferença de idade. Quando eu e Mário Adolfo desenhávamos alguma história em quadrinho, Leônidas era o nosso primeiro crítico. Ele lia, apontava erros de linguagem ou de enquadramento, sugeria novas aventuras, enfim, participava ativamente de nossa formação intelectual e quadrinística.

Aí, de repente, no início dos anos 70, Leônidas sumiu. Sem mais nem menos, ele se mandou pro Araguaia, em companhia dos irmãos Ademar e Capitão. Falo disso em outra oportunidade. A dor pelo sacana ter morrido há alguns dias, sem que eu tenha voltado a abraçá-lo, ainda lateja de viés feito uma ferida não-cicatrizada. Valeu ter te conhecido, meu brother!

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