Por Tárik de Souza
O mercado do disco no Brasil está sendo invadido por fantasmas bem-sucedidos que enriquecem sobretudo as gravadoras. Escondidos por detrás de pseudônimos, autores e cantores brasileiros são vendidos como produtos estrangeiros. Por quê? Vamos destrinchar essa história.
Era uma tarefa jornalística simples. Conseguir na representante nacional, a gravadora carioca Top Tape, dados biográficos sobre o astro importado Dave MacLean, primeiro colocado nas pesquisas da Nopem no Rio e em São Paulo com o compacto “Me and You”. Mas, estranho, nada sabem informar na Top Tape.
Em geral os press releases (material de propaganda para a imprensa) são escritos antes do lançamento dos discos, mas o do artista mais vendido da gravadora “ainda não ficou pronto”. Qual o país de MacLean? Quantos discos vendeu antes? Quando começou a gravar?
Um nebuloso silêncio responde a todas essas perguntas, seguido pela cabalística explicação de que se trata de um original de uma certa Blue Rock Records, aliás a única pista mais sólida registrada na contracapa e no selo do elepê, “Me and You”, do mesmo Maclean: P.1973 Blue Rock Records.
Na editora Copa Musical, filiada à Top Tape, aumenta o enigma. Assombrado com o interesse por MacLean, o funcionário José Gomes redobra as atenções com a reportagem, tirando copiosa xerox da letra em inglês, um dos quais do próprio registro autoral. Cuida, porém, de cortar parte importante do carimbo e das assinaturas que talvez motivassem perguntas embaraçosas.
Gomes, magro e inquieto, encontra mais um atestado da importação da Top Tape, exibindo a letra em português de “Eu e Você”, versão do esperto Rossini Pinto: “ Não há ninguém igual a você / o nosso amor não vai acabar / oh, oh, oh / que vou fazer tão sozinho assim?”.
Embora nada prove quanto à identidade e procedência do original, “Eu e Você” pelo menos demonstra a que nível de rapidez chegaram os mecanismos da indústria do disco nacional: a versão é editada antes mesmo que o artista seja divulgado pela imprensa.
Com a sensação do dever incompleto e um gosto amargo de inexperiência na boca pelo seu fracasso numa tarefa em princípio tão prosaica, o repórter dirige-se por fim ao estúdio Hawai, onde a mesma Top Tape grava seus contratados brasileiros.
Wiliam Luna, diretor da empresa, também nada sabe de MacLean, mas um de seus funcionários, seu Domingos, prontifica-se a ligar para a sua loja de discos no subúrbio do Meyer, em busca de maiores indícios do mistério.
De repente, outro funcionário da Hawaii encerra as investigações com uma pista definitiva: “Esse cara é paulista, deve ter gravado nos estúdios lá em São Paulo”.
Domingos já havia acrescentado a desculpa de que a Hawai cobra 350 cruzeiros a hora e não se interessa pelo material gravado. Mas quem se interessa: Há dois anos e em volume cada vez maior, o mercado brasileiro começou a ser assolado por esses fantasmas internacionais, o primeiro deles o cantor anglo-paulista Terry Winter.
Enquanto estourava nas paradas de sucesso com seu eficiente “Summer Holliday”, num estilo que lembrava velhas gravações de Nat King Cole, Winter, o filho de ingleses Thomas William Stamden descansava tranquilamente na sua casa em Vila Mariana, subúrbio paulista e antigo território eleitoral do ex-político Jânio Quadros.
Com alguma arrogância, Stamden (ou Winter) afirmou na época ao repórter Luís Nassif, da Veja, que seu sucesso era calculado, uma “fórmula para salvar a moeda brasileira, contendo as importações artísticas, assim como os Beatles levantaram a libra”.
Nada disso, naturalmente, aconteceu, mas Winter vendeu bem seu compacto e elepê de estréia, chegou a passar da pequena Beverly para a grande RCA com um polpudo advance e seu êxito (naturalmente também camuflado) empolgou algumas platéias inocentes da América Latina.
Se Winter apenas seguia velhos exemplos como o do saxofonista Bol Fleming (na realidade, Moacyr Silva), Prini Lorez (Jospe Gagliardi Jr.), Românticos de Cuba (uma orquestra com vários regentes: Severino Araújo, Lirio Panicalli, etc), ele também era o sintoma de uma crise.
Desempregados por vários motivos, inclusive por sua própria indigência musical, vários guitarristas, pilotos de sintetizadores, baixistas, organistas e bateristas jovens concordaram em trocar seus nomes, às vezes sucessivamente, servindo de escudo para fantasmas bem-sucedidos, que mais enriqueceram as gravadoras que seus verdadeiros solistas.
A penúltima dessas descobertas, também por Luís Nassif, da Veja, lhe valeu ameaças e um diálogo ríspido com o empresário do truque, o paulista Mário Bonfiglio.
O referido senhor indignou-se com a reportagem que estampava possíveis rostos do conjunto Light Reflections e garantia sua procedência paulista, além de levantar algumas identidades de autores brasileiros escondidos por detrás de pseudônimos estrangeiros.
Bonfiglio e o conjunto foram ao programa de Flávio Cavalcanti tentar desmentir a reportagem afirmando que os rostos da foto não lhe pertenciam, mas com suas presenças e seu correto português fluente, terminaram dando veracidade ao texto.
Daí em diante, e ainda hoje no atual programa Fantástico, da TV Globo, os Light, ao lado dos Pholhas, defendem-se, antes de qualquer acusação, com o clássico slogan de que “a música é universal”.
Pelo menos os protetores do fenômeno David MacLean são mais realistas e guardam a alma de seu negócio, argumentando que descoberto o segredo as vendas diminuem, como já aconteceu em diversos outros casos.
Domingos, da Hawaii, ajuda a tese com um argumento eloquente: “Outro dia uma moça ouviu London, London na minha loja e gostou muito. Aí, viu que era a Gal Costa que cantava. O vendedor, para dar maiores informações, disse que era uma música de Caetano Veloso. A moça devolveu o disco e pediu um de música estrangeira”.
(Publicado no jornal Folha da Manhã, de Porto Alegre, em 27 de março de 1974)
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