Espaço destinado a fazer uma breve retrospectiva sobre a geração mimeográfo e seus poetas mais representativos, além de toques bem-humorados sobre música, quadrinhos, cinema, literatura, poesia e bobagens generalizadas
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quarta-feira, dezembro 17, 2008
Por este Brasil adentro
Mouzar Benedito (*)
Quando conheci a poeta goiana Cora Coralina, praticamente ninguém que morava em São Paulo sabia de sua existência. Foi num trabalho de pesquisa de cultura popular em Goiás, em 1976. No ano seguinte, fiz uma entrevista com ela, para publicar no jornal Versus, em que eu era um dos editores. Mas os outros editores achavam que eu estava exagerando, quando dizia que ela “tinha futuro”, apesar dos seus oitenta e tantos anos de idade. Ninguém quis publicar. Voto vencido, levei a matéria para o jornal Movimento, em que a editora de cultura era a Maria Rita Kehl. Foi, que eu saiba, a primeira matéria com Cora Coralina publicada em São Paulo.
Cora Coralina era doceira, e só começou a publicar poesias com mais de oitenta anos, viúva e morando sem ninguém da família na cidade de Goiás, que o pessoal de fora chama de Goiás Velho, irritando seus moradores.
— Goiás Velho por quê? Onde é que fica Goiás Novo? — perguntavam irritados aos desconhecedores dessa sutileza.
Bem, numa das viagens a Goiás, eu vinha da Paraíba, onde havia me reencontrado com dona Roseirinha, uma mulher que tinha alguma afinidade com Cora Coralina. Dona Roseirinha foi casada durante um tempão, até ficar viúva, com um homem típico da elite local da época, tipo coronel. Não saía de casa, a não ser pra visitar parentes. Se saía à janela e ficava olhando a rua, em João Pessoa, o marido achava que ela estava se exibindo, ou qualquer coisa assim. Até as visitas ele mandava embora às 9h da noite. Quando ele morreu, ela passou a ter uma vida bem diferente, muito melhor. Os filhos não puxaram para o marido dela, eram todos animados, festivos, e sua vida melhorou muito, com passeios, muita leitura... Pode-se dizer que ela “desabrochou”, como se dizia antigamente.
Comentei com a Cora Coralina, a história da dona Roseirinha, e pedi que ela confirmasse ou não minha impressão: a de que a viuvez dela, como de dona Roseirinha, foi uma libertação. Ela só começou a ter coragem de escrever e mostrar seus versos depois de viúva. Ou não?
— Não. Não foi — disse ela. — Eu me libertei mais tarde ainda: só depois que meu último filho casou e fiquei sozinha. Não só o marido é uma prisão. Os filhos também — completou sorrindo.
Numa das minhas viagens a Goiás, muito tempo depois, voltei a falar com a Cora Coralina, comprei mais um livro dela, “Poemas dos becos de Goiás e estórias mais”, e pedi que sua dedicatória contivesse um pouco de reflexão sobre ela mesma. Ela escreveu uma coisa parecida com um texto que conheci muitos anos depois, atribuído a Jorge Luis Borges (autoria contestada pela secretária dele). Acredito que ela não conhecia o tal texto, pois, pelo menos por aqui, ele só apareceu muito depois. É esta a dedicatória de Cora Coralina para mim:
Mouzar,
Como mulher, deveria ter sido mais bonita e menos idiota. Mais vaidosa e menos inteligente. Mais sofisticada e menos simplória. Devia ter tido a coragem que me faltou e não devia ter tido o medo que me sobrou. Devia ter sido mais mentirosa e menos sincera. Devia ter me casado com um moço e me casei com um homem 22 anos mais velho do que eu. Errei de ponta a ponta. Quando reconheci o erro já era tarde.
Cora Coralina
Cidade de Goiás 24-1-83.
(*) Jornalista, cronista, romancista, folclorista, boêmio e geógrafo, autor, entre outros, dos livros Memória Vagabunda, Pequena Enciclopédia Sanitária, Pobres, porém perversos e Santa Rita Velha Safada.
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