Espaço destinado a fazer uma breve retrospectiva sobre a geração mimeográfo e seus poetas mais representativos, além de toques bem-humorados sobre música, quadrinhos, cinema, literatura, poesia e bobagens generalizadas
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quarta-feira, fevereiro 08, 2012
Relembrando o 2º Concurso de Poesia Falada do Amazonas
Julho de 1985. Nos dois meses anteriores, a Superintendência Cultural do Amazonas (SCA) havia aberto as inscrições para o 2º Concurso de Poesia Falada do Amazonas.
Cada participante podia inscrever até três poemas.
Dos 1.183 poemas inscritos, 45 foram selecionados para disputar três eliminatórias no Teatro Amazonas.
Em cada noite de uma quinta-feira, entrariam na disputa 15 poemas e três seriam classificados para a grande final.
Quando a SCA divulgou no início do mês os 45 poemas da primeira triagem, fiquei surpreso ao constatar que os meus três poemas (“Memorial”, “Distrito Industrial” e “Inocentes Úteis”) haviam passado pela peneira.
Convenci a charmosa Ana Maria Ramos (aka “Aninha”), na época 1ª secretária do Sindicato dos Metalúrgicos (eu era o vice-presidente), para fazer a leitura dos meus poemas no palco.
Ela topou.
Para julgar os poemas, a SCA escolheu uma comissão de alto nível: os professores universitários Narciso Lobo, Antônio Paulo Graça, Carlos Gomes e Marcos Frederico Kruger.
Na 1ª eliminatória, “Memorial” obteve a maior pontuação e se classificou em primeiro lugar.
Na 2ª eliminatória, a história se repetiu com “Distrito Industrial”.
Na 3ª eliminatória, a história voltou a se repetir com “Inocentes Úteis”.
Eu era o único poeta a classificar três poemas para a grande final e, em condições normais de pressão e temperatura, conquistaria os três primeiros lugares.
Foi quando o cu da cutia assobiou.
No dia da finalíssima, o superintendente cultural Guto Rodrigues dissolveu a comissão julgadora anterior e nomeou uma nova comissão julgadora formada por quatro medíocres burocratas do PCB que trabalhavam na SCA.
A única exceção era o cantor, compositor e violonista Geraldinho Azevedo, também ligado ao PCB.
O renomado músico pernambucano iria fazer um show acústico no palco do teatro tão logo fossem escolhidos os poemas vencedores e foi nomeado presidente da nova comissão julgadora.
Havia uma explicação possível para a presepada.
Em 10 de maio de 1985 (dia do meu aniversário de 31 anos), uma Emenda Constitucional restabeleceu as eleições diretas para as prefeituras das cidades consideradas pelo Regime Militar como áreas de segurança nacional.
A emenda também concedeu o direito de voto aos analfabetos e aos jovens maiores de 16 anos, além de extinguir a fidelidade partidária e abrandar as exigências para registro de novos partidos.
Isso permitiu a legalização do PCB e do PC do B e o surgimento de um grande número de pequenas agremiações.
A mais importante medida dessa Emenda, entretanto, foi a convocação de uma nova constituinte, que viria a publicar uma Constituição em 1988.
Presidente regional do proscrito PCB, o músico Guto Rodrigues queria aproveitar o evento para fazer proselitismo barato a respeito da legenda e não iria deixar de jeito algum que um brizolista (eu era presidente municipal do PDT) fosse colocar água no chope da festa comunista.
Eu não tinha assistido nenhuma eliminatória, mas no dia da grande final resolvi bater ponto no Teatro Amazonas para incentivar a Aninha.
A nossa turma (Chico Fera, Alberto Gordo, Francisco Bill, Jonacy, José Carlos Marinho, Alfredo Bigode, Danilo Leite, Vicente Filizzola, Carlos Lacerda, Edmilson Pai da Mata, Zé Raimundo, Laércio Maia, Isabel Alegria, Rosilene, Maria Rita, Paula Souza, Socorro Papoula, Ana Flávia, Maria Aparecida, Elcimara Barroso, etc) ocupou as primeiras duas filas do teatro, a dois metros do palco, para elogiar ou avacalhar o resultado da competição.
Mostrando muita classe e simpatia, Aninha recitou os três poemas sem gaguejar (nas eliminatórias, ela simplesmente havia lido os poemas) e se credenciou a disputar o título de melhor intérprete.
É evidente que cada vez que a Aninha era chamada ao palco para recitar um poema, a gente fazia um escarcéu da moléstia aos gritos de “já ganhou, já ganhou!”, no que éramos seguidos pelo teatro inteiro.
Uma esbórnia franciscana!
A comissão julgadora levou meia-hora para computar as notas e anunciar os vencedores.
Guto Rodrigues subiu ao palco e anunciou:
– Em primeiro lugar, “Um poema suado sob um sol latino” do camarada Alexandre Otto!
Recebeu uma vaia monumental.
O poema era um besteirol laudatório de 12 laudas sobre a revolução nicaraguense, que havia entediado a plateia.
Ninguém sabia, sequer, como aquela estupidez havia se classificado para a grande final.
Segundo o escritor Antônio Paulo Graça, o poema do Alexandre Otto tinha ficado em terceiro lugar na primeira eliminatória porque era o menos pior entre os outros 12 desclassificados.
Comunista histórico, o ator Rui Brito se levantou da plateia e começou a xingar o superintendente cultural:
– Porra, Guto, isso é uma palhaçada, uma palhaçada! Esse poema é uma merda, não serve nem pra limpar o cu! Você é um stalinista escroto porque só sendo um stalinista muito escroto e filho da puta para fazer uma molecagem dessas! Isso é lixo, porra, isso é lixo! Os poemas do Simão Pessoa dão de dez a zero nessa merda que vocês estão premiando! Essa porra do Otto não é poema, isso é uma babação de ovo pseudo-revolucionária cheia de erros de concordância! Vai tomar no cu com uma palhaçada dessas! Ninguém aqui é otário, porra, vocês armaram essa mutreta pra levantar o nome do partido! Isso é molecagem, caralho, isso é molecagem!
Nervosíssimo, Guto Rodrigues pediu para os seguranças do teatro retirarem Rui Brito da plateia e anunciou o segundo lugar: “Inocentes Úteis”.
Levou outra vaia monumental porque o teatro inteiro queria ver aquele poema em primeiro lugar.
Parabenizei a Aninha pela brilhante atuação e, na sequência, nos mandamos dali, deixando o cabaré pegando fogo.
Metade da plateia também abandonou o teatro em protesto, micando o show acústico do Geraldinho Azevedo, que não tinha nada a ver com o peixe.
A nossa turma foi comemorar a presepada no Bar Três Porquinhos, nas imediações da sede do sindicato, numa cachaçada que entrou pela madrugada.
Bons tempos, zifio, bons tempos.
Seguem os três poemas, que posteriormente foram publicados no livro “Guarânia com guaraná”.
Memorial
Sou da geração mimeógrafo:
Fiz da revolta o sextante
Na cartografia do ódio
Sou da geração neovazia:
Minha ética é o niilismo
No desprezo a ideologia
Sou da geração mais-embaixo:
Fiz de defesa a chacota
E de armadura o sarcasmo
Sou da geração AI-5:
Já levei tanta porrada
Que a alma perdeu o vinco
Distrito Industrial
Semântica do desespero
Nos alagados da vida
Levam pras filas o peso
Da palavra conhecida:
A grave greve engravida.
Trabalhadores cansados
Desafiando estatísticas
(a dor no lombo alheio
nunca é dura e incisiva):
A grave greve gravita.
Barulho sanguinolento
Na sina cega da lida
Fermento descontrolado
Na falta grave cerzida:
A brava greve bem-vinda.
Repressão e desespero
Meninos velhos meninas
Resistindo em piquetes
Com esperanças à míngua:
A força da fé faminta!
Inocentes úteis
Sou um professor cônscio e sensato:
Só respondo o que é-me perguntado
Sou um médico patriota e simplista:
Nunca emito opinião sobre política
Sou uma estudante feminista e liberada:
Homem e bicha comigo é na porrada
Sou um cidadão pacífico e previdente:
Nunca ouso criticar um presidente
Sou um operário humilde e escolado:
Só de ouvir falar em greve já me cago
Sou um legislador íntegro e progressista:
Sendo pobre aplico a máxima justiça
Sou um político popular e democrata:
Só governo com decreto ou com chibata
Sou um poeta visionário e demente:
Faço versos sobre a merda desta gente!
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Um comentário:
inocentes úteis é préconceituoso.
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