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quinta-feira, setembro 12, 2019

Em novo livro, Heloisa Seixas se inspira nas histórias de quase morte do marido, Ruy Castro



Na página 92 do livro “Carmen – Uma biografia”, o escritor Ruy Castro conta ao mundo como foi o dia em que Carmen Miranda foi a uma favela pela primeira vez. Foi no carnaval de 1934, levada por Almirante ao Morro do Salgueiro, onde assistiu à roda de samba que 20 anos depois daria origem à Acadêmicos do Salgueiro. Naquela noite, ficou encantada com o sambista Gargalhada, uma lenda local, conhecido por defender os moradores nas primeiras ações de despejo no morro.

No dia em que pôs fim a esse trecho, uma das milhares de passagens que ajudavam a construir deliciosamente a imagem da “brasileira mais famosa do século XX”, Ruy tinha acabado de receber o diagnóstico de um câncer na língua.

A obra que ganharia o Prêmio Jabuti de melhor biografia e melhor livro de não ficção em 2006 fora escrita, portanto, durante 34 sessões de radioterapia que deixaram seu pescoço em carne viva, e sete de quimioterapia, que o impunha náuseas e jejum absoluto.

Quem conta em detalhes o que foi um dos piores momentos de sua vida é o personagem Ruy, protagonista do novo livro da escritora Heloisa Seixas, “O oitavo selo” (Cosac Naify): “Tudo o que foi escrito dali para a frente, todas as quase quinhentas páginas seguintes foram feitas durante o tratamento. Eu tinha de conseguir. Não podia decepcionar a Carmen”.

Inspirada nas histórias de quase morte do marido, Ruy Castro, com quem é casada há 25 anos, Heloisa escreveu o que chama de um “quase romance”:

– É meio ficção, meio não ficção. Muitas cenas ali de fato aconteceram como eu descrevo, e até parecem romanceadas, mas não são, outras são totalmente inventadas. Eu não quero ficar nessa questão se é verdade ou mentira, é um romance baseado em fatos reais. São histórias de confronto com a morte – define Heloisa, autora de mais de dez livros de ficção, entre romances e contos, e três vezes finalista do Prêmio Jabuti.

Portanto, Heloisa corre os olhos pelas muitas estantes da sala da casa do marido, no Leblon (os dois vivem em casas separadas; ela, em Ipanema), quando questionada se o romance, ainda assim, pode ser lido como uma espécie de biografia de um dos principais biógrafos brasileiros – além de Carmen Miranda, Ruy desfiou a vida de Nelson Rodrigues e Garrincha.

Afinal, é a primeira vez que histórias difíceis relacionadas ao passado do escritor vêm à tona, como as passagens sobre dependência química, alcoolismo, cânceres e enfarte. Ela repete a primeira frase do livro com um sorriso: “Não adianta tentar estabelecer as fronteiras”.

Melhor perguntar sobre a biografia do próprio romance:

– Como surgiu a ideia? Eu estava numa festa da Flip de 2012 com uma amiga, a (escritora) Guiomar de Grammont. Ela começou a falar de mitos eróticos. E eu ouvindo aquilo, no meio daquela barulheira, sem prestar muita atenção. Ela citava Tristão e Isolda, Don Juan, e de repente falou... “Sherazade”. Fiquei com aquilo na cabeça. Eu sempre havia comparado internamente o Ruy à Sherazade (narradora de “As mil e uma noites” ). Durante muitas situações extremamente complicadas pelas quais passamos, eu chegava à conclusão que ele só não morria porque tinha uma história para contar, exatamente como a Sherazade. No caso, porque tinha um livro para terminar. E aí comecei a escrever a história. E, quando eu sento para escrever um livro, seja qual for, não é charme, mas eu nunca tenho muito clara essa questão de gênero. Os livros se escrevem.

Bergman como referência

Dividindo o quase romance em oito “selos”, um para cada vez que Ruy Castro chamou a morte para uma partida de xadrez – uma referência explícita ao cavaleiro Antonius Block, do filme “O sétimo selo” (de Ingmar Bergman, 1956), que, ameaçado pela figura da morte, tenta ganhar tempo num jogo contra ela –, o personagem Ruy enfrenta a hemorragia que vitimou a irmã mais nova; o vício em cocaína; o alcoolismo; o câncer de língua; o enfarte; o câncer na próstata; a convulsão cerebral. O último selo fica para o leitor descobrir, ou se configuraria um spoiler de um filme que ainda não acabou. Vale lembrar que o livro é repleto de referências cinematográficas, além das literárias e musicais, tal qual qualquer conversa com o escritor.

Ruy entra na sala. Pede desculpas por entrar no meio da entrevista. Estava no escritório fazendo alguma pesquisa para o novo livro em que trabalha, sobre a história do samba-canção. Acha curioso quando lhe perguntam se está bem.

– Estou ótimo. Faz dois anos e meio que não morro – diz Ruy.

– Ele sempre faz essa piadinha – emenda Heloisa, abrindo espaço para o marido no sofá e lembrando que nunca faltou humor ao escritor, mesmo nas muitas vezes em que esteve entubado no hospital (no dia seguinte à convulsão cerebral, em 2012, um domingo de carnaval, Ruy posou para fotos ainda na UTI segurando uma contracapa do jornal O GLOBO, onde se lia, no título, sobre varredores do sambódromo: “Pouca folia e muito trabalho”).

– Sem humor não seria eu – brinca Ruy, garantindo não ter se sentido exposto ao ler o romance, antes de sair da sala para procurar a foto de 2012. – Não vejo nada de mais. Em algumas questões, como o alcoolismo, eu acho até que tenho obrigação de expor. As primeiras histórias do livro foram muito mais fáceis de ler, são histórias da minha infância e da vida que já contei a ela dezenas de vezes. Só fiquei admirando a habilidade dela para costurar tudo, de ficcionalizar as memórias que tem sobre mim. Mas em relação à última história do livro, eu não lembrava mais de nada, porque estava inconsciente quando aconteceu. Eu não sou testemunha da minha própria história. Fiquei muito impressionado. Se a sensação de ineditismo que tive lendo essa última história foi tão impactante, quem sabe o leitor possa ter uma sensação parecida ao ler o livro, já que não conhece nada ou muito pouco da minha vida.

Para contrapor as histórias pesadas que perpassam o romance – numa delas, o personagem, completamente alucinado pela cocaína, toma a mulher do amigo na mesa do bar e é flagrado com ela no banheiro do local por ele –, Heloisa usa o humor, característica primordial do personagem que a inspirou.

Cura pelo humor

Numa das cenas mais curiosas do romance, ao fazer uma tomografia computadorizada para detectar se o câncer de próstata havia se espalhado, foi notada uma mancha cintilante no exame de contraste do protagonista, perto da cabeça.

O médico o tranquilizou: como havia esvaziado a bexiga para fazer o exame, a mancha podia ser apenas uma gotícula de urina que ficara nos dedos, passando para a cabeça ao coçar os cabelos, por exemplo. Ao ouvir a explicação, Ruy retrucou: “Ou é mijo ou metástase”.

– O humor faz parte dessa ideia geral do livro, que é a salvação pela palavra e pelo prazer. Acho que essa é a grande mensagem, e volto à Sherazade: a salvação do Ruy sempre foi a palavra. É uma vida muito impressionante, ele quase morre, e quase morre de novo, e de novo. E ainda assim, está aí, com mil ideias de livros, colunas diárias – derrete-se a mulher.

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