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quarta-feira, setembro 18, 2019

Os bondes de Manaus



Por Moacir Andrade

Já três décadas se passaram e uma enorme transformação se operou na antiga face tranquila desta cidade de Manaus, capital do Amazonas e Zona de livre comércio.

Apenas 30 anos nos distanciam daqueles dias tranquilos onde o maior ruído era produzido pelo ranger das rodas nos trilhos dos bondes tropicalíssimos, com seus bancos de pinho inglês e o tradicional “faz favor” do cobrador, destacando a senha mediante os 200 réis da passagem.

Bondes de horário inglês, cuja passagem em tempo mecânico dizia as horas a quem interessasse. “Puxa vida, estou atrasadão, este é o bonde das 10h45!” E era mesmo: o bicho não falhava. Bonde dos Remédios, Bonde da Saudade, cuja linha fora inaugurada para servir às pessoas que iam visitar as sepulturas de parentes e amigos no Cemitério São José, onde hoje está construído o Atlético Rio Negro Clube. Em frente, também, a Praça da Saudade, onde as pessoas iam meditar sobre os seus mortos.

Havia ainda o Bonde Circular-Cachoeirinha, que aos domingos ia sempre acrescido de reboques grandes para atender a grande quantidade de pessoas que escolhiam o mais “chique” passeio das tardes de domingo. A linha Circular, que começava na Estação dos Bondes, subia a Sete de Setembro, dobrava a Carvalho Leal e, de curva em curva, circulava a cidade de Manaus, limitada por este romântico itinerário, até a Rua Belém. Aí começava a segunda seção que passava em frente ao Parque Amazonense, onde havia corridas de cavalos aos domingos.

O Parque Amazonense atraía, naquela época, o findo da sociedade manauara para assistir aos campeões importados da Inglaterra, Argentina e outros países produtores dos famosos quadrúpedes de corrida. Muitos deles não aguentavam o calor local e sucumbiam de desidratação e disenteria.

Lembro-me, ainda, de um veterinário cujo diagnóstico fora desmentido por um jornalista que, através de um editorial, provou a impossibilidade da importação de cavalos puro sangue dos pampas argentinos e da Inglaterra para este tropicalíssimo pedaço do Brasil. Este e outros motivos determinaram a extinção das pretensões desse nobre esporte inglês no Amazonas. Outro motivo que também ajudou a encerrar a carreira de jóqueis locais foi o fechamento de firmas inglesas, última reminiscência do efêmero sonho da borracha.

Durante os minutos que precediam o início das corridas, os bondes paravam obrigatoriamente em frente ao grande portão do estádio. Depois, continuavam pela Cláudio Mesquita, Silva Ramos, Ferreira Pena, Dez de Julho, Eduardo Ribeiro e, finalmente, Sete de Setembro, para novamente estacionar na Praça Osvaldo Cruz.

Os bondes para mim tinham, além de sua característica especial, um cheiro, o cheiro de bonde que só os bondes mesmo podiam espargir nas tardes de Manaus. Aquilo tudinho parecia eterno para o menino que apertava, avaramente, as duas moedas de 400 réis, troco dos 10 tostões que o condutor me passara e que iria pagar uma lauta merenda no garapeiro da esquina, com seu carrinho de três rodas, onde se encontravam permanentemente refrescos de frutas diversas, dentre as quais eu escolhia o de maracujá, cujo copo, a 200 réis, acompanhava uma imensa fatia de bolo chamada mata-fome. Essa guloseima era saboreada depois de uma sessão de cinema no Cine Guarany com Buck Jones, o grande astro da garotada de então.

Eu morava na Rua Dr. Machado, nº 115, trecho que terminava bem ao lado da 1ª Igreja Batista de Manaus, onde o Bonde Igreja Batista-Joaquim Nabuco fazia o ponto final. Muitos moleques que faziam parte da minha turma aguardavam a chegada do elétrico que, “morcegando”, procuravam no chão as senhas que eram colecionadas e serviam para prêmios de jogos infantis. Na bolinha, pião, peteca, pedrinhas e macaca, os prêmios eram pagos com os cupons de bondes. Os de bagagem, por serem mais difíceis, valiam mais. Eles eram cor de rosa. O cupom da linha Circular e o de Flores, faziam parte dos colecionadores campeões de bolinha.

O Deoson, Nego Zura, Canhoto, Esbim, Alfredo, Eloy e Pingueleta constituíam o grupo dos campeões. Dificilmente perdiam uma parada. Eu, geralmente, era refugado pela turma: alegavam falta total de disciplina. Mesmo assim os acompanhava, de longe, nas incursões pela Matinha, Areal, Igarapé do 40 e Monte Cristo, onde íamos tomar banho ou pescar camarões nas locas dos barrancos.

O Esbim era o chefe da turma, ditava as ordens com seus olhos sempre muito vermelhos e apertados como um chefe mongol das estepes russas. Usava a sua autoridade com as características de um verdadeiro líder, dava cascudos em quem desobedecia.

Quando íamos para o Areal, próximo da Ponte dos Bilhares, era importante os 400 réis das passagens, 200 de ida e 200 de volta. Quem não tivesse o dinheiro, ficava. O Esbim não pagava a passagem de ninguém. As notas de mil réis que ele guardava dobradinhas, com muito carinho, na sua carteira porta-níqueis, eram ganhas com muito sacrifício na compra e venda de garrafas vazias.

Toda a turma vendia garrafas vazias. Cada qual com seu saco de açúcar cuidadosamente dobrado, ´piamos nos reunir nos fundos do quintal da Dona Cachica, mãe do Deoson, sob a copa de uma imensa mangueira, cujos galhos debruçavam-se sobre a rua Dr. Machado. Ali discutíamos as bases do negócio e as áreas onde atuar. O Esbim e o Tabajara me faziam inveja – compravam e vendiam mais do que eu, por isso gastavam mais. Eu achava aquilo um assombro.

Alguns anos depois, em plena adolescência, o Tabajara morreu. Ele foi para mim o amigo mais íntimo que tive, com quem brincava e brigava muito.

A Avenida Getúlio Vargas, que naquela época se chamava 13 de Maio, era dividida em três áreas: da Ramos Ferreira, Leonardo Malcher e Dr. Machado. Três turmas valentes defendiam seus territórios. O Pingueleta, o valente da Leonardo, num domingo de manhã, brincando com os vagões da Treze, esmagou uma das pernas tentando parar o vagão que montava. O líder da Dr. Machado era o Orígenes Martins, peitudo e metido a domesticar mucuras, que trazia sempre a tiracolo. Depois foi ser seminarista. Hoje é um monumento da nossa educação, líder da nossa juventude e diretor proprietário do Instituto Christus.

As antigas hortas onde vivi a minha infância deram lugar aos grandes prédios de hoje: o Hospital Infantil Dr. Fajardo, o Edifício do Senai, os belos prédios residenciais fronteiros e todo o quarteirão entre a Avenida Getúlio Vargas, Dr. Machado, Tapajós, Leonardo Malcher e Tarumã. Quase todo o bairro era constituído de grandes áreas verdes de hortaliças, tratadas pelos seus proprietários portugueses. Entre eles estavam seu Joaquim Cegueta, seu Firmino, seu Herculano, seu Adílio, Dona Rosária com seus dois filhos, Manoel e João da Rosária, porque também tinha o João Pé-de-vaca, filho do seu Herculano. A Dona Rosária tinha a maior horta daquele tempo, com muitos empregados, entre eles alguns lusitanos saudosos da santa terrinha, cantando antigos fados que enchiam de ternura as tardes maravilhosas da Rua Dr. Machado.

Todas essas recordações afloraram durante a minha última viagem à Europa, quando tive a oportunidade de ver os bondes de Sintra, em Portugal, iguais aos antigos bondes dessa cidade de Manaus. Neles vi desfilar toda gente da minha infância, alguns já habitantes da grande luz, como diz o meu irmão Farias de Carvalho. O último banco com os tabuleiros cheios de folha para banhos e a algazarra dos moleques que hoje passeiam silenciosamente na imagem viva da recordação.



(Publicado no jornal A Notícia, em maio de 1973)

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