Ivan Lessa
Além de ter completado seis anos, cultivava eu, na São Paulo
de 1941, o costume de fazer com que meu pai me levasse ao cinema pelo menos
duas vezes por semana. Entrávamos no Santa Helena, saíamos, entrávamos no
Cinemundi. Depois, finzinho de tarde, encaminhávamos-nos para o Franciscano, na
Libero Badaró, para um chopinho (ele) e um frapê de coco (eu).
Enquanto eu explicava a meu progenitor as óbvias diferenças
entre seriado da Columbia e da RKO (montagem, jogo de contrastes, fluxo da
narrativa), íamos, distraídos, evitando pisar nos cadáveres dos estudantes
mortos a bala pelo ditador de então, Obdúlio Vargas, se não me engano.
Seguindo pela Rua Direita, fugíamos ao assédio dos mendigos
e retirantes nordestinos distribuindo socos e pontapés. Na Praça do Patriarca,
fazíamos vista grossa aos carcamanos vendendo drogas e ouvidos de mercador aos
turquinhos oferecendo suas mães, filhas e irmãs (“Fazem barba, cabelo e bigode,
zim zenhor!”) em troca de alguns cobres. Não era incomum darmos com um preto
fujão, em geral crítico literário, tentando escapar do tronco e das habituais
25 chibatadas. (A fina garoa da paulicéia desvairada de então molha-me a fronte
enquanto rabisco, em Londres, estas lembranças de um tempo para sempre
perdido.)
Estávamos sentados na mesa com Mário de Andrade, Francisco
Mignone e uma senhora gorda cujo nome, no momento, não me ocorre. Estou vendo
diante de mim a carona alegre e simpática de Mimi Sustenido, apelido dado por
Otto Lara Rezende ao inesquecível musicólogo e beletrista precocemente
desaparecido.
O papo girava em torno de músicas, ou gêneros musicais, com
nomes terrivelmente assustadores para um menino de minha tenra idade e apurada
sensibilidade: tamba-tajá, maguary, escubidu, gury-mirim, japyassu, almeida,
prado – sentia-me como o Noah Beery Jr. em A
Ilha Misteriosa: cercado por perigosos e barulhentos índios.
Além do mais, nunca me interessei por primitivismos em
música. Eu acabara de sair da inevitável fase pela qual todo jovem passa, a do
xaroposo Mahler, e, numa concessão ao gosto popular de então, procurava
entender certos charts traçados para algumas orquestras norte-americanas tidas
na época como “inovadoras”: Boyd Raeburn e Claude Thornhill são dois nomes que
me vêm à mente.
Mimi Sustenido (esse Otto tinha e tem cada uma!) me
perguntando naquele seu inimitável linguajar – que ouvido tinha! – popular:
– E tu, garboso infante, que almejas ser quando atingires a
maturidade física e cronológica? Escritor, como o pai?
Num gesto muito brasileiro, cocei o saco do garçom que
passava e respondi com minha poderosa voz de baixo profundo:
– Escrever tudo mundo escreve. Difícil é tomar notas. Pra
isso tem que ter talento. Eu vou tomar notas.
Como se ilustrando meu sonho e vocação, tomei da rodela de
chope e garatujei algumas palavras só a mim compreensíveis, instamaticando a
ocasião. Um manto de silêncio cobriu a mesa. Dava-para se ouvir um Mattarazzo
peidando na Avenida Paulista.
Até sua morte, Mário de Andrade inundou-me com longas,
ternas e eruditas cartas. Nunca respondi; estava mais ocupado tomando notas. Em
março de 1958, vendi tudo para as cinco noivas dos sete irmãos Campos por dois
mil e quinhentos guarujás (creio que era esta a moeda corrente no país àquela
época); de qualquer forma, as cédulas mostravam índios em conjunção carnal com
animais de grande e pequeno porte (um dinheiro que, evidentemente, não podia
dar certo; parem com essa história de culpar o FMI).
Com o correr dos anos – mais precisamente o revezamento dos
anos; tudo a mesma coisa, uma gentinha feia desembestada pra cima e pra baixo
com um pauzinho na mão – anotei adoidado. Tenho, aqui em casa, uns três armários
repletos de anotações. Se alguém for pós-estrutura ou desconstruir minha obra
ver-se-á em palpos de Osvaldo Aranha, conforme se dizia na ONU. A página em
branco jamais me tentou, mas ai! um macinho vazio de Malboro, um canto do
Times, um punho de camisa Viyella branca, um guardanapo da Bombay Brasserie!
Eu tinha um gatinho chamado Cetim, alegre e macio, gostava
de mim. Nele, numa dessas tardes de outubro em Londres, chatas como um
parágrafo de Autran Dourado, tomado de súbita inspiração (vodca, uma pedrinha
de gelo, rodela de limão), escrevi as palavras mortais como um hebdomadário
satírico-humorístico carioca: “Majestosos, de mãos dadas, íamos do Arpoador ao
Posto Seis, eu e – cumá-era-o-nome-dela mesmo? –, pela Rainha Elizabeth, by appointment to Her Majesty the Queen.”
Cetim morreu, mas não tive a coragem de enterrar ou jogar na
lata do lixo o bichano com a inspiração. Sim, claro, bastava eu passar a bobageira
para outro lugar qualquer. Mas não é assim que se toma notas. Cetim, com minha
mensagem, jaz morto e apodrece no armário. Pensando bem, acho que lá também tem
uma falecida namorada – Ismênia? Clodovilda? – com um epigrama nas costas. Acho
que, nela, empreguei outro método favorito: o da pontinha de cigarro aceso. Não
sei, preciso checar.
Aí está, pois: eu tomo notas. Livro é coisa de pobre, de
gente que lê Veja; que escreve para publicação brasileira; que foi, é ou vai
ser contratada pela Globo. Sou um homem sério, conheço minhas fraquezas. Seria
uma questão de tempo eu ceder à tentação e terminar, como um desses infelizes
que sequestraram o embaixador do Araguaia (já repararam como a cada semana tem
mais), publicado e resenhado. Com sorte, passaria despercebido.
Mas manjo minhas Eumênides, sei de minhas zebras e o mais
provável seria um desses ex-laterais-esquerdos do Olaria, que estudaram na
Universidade de Buffalo com o Affonso Rommanno de Santanna, acabar me arrasando
– pior: louvando! – em palestra sobre Comunicação na sala de conferência de um
hotel com um nome deprimente qualquer assim feito Maksoud-Plaza.
Num dia de 1968, peguei a moto de Joyce – silêncio, exílio e
Almirante Canning – e me mandei. (1968 foi um grande ano para se deixar
qualquer lugar.) Não queria, e não quero, saber mais do Bananão, tal como
carinhosamente chamo esse troço em que vocês “vivem”.
A esta altura, o leitor esclarecido, aquele que comprou o
livro da Marguerite Yourcenar e acha tchâm (é assim que se diz?) o Marcílio de
Souza, terá notado uma ligeira discrepância e perguntado aos botões dourados do
blazer cor-de-rosa do Telmo Martinho: “Mas se esse cara diz que não escreve o
que é que eu estou fazendo no meio desta matéria?”
A resposta, gentil-leitor esclarecido, é simples: primeiro, você,
como todos que o cercam, é um idiota; segundo só estou batendo estas linhas
porque me ofereceram uma fortuna em dólares e não em conchas, tatuís, goiabas,
marajós, guararapes, canudos, ou seja lá qual for a piada que, no momento, por
aí, passa por “moeda corrente”; terceiro, apesar de nunca ter visto um exemplar
da esplêndida revista Status, tenho a
certeza de que estou sendo publicado ao lado de mulher pelada, artigo sobre aparelho
de som e receita de bebida a ser servida em copo longo e com guarda-chuvinha de
papel roxo. Só topo nessas condições.
Abri um dos armários. Apanhei o que coube na mão. Decifro e
desenchavo com preguiça. Ainda há lauda que não acaba mais a encher. Ô Bananão
chato!
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