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quarta-feira, dezembro 31, 2008

Pausa para pensar


Sylvio Costa

Os escritores, e colunistas do Congresso em Foco, Marcelo Mirisola e Márcia Denser formam um caso único na cena literária brasileira. Reconhecidos pela crítica como dois dos nomes mais importantes da prosa nacional contemporânea, distinguem-se pelo destemor com que expressam suas opiniões.

Deram novas provas disso ao participarem no último dia 19 de um debate, sobre os rumos da literatura contemporânea, no Espaço Brasil Telecom, em Brasília. Algumas afirmações feitas pela dupla durante o debate, mediado pelo jornalista e professor Sérgio Sá:

- O escritor português José Saramago é um chato. Assim como Clarice Lispector e Virginia Woolf.

- Se aparecessem hoje, pessoas como José Carlos de Oliveira, Paulo Mendes Campos e Nelson Rodrigues provavelmente não teriam espaço nos principais jornais do país, que fecharam as portas para os escritores brasileiros.

- A falta de originalidade e de grandes talentos marca a produção literária atual, tanto no Brasil quanto no mundo.

- O escritor brasileiro é um pangaré, que vive das migalhas que seus contatos (e não seu eventual talento) lhe garantem.

- Debilitaram-se os vínculos entre os meios universitários e os mais inventivos autores nacionais contemporâneos, e a academia recuou no tempo, priorizando o estudo de grandes nomes da literatura brasileira do passado, como Machado de Assis e Guimarães Rosa.

Pois é, a dupla não tem papas na língua e, concordemos ou não com suas opiniões, eles nos fazem pensar. Por isso, integram, para nosso orgulho (alô, mamãe!), o time de colunistas do Congresso em Foco. E, por isso, decidimos brindar vocês, leitoras e leitores, com os principais trechos do citado debate. Vai como uma espécie, digamos, de bônus de Ano Novo. Os temas tratados não dizem respeito exclusivamente ao mundo da literatura. Se você se interessa por cultura brasileira ou tem alguma pretensão de entender um pouquinho este país complexo chamado Brasil, vale a pena ouvir o que Márcia e Mirisola dizem.

O recuo da universidade

Márcia Denser – Antônio Cândido é o nosso grande mestre, é o nosso guia espiritual ainda porque não se forjou algum outro parecido, nesse meio tempo. Até porque até a geração de Antônio Cândido e a geração posterior a ele, o pessoal da universidade acompanhava a par e passo o trabalho dos escritores. Interessante que o trabalho deles acadêmico , de pesquisa, ia crescendo ao mesmo tempo em que o nosso trabalho, de ficção, ia crescendo, as apostas eram recíprocas. Hoje, a universidade recuou. Recuou para Machado, recuou para 1930, recuou para nomes consagrados como Guimarães Rosa. (...) Há um recuo da universidade, há um recuo do pensamento construído, a extinção do pensamento dos inteligentes, e isso é muito triste. Porque a literatura tem que ir, passo a passo, junto com o pensamento que se produz a respeito dela.

A atual geração de escritores

Márcia – O que eu percebo na geração do Marcelo [Mirisola], que é uma geração posterior à minha, é que o Marcelo apareceu quase que como uma estrela solitária, em meio a essa geração dos anos 90. Na minha geração, havia muitos escritores muito bons, mulheres e homens. Na geração dele, como ela é uma a geração epigonal, ela duplica aquilo que a gente já tinha feito, não inventou nada de novo. Novo foi o Mirisola.

Marcelo Mirisola – Eu li outro dia... por que não existem mais escritores, cadê os gênios, essa coisa toda e tal... quem foi que escreveu? Acho que foi no Jornal do Brasil... ele disse que no Brasil existem dois escritores, um morto e um vivo, o Machado de Assis e o Cristóvão Tezza, né?

Márcia – Que ninguém lê...

Mirisola – Você não leu também?

Márcia – Não.

Mirisola – Eu também não. Mas o livro [O filho eterno] é bom mesmo?

Sérgio – O livro é bom, mas é sintomático de uma situação. Ganhou todos os prêmios e não é lido, não está na lista dos best sellers.

Márcia – Não é lido pelos escritores, e quem consagra um escritor é outro escritor... (fala que, quando Mirisola apareceu, foi uma unanimidade, todo mundo lia e comentava)

Sérgio – E os escritores não estão se lendo, é isso? Falam uns dos outros, mas não se lêem...

Márcia – Não, por exemplo, o Milton Hatoum é uma coisa que... se fosse algo inquietante, eu...

Sérgio – E o Milton Hatoum não é inquietante?

Márcia [confirma com a cabeça e acrescenta] – E Cristóvão Tezza, para mim, não é interessante...

Sérgio – Quem são os interessantes, Márcia, além do Mirisola?

Márcia – Isso aí deixa a gente constrangida porque, sabe, eu estou esperando alguém interessante...
(...)

Sérgio – Se não há nada interessante no Brasil, no resto do mundo não há nada interessante, que atraia a atenção de vocês dois?

Márcia – Não, também não tem. Nada.

Mirisola – Você já leu Bolaño, Márcia? Eu gosto, acho um cara interessante.

Sérgio – Roberto Bolãnho, escritor chileno, morreu em 2003...

Márcia – Eu estive na Alemanha, na Espanha... e na Europa a esperança deles é que surja alguma coisa no Third World, na América Latina, nos países africanos... Não há criação de linguagem.

Sérgio – Quero entender qual é o problema da literatura de hoje...

Márcia – Veja o caso do Marcelo. O que ele faz é absolutamente novo. É uma coisa que se chama originalidade, talento, entende? Você não fica lendo “dejá li”, e é uma coisa que você não encontra facilmente em outros autores.

Sérgio – Marcelo, você também não vê nada de interessante no panorama da literatura brasileira, como a Márcia está dizendo?

Mirisola – Vejo, eu encontro...

Márcia – Tem. Tem o André Sant’Anna, filho do Sérgio...

Mirisola – É, o filho do Sérgio...

Márcia – Ele se repete muito, né?

Mirisola – Mas aquela história de se repetir é jeito de escrever...

Márcia – Mas ele conseguiu fazer um trabalho realmente importante...

Mirisola – Tem um cara que eu sempre falo para a Márcia e que ela não quer ler. É o Peçanha...

Sérgio – Juliano Garcia Peçanha.

Mirisola – É. Você não leu, né, Márcia?

Márcia – Não, eu reluto...

Mirisola – Por quê?

Márcia – Não sei.

Mirisola – É, a Márcia é engraçada, ela tem dessas coisas...

A era do escritor microempresário

Sérgio – Isso significa o quê? Não aparece esse escritor interessante porque nós não preparamos pessoas para serem escritores? O que falta?

Márcia – Não tem nada absolutamente interessante, novo... veja, o escritor agora tem que ser o microempresário dele mesmo, isso é muito besta.

Mirisola – O escritor tem de ter agenda. Isso é uma coisa complicada. Você tem que ter talento para escrever e para fazer contato também.

Sérgio – Aqueles que são considerados bons escritores têm agenda, é isso?

Mirisola – Acho que eles têm agenda, sabem manipular agenda, eles têm os contatos... (...) Eu não sei fazer essas coisas, eu sou um desastre para fazer relações pessoais. (...) Eu entendi que literatura é isso, é agenda. O que hoje se faz de literatura é o que se faz a partir de agenda. Então seus amigos vão viajar, vão para o exterior, descobrem uma Lei Rouanet que de repente todo mundo... você quer ir para onde? Você quer ir para Paris? Você quer escrever uma história de amor em Roma, funciona assim (entenda). Eu fiquei impressionado quando descobri que era assim. Eu pensei: pô, eu sou um ingênuo no meio desses tubarões.

Sérgio – Mas não foi sempre assim? Não houve sempre essa política literária?

Márcia – Não, não, não, não... era por merecimento. Não era assim. Até os anos 70, 80, era preciso ter muito talento. A minha geração revelou cerca de 300 a 400 escritores no Brasil. Só a Ática lançou de uma batelada só 75, no finalzinho dos 70 para os 80. Sobraram...

Sérgio – Sérgio Sant’Anna, Ignácio de Loyola Brandão...

Márcia – Fora os mortos. Paulo Leminski, Caio [Fernando Abreu], João Antônio...

Sérgio – Nesse sentido, houve uma certa profissionalização?

Márcia – Não se trata de profissionalização. A profissionalização vem depois que você tem uma certa consagração entre os escritores. Existem escritores hoje que têm uma consagração a partir do nada.

Sérgio – Mudou o lugar da consagração? Hoje ele é mais midiático?

Márcia – Mudou o lugar... e se ele for midiático, é falso, não está consagrando nada. Fica aquele cara que não existe como literatura.

Sérgio – Mas não foi a mídia que consagrou o Marcelo?

Márcia – Não, primeiro fomos nós, escritores.

A persona de Mirisola

Mirisola – Mas aí aconteceu o seguinte, eu tinha que desautorizar isso daí, entendeu? Se eu soubesse administrar a minha agenda, vai ver que foi essa minha falta de talento, eu estaria hoje numa boa, tranqüilo, estaria indo pra Paris escrever história de amor, mas eu fiz questão de desautorizar essa mídia. (...) Saía uma resenha atrás da outra, todas elogiando, eu virei um cara cult. Aí eu... ah não, não vou vestir esse figurino, não sou cult. Eu dava entrevista dizendo que era matador, que fui garimpeiro, que matei gente, e os caras levavam a sério aquilo. Eu sou escritor, sou um cara que vive de fabular, de inventar... eu sou assim, gosto muito de brincar com a autoridade do escritor. O lugar do escritor é a liberdade, é poder subverter, é não vestir a roupa que querem que você vista.

Escritor brasileiro é pangaré

Olha, eu vi uma coisa em Parati, foi o ano do Cristopher Hitchens, eu vi a nossa esquerda, a esquerda brasileira enfiar o rabinho entre as pernas pra esse cara. Ele barbarizou, ele defendeu o Bush lá, a invasão do Iraque, não sei o quê, e não teve ninguém lá na platéia para dizer um ai... estava o Milton Hatoum, estava todo mundo lá e ninguém deu um pio. Foi exatamente o ano em que cheguei pra esse cara e perguntei “how much”, quanto é que você está ganhando para estar aqui, ele deu risada na minha cara. A grande encrenca que eu arrumei lá foi exatamente por causa disso: por que vocês, escritores brasileiros, não ganham um centavo para estar aqui? Eu levantei esse negócio e foi um... o escritor brasileiro é pangaré. Essa agenda que eu falei é uma agenda de migalha, é uma agenda de miudeza. O cara vai lá a troco de traslado, a troco de tapinha nas costas, de ver a foto no jornal.
(...) Teve uma época em que eu remoia isso, eu me consumia, eu me sentia prejudicado... eu parei com isso. Eu continuo escrevendo, fazendo minhas coisas, estou publicando no Congresso em Foco, sabe, tenho uma baita duma audiência lá, estou tranqüilo, eu parei com essa história... se não, fica aquela história do ressentido, do invejoso... até falei para o Maurício [Melo, jornalista responsável pelo programa Leituras, da TV Senado] no almoço. Eu tenho inveja de Dostoievski, cara. Vou ter inveja de vocês? Eu queria ter escrito Memórias do subsolo, não vou ter inveja de piquenique de pangaré, pô. Faz favor...

A colaboração para o Congresso em Foco

Márcia – Eu acho ótimo. Foi um desafio para mim, aí eu pude realmente ousar. Estou desenvolvendo uma outra vocação, que é a vocação de ensaísta. É um trabalho que faço com carinho e com bastante reflexão, acho isso importante.

Mirisola – Eu me vejo lá como um corpo estranho. Muita gente que me lê me pergunta: o que você está fazendo nesse site? Estou escrevendo, uai, é o único lugar onde tenho liberdade para escrever. (...) Às vezes eu mando a crônica e penso. Não, essa aqui não vai passar não, não é possível. E sai, e nunca mudou uma vírgula. Estou muito feliz, é um lugar que realmente dá para exercitar a liberdade e para espalhar muita confusão no ar, viu? As crônicas têm uma repercussão muito grande, elas vazam demais, é muito legal isso daí.

(Um parêntesis necessário para os que estranham a presença de Mirisola neste site. O Congresso em Foco pretende cobrir o Congresso e a política sem virar as costas para o mundo real, que é aliás o pano de fundo e a matéria-prima do que se decide na esfera política. Daí nosso permanente interesse em abrir espaço, de modo democrático e pluralista, para pessoas que possam contribuir para a compreensão da realidade que nos cerca).

De prêmios, de Saramago e de chatos em geral

Mirisola – O grande autor está condenado a ser um grande autor. Pode ser que ele seja um grande autor uma semana depois de morrer, mas ele vai ser.
(...)

Márcia – Não se dá prêmio em geral para pessoas realmente muito talentosas, eu já notei. Quem ganha prêmio são os autores médios.
(...) O Saramago é um chato, um pé no saco. (...) A Virginia Woolf também, consegue ser mais chata ainda. A Clarice Lispector [faz uma expressão de desaprovação]...

Mirisola – Ela é chata mesmo, sou muito mais a Márcia...

Márcia – Não que eu seja genial, é gosto pessoal...

Mirisola – É uma questão de birra, de escolha pessoal, arbitrária. É afinidade. Uma das grandes vantagens de ser escritor é você ter liberdade para ser arbitrário. Eu sou formado em Direito, tentei advogar durante dois anos, mas eu não podia ser arbitrário. Eu tinha prazo, tinha um monte de coisa para cumprir... eu não podia ser parcial como sou hoje, ter liberdade para dar palpite, e uma das coisas mais gostosas é esta, poder falar que o Saramago é chato.

A falta de um projeto de país

Márcia – Está faltando que a gente lute em torno de uma idéia comum. Por exemplo, um projeto de país, que existia. Antes, o futuro era possível, o Brasil era possível. Isso antes da globalização, de cair o muro de Berlim, sabe como é que é? Eu e o Caio achávamos que nós seríamos famosos mundialmente, que iríamos ganhar o Prêmio Nobel. Nós tivemos um pequeno colapso em nosso projeto de país. Fora a Ivete Sangalo, que aparece em todas, não vejo mais nenhum artista que aparece. Ninguém aparece, não há mais discussão literária... a academia está defendida, não põe a cara pra fora, a academia é extremamente política, é um momento em que ela não pode se arriscar. Ainda há professores que se interessam, conversam com a gente, mas não é nada comparado com o que existia.

Sérgio – Isso não é uma coisa mais paulista, uspiana? A universidade não ficou mais fechada em São Paulo.

Márcia – Sim, a USP fechou, ela não interfere mais, não participa mais daquela forma apaixonada como participou. Só faz a crítica do negativo. Acho que há toda uma narrativa do desencanto em torno da cena brasileira dos últimos dez anos. Os grandes professores não botam a cara para fora.
Sérgio – O Silviano Santiago põe.

Márcia – Mas ele é uma coisa isolada.

Os escritores de fora dos grandes jornais

Mirisola – Nos grandes jornais, o escritor foi substituído pelo técnico. Tem muito psicanalista escrevendo, tem antropólogo escrevendo, tem médico escrevendo. Os escritores apaixonados não têm mais lugar para escrever. Se o Carlinhos de Oliveira estivesse vivo hoje, se, sei lá, o Tarso de Castro... o Paulo Mendes Campos... se esses caras estivessem vivos hoje, duvido que estariam escrevendo nos grandes jornais. Eles estariam sendo pulverizados, pô. Não tem mais aquela figura do escritor como intelectual público, e tem muita gente boa escrevendo que poderia fazer isso. O que tem não é o escritor, é o especialista. A palavra do escritor hoje não interessa muito. Você vê crônica em jornal em que o médico começa a falar de placenta, pô. Cadê o Nelson Rodrigues aqui? O mundo acadêmico... eu passo longe disso daí, mas a voz do escritor, a voz até romântica do escritor não existe mais.

Tensão: poeta ataca Mirisola à queima-roupa

(Durante o debate, o poeta e agitador cultural Nicolas Behr, uma das raras figuras da cena literária de Brasília que alcançaram reconhecimento nacional, questiona duramente Mirisola:)

Nicolas Behr – Vou fazer uma pergunta para o Mirisola. O Sérgio Sá acha ele um grande escritor, eu acho ele um grande marqueteiro. Quanto ao Saramago, acho que é inveja. Vamos pegar outros escritores... o Marcelino [Freire] assume aquilo, de fazer uma balada literária em São Paulo, e ele não assume.

Márcia – Mas o Marcelino é de quinta categoria...

Mirisola – Deixa ele falar, ele está dando a opinião dele...

Nicolas – É uma questão de afinidade. Isso, de marqueteiro, marqueteiro, me afastou da prosa do Mirisola. Hoje, acho positivo, ele parece estar renunciando a isso, investindo mais na escrita do que na imagem de escritor que a mídia adora porque fala mal dos outros. Você faz isso, faz esse joguinho também...

Mirisola – Não, não faço...

Nicolas – Você não me convence...

Mirisola – Mas, além das acusações, qual é a pergunta?
(Nicolas fala que começou a ler um dos livros de Mirisola – Joana a contragosto – e parou porque o livro “não lhe deu prazer”. “Eu parei, quem sabe eu volto”.)

Mirisola – Eu invisto na escrita desde o primeiro livro. O que acho que aconteceu é a reação dos escritores, que querem mais dar tapinha nas costas e fazer contatos. Mídia? A mídia me isolou. Se eu entendesse as expectativas da mídia, eu estaria na mídia. Faz muito tempo que saí dos suplementos, que saí da mídia. A minha agenda do ano inteiro é duas horas da agenda do Marcelino, e sou amigo dele, gosto dele, é um baita duma simpatia. Que marketing é esse que só me prejudica?

(Encerrado o debate, Mirisola e Nicolas conversam amistosamente e combinam de se encontrar em um boteco, estilo copo-sujo, onde se refestelam com codornas com farofa e selam a paz. “Eu tinha que falar porque o Mirisola fica aí esculhambando com poesia, estava com isso preso na garganta”, explica o poeta.)

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