Em meados dos anos 80, provavelmente de saco cheio de ser
rotulado de poeta marginal, Nicolas Behr publicou um texto intitulado “Poeta
marginal? Eu, hein?” e me enviou uma cópia:
não nasci em montes claros. não tenho nome completo. não sou
professor. não consegui conciliar nada com a literatura. nunca publiquei nada.
atualmente não resido em porto alegre. não me chamo eduardo veiga. não escrevo
poesia há mais de 15 anos. não estou organizando meu primeiro livro. não sou
graduado em letras. não acredito que a poesia seja necessária. não estou
concluindo nenhum curso de pedagogia. não colaboro em nenhum suplemento
literário. não estou presente em todos os movimentos culturais da minha terra.
não sou membro da academia goiana de letras. não trabalho como assessor
cultural da sec. meus pais não foram ligados ao cinema. não tenho tema
preferido. não comecei a fazer teatro aos 12 anos. não me especializei em
literatura hispano-americana. não tenho crônicas publicadas n’o republica de
lisboa. não passei minha infância em pindamonhangaba. não canto a esperança.
não recebi nenhuma premiação em concurso de prosa e poesia. não tenho sete
livros inéditos. não sou considerado um dos maiores poetas brasileiros. nunca
fui convidado para dar palestras em universidades. não vejo poesia em tudo. não
faço parte do grupo noigrandes. não me interesso por literatura infantil. não
sou casado com o poeta afonso ávila. na minha estreia não recebi o prêmio estadual
de poesia. o crítico josé batista nunca disse nada a meu respeito. não sofri
influência de bilac. não sou ativo, nem dinâmico. não me dedico com afinco à
pecuária. não sou portador de vasto curriculum. não recebi menção honrosa no
concurso de poesia ferreira gullar. não exerço nenhuma atividade docente, nem
decente. não iniciei minha carreira literária no exército. não fui a primeira
mulher eleita para a academia acreana de letras. não tenho poesias traduzidas
para o francês. não estou incluído numa antologia a ser publicada no méxico.
minha poesia não é corajosa. não gosto de arqueologia. walmir ayalla nunca me
considerou um revolucionário. nunca tentei compreender o homem na sua
totalidade. não vim para o brasil com 5 anos de idade. não aprendi russo para
ler maiakowski. meu pai não é chileno. não sou virgem, sou capricórnio. não sou
mãe de seis filhos. nunca escrevi contos. não me responsabilizo pelos poemas
que assino. não sou irônico. não considero drummond o maior poeta da língua
portuguesa. não gosto de andar de bicicleta. não sou chato. não sei em que ano
aconteceu a semana de 22. não imito ninguém. não gosto de rock. não sou primo
dos irmãos campos. não sou nem quero ser crítico literário. nunca me elogiaram.
nunca me acusaram de plágio. não te amo mais. minha poesia nunca veiculou nada.
não sei o que vocês querem de mim. não espero publicar nenhum romance. não sou
lírico. não tenho fogo. não escrevi isto que vocês estão lendo.
Em abril de 1986, fiz um pastiche do texto dele intitulado
“Revolucionário, eu?... Nem pensar”, dedicado ao próprio Nicolas Behr, cheio de
chavões da chamada esquerda democrática.
O texto foi publicado no Suplemento JC e enviei um exemplar
do jornal pra ele.
Nicolas Behr morreu de rir. Curtam:
não sou filho de um líder operário morto nas dependências do
doi-codi. minha mãe não se chamava olga benário nem foi entregue à gestapo
quando eu tinha oito meses de idade. não fui expulso do seminário aos 14 anos
por estar lendo livros marxistas. minha primeira experiência sexual não foi com
uma conhecida líder estudantil. não tive na universidade um amigo pederasta que
era ligado ao partidão. nunca fui preso por estar pintando nos muros abaixo a
ditadura!. nunca participei de assalto a bancos, mesmo aos escolares. não tive
uma noiva morta na guerrilha do araguaia. nunca fui casado com a comandante
tânia. não tenho um casal de filhos nascidos na argélia. a onu jamais me deu o
status de refugiado. não fui condecorado pelo marechal tito. não me candidatei
voluntariamente a cortar cana de açúcar em cuba. nunca fui porteiro de sauna
gay em estocolmo. não sei em que albânia fica tirana. não sei o nome completo
do atual tirano da albânia. não assinei o manifesto dos intelectuais contra o
boicote econômico à nicarágua. não fui cassado em 64. não fui preso no
congresso da une, em ibiúna. em 68 eu mal sabia fazer direito um 69. não fui
trocado por um embaixador suíço em 70. não fiz curso de sociologia em sorbonne.
nem em nanterre. não fui torturado pelo delegado fleury. não tentei o suicídio pela
quinta vez. não escrevi um livro de memórias sobre meus tempos de banido. nem
de bandido. não descobri minha porção mulher. nunca bati papo com jean paul
sartre e simone de beauvior. não participei de uma sessão de bed in com yoko
ono. timothy leary nunca frequentou a minha casa. nunca desbundei ou dei a dita
cuja. nunca fiz passeata com as feministas francesas pelo direito ao orgasmo.
sempre confundi orgasmo com ovas de esturjão. a mercedes sosa não é meu tipo
inesquecível de mulher. não sou fanático pelos poemas de agostinho neto. não
participei da revolução cultural maoísta. não sou o quinto membro do “bando dos
quatro”. nunca li luckás no original. não estava no chile quando mataram
allende. não me refugiei na embaixada mexicana quando depuseram isabelita
perón. não atravessei ilegalmente a fronteira do paraguai. não participei da
quinta jornada de resistência latino-americana em copenhague. não sou
colaborador dos cuadernos del tercero mundo. nunca li a revolução dos bichos,
de orwell. nem a revolução das bichas, de clodovil. não sei quem escreveu o
manifesto comunista de marx. nunca soube como fizemos a revolução de trotsky.
sempre confundi trotsky com uma marca de aguardente feita no interior de
pernambuco. não sei onde nasceu rosa de luxemburgo. minha tese de doutorado não
foi sobre a acumulação da mais-valia em países periféricos – uma introdução ao
pensamento de althusser. não participei de nenhum festival da juventude, em
moscou. nunca usei nas paredes um pôster de che guevara. não tenho nenhum amigo
tupamaro, nem mesmo montonero. sempre achei que montonero fosse nome de
condutor de trem. não li o capital aos onze anos de idade. nunca votei no pt.
nenhum organismo internacional já me prestou solidariedade. eu também não
presto, quer dizer, nunca prestei. não assisti o encouraçado pothekin em um
apartamento clandestino. não sei que diabo é kurosawa. não acho a poesia do
thiago de mello comprometida com a minha vida. nem com a tua. não tenho
telefone grampeado pelo sni. nunca incendiei uma embaixada americana. não li as
obras completas de lênin em edição bilíngue. não traduzi do alemão o pensamento
vivo de herbert marcuse. não tenho a menor ideia do que seja teatro do
oprimido. nunca fui apresentado a daniel ortega. não sou citado no último livro
de régis debray. não fui convidado para os funerais de chernenko. não tive
nenhum caso amoroso com a ativista joan baez. não estou comprometido com a
candidatura amazonino mendes. fidel castro jamais me convidou para ser jurado
do concurso casa de las americas. não sou filiado ao sindicato polonês
solidarnosc. não sei quem é manuel ribeiro. não me encham o saco!
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