Espaço destinado a fazer uma breve retrospectiva sobre a geração mimeográfo e seus poetas mais representativos, além de toques bem-humorados sobre música, quadrinhos, cinema, literatura, poesia e bobagens generalizadas
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segunda-feira, fevereiro 20, 2012
Caríssima Senhorita Paula
Amaral Cavalcante (*)
Não sei quem lhe deu a ousadia de me telefonar num sábado pela manhã, em pleno carnaval.
Ainda mais com esse papo de conta de cartão, cujo pagamento não consta nos seus arquivos.
E eu sei lá! Se não paguei pago depois com todos os juros e correções monetárias, que eu não sou homem de dever na praça.
Prejuízo, garanto que você não vai ter.
Pago, e com fé em Deus ainda lhe gratifico com o troco.
Mas minha linda, sábado de carnaval não é dia de arrochar freguês cobrando fatura.
É, no caso da minha velhice, de botar o colchão no sol para desanuviar das pragas, entupir o congelador de latinhas e abrir aquele livro de Lautréamont guardado desde 98, na estante dos "quem sabe um dia".
Esta sim, uma dívida vergonhosa que me torna velhaco na bodega da poesia.
Pois eu estava nestes misteres quando você tocou.
Pensei que eram os malucos querendo festa e já ia com a dispensa na ponta da língua:
- "Não, vou me recolher... na quaresma eu brinco".
Mas qual, era você e eu lhe atendi com quatro pedras na mão, até reconheço, mas quem mandou?
Eu não a conheço nem você a mim.
Imagino você dentuça, um coque amarfanhado nos cabelos palha e belas unhas tratadas num vermelho cruel discando inadimplentes neste Brasil endividado, em pleno carnaval.
Sua voz de aeroporto, aquele bolodoro treinado me chamando de Senhor Antonio ficou chato, interminável e triste.
Sobrou para mim a solidão do seu carnaval, tristonha Paula, mas tem horas - como a manhã de um sábado de carnaval - em que o cidadão mal tem paciência para certos ruídos que insistem em invadir sua cidadela.
Bem assim eu estava, Paulinha: guardado da alegria geral, mas cheio de baticuns em volta, doido por uma nesga de silêncio onde acomodar o enfado de quatrocentos anos na folia.
Foi na hora errada, mas quem mandou?
Bateu mal, diligente Paula, e olha que eu não sou sempre assim.
Eu devia era ter lhe convidado para sair, lhe oferecer o consolo do mar na doce Atalaia, devia ter lhe ensinado a fazer beijus e a conversar com o pescador Caboclinho sobre a proficiência de quantos molhos de quentro precisa uma moqueca de arraia, estas coisas que aqui são de graça, sem débitos na fatura.
Sabe, eu não sou sempre assim, tão bruto.
Noutras horas eu sei impostar a voz ao telefone como ninguém e, à distância, até ronronar carinhos num ouvido de mulher.
Você não conhece o demônio enganador que eu sou!
Mas num sábado de carnaval, cobrança não tem perdão: rodei, bati chipanzé no peito, invoquei belzebu.
Xinguei a mãe do presidente e quase chamo pro murro o capitalismo selvagem: "Porra de cartão minha filha, caralho de Hipercard, quem você pensa que é?", veja que baixaria eu repito agora, envergonhado.
Tenha mágoa não senhorita Paula, um dia alguém há de lhe recompensar.
Mas aproveito para lhe informar desde já nesta missiva - para ajuste no seu competente arquivo - que acabo de pagar nesta quarta feira de cinzas, no caixa eletrônico, a conta que nos incomodou e nos uniu neste feriadão carnavalesco, cada qual na sua solidão consentida.
Perdão pelo mau jeito senhorita Paula.
E ligue pra mim, quem sabe?
(*) Amaral Cavalcante é jornalista, poeta e boêmio. Contatos através do email: folha.da.praia@terra.com.br
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